DEVARZINHO &
EU - Imagem: Sous-bois (1914), da pintora
francesa Suzanne Valadon
(1867-1938). - O menino Devarzinho passou apressado.
Pronde vai nessa carreira? Sequer olhou pra mim, apenas riu gostosamente na
correria. Cadê teu pai, menino? Mais se ria e se distanciava. Resolvi acompanhá-lo,
chamando-o e ele mais depressa olvidando dos meus reclamos. Subiu uma escadaria
íngreme que dava para um bairro periférico. Vai pra onde, meu filho? Ele só ria
e seguia pelo aclive, eu ao seu encalço. Quando cheguei lá em cima dei de cara
com umas passarelas feitas com táboas – como ele passou por aqui, hem? -, coisa
difícil pra mim, tenho problemas com altura. Vi-o atravessando umas três delas,
já se preparando para descer o morro do outro lado. Chamei-o e não obtive êxito.
Equilibrando como quem via a hora se esborrachar lá embaixo, consegui vencer lentamente,
uma a uma das pontes improvisadas e adiantei o passo para alcançá-lo já lá
embaixo numa escadaria que ele já embolava aos choros e a perder de vista. Fiz o
que pude para chegar rapidamente lá embaixo, quase me arrebento, até aterrissar
esbaforido, só encontrei pessoas com olhares desconfiados. Cadê o menino?
Ninguém respondia, fitavam-me com ares severos e hostis. Cadê o menino? Eles se
entreolhavam e percebi que vinham de todos os lados em minha direção, como se
tivesse chegado a hora de me capturar, também. Percebi o mal-estar, girei em
torno e percebi todos ao meu redor, sisudos, vingativos. Andando de costas,
tropecei em algo, era um misto de rifle/revolver, não sei, sei lá, nunca tinha
visto. Era uma arma, empunhei, abri o tambor: duas balas calibre 12, de um lado;
várias calibre 38, de outro. Fechei o tambor e encarei a turba, agora parada, à
espreita. Vi quando se mexeram no interior de um compartimento com balcão e me
dirigi para lá: Cadê o menino? Ignoravam minhas perguntas, me tinham por
invisível. Vi um policial que vinha em minha direção. Agora vamos resolver,
pensei comigo, a polícia já chegou. Ao contrário começou a me inquirir, logo
apareceram outros. Pediram minha arma enquanto eu explicava o ocorrido. Um
deles, parecendo-me de patente superior, veio conversar comigo em tom
ameaçador. Fizeram-me sentar numa maca. Logo um dos policiais se aproximou de
mim e cravou um instrumento metálico na minha nuca, dizendo: Não vai doer nada.
Ao dizer isso, ouvi que outros tantos policiais e os demais populares que
presenciavam tudo caíram na gargalhada. Senti algo penetrando pelo meu cérebro,
rasgando até alcançar-me a boca pelo lado de dentro do meu crânio, como se
fosse uma broca odontológica limpando meus dentes por dentro. Aos poucos fui
ficando sonolento, perguntavam-me coisas que nem entendia o que era, uma dor de
cabeça tremenda e a ordem do comandante pra que eu respondesse às suas
perguntas. Um deles avançou sobre mim com ameaça, encostando um objeto
pontiagudo sobre o meu arco zigomático, deslizando até a têmpora, no qual ouvi
um estampido e fez-se um silêncio absurdo. Nada mais ouvia e, acho que
adormeci. Despertei à beira de um lago que dava em um caminho sinuoso até uma
mata. A paisagem me era familiar, acho, tinha a certeza de que depois da mata
era Água Preta, essa a minha crença, o que me deu ânimo de levantar, seguir a
estrada contornando o lago que mais parecia um brejo à segunda olhada, o brejo
da minha infância no quintal da minha avó. Trilha que não sabia, temores
inatos, a busca por abrigo. A paisagem mudava a cada passada, ora uma campina,
doutra um agreste, chão quente sob os pés descalços, sertão dos mandacarus,
litoral da areia praieira. Segui adiante e o mistério rondava os meus passos em
cada estação que se confundia primavera a verão, outono a inverno. Enfrentei tudo
na jornada, lua minguante, cheia, crescente e nova. Aprendi a cara ao vento,
poeiras e pedras do solado às faces. Sempre me guiei pro leste. Mas não há só
leste, e tive de percorrer de norte a sul, até o oeste, passando por
frustrantes dificuldades, não sabia o que me esperava, superava empecilhos com
espírito de explorador pelo inexplorado, cego sem guia. Peregrino solitário, eu
decidi empreender minha jornada por meus próprios esforços e sacrifícios, a
minha tribulação sem mapa, sem rumo certo, por vacilações e situações
auspiciosas, trovões, relâmpagos. Ousava seguir pro desconhecido, a densa mata,
treva na qual eu perdi a noção do tempo e espaço, sabia: estou real agora, sou
eu. Quero ir mais longe, onde vivo, o lugar que ocupo, o papel que desempenho, ah,
nem sei mais nem quem sou, e penetro por meu esforço até onde me levar, não
sei, não há consenso, nunca haverá, não tenho convicções, estou perdido no breu
profundo de uma noite sem estrelas, entre batidas de asas, bafos, grasnados, alaridos
estranhos, lufadas, silvos, rastejados, estalidos, todos os fantasmas e as
sinistras sensações da escuridão na minha caminhada. Eu só tinha a mim mesmo,
nada mais. Quanto mais andava, mais sentia a vida se distanciando. Seguia, ia,
não era a vida que se distanciava, agora eu sei, era eu mesmo que me descobria a
mim mesmo. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especiais com a música do violonista e compositor Felipe
Coelho: Cata Vento, Musadiversa
& Telhados; da cantora, atriz, compositora, roteirista e humorista Clarice Falcão: Monomania & Problema meu; &
muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte
Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA - [...]
A inovação está no coração do sucesso de
uma economia moderna. A questão é como melhor promove-la. Os países em
desenvolvimento são mais pobres não só porque têm menos recursos, mas porque há
um hiato em conhecimento. Por isso, o acesso ao conhecimento é tão importante.
[...]. Pensamento do economista e Prêmio Nobel de Economia de 2001, Joseph Stiglitz.
O DESEJO & A ALTERIDADE - [...]
O desejo metafísico
tende para coisa totalmente outra, para o absolutamente outro [...] Na base do
desejo comumente interpretado encontrar-se-ia a necessidade: o desejo marcaria
um ser indigente e incompleto ou decaído de sua grandeza passada. Coincidiria
com a consciência do que foi perdido. Seria essencialmente nostalgia, saudade.
Mas, desse modo, nem sequer suspeitaria o que é o verdadeiramente outro...
Porque se fala levianamente de desejos satisfeitos ou necessidades sexuais ou,
ainda, de necessidades morais e religiosas... O desejo metafísico tem outra
intenção, deseja o que está além de tudo o que possa simplesmente completá-lo, como
a bondade e o Desejado não o cumula mas o escava. Generosidade alimentada pelo
Desejado, relação que não é desaparecimento da distância, não é aproximação ou,
tomando de mais perto a essência da generosidade e da bondade, relação cuja
positividade vem do distanciamento, da separação... Distanciamento que só é
radical se o desejo não é possibilidade de antecipar o desejável, não pensa
previamente e vamos para ele numa aventura, isto é, para a alteridade absoluta,
inantigível, como vamos para a morte... [...] Para o Desejo esta alteridade, inadequada idéia, tem um sentido. É entendida
como alteridade de Outrem e como do Altíssimo... Morrer pelo invisível, eis a
metafísica. Extraído da obra Totalidade e infinito (70, 2008),
do filósofo francês Emmanuel Lévinas (1906-1995). Veja mais aqui e aqui.
FRASES DE SUZANNE VALADON – [...] Não se pode fazer nada muito bem a não ser
com muito amor. [...] A natureza me
traz o controle da verdade sólida para a construção de minhas telas, concebidas
por mim, mas sempre motivadas pela emoção da vida. [...] Três grandes mestres, tirei o melhor de cada
um deles, de seu ensinamento e de seu exemplo. Eu me encontrei, me fiz e disse,
creio, o que tinha a dizer. [...] Sou
atéia, já que nunca vou à igreja. Sejamos francos, de que serve isso? No
entanto, ninguém bate em vão à minha porta. Trechos extraído da obra Suzanne Valadon (Martins Fontes, 1989),
de Jeanne Champion, sobre a pintora francesa pós-impressionista Suzanne Valadon (1867-1938), Marie-Clémentine Valade de nascimento,
personalidade marcante na cena artística parisiense no período que precede o cubismo.
Na sua vida de filha de mãe solteira que era lavadeira, foi garçonete dos cafés
e acrobata, Por sua beleza impressionante, tornou-se modelo de Renoir, Puvbis
de Chavannes e Toulouse-Lautrec e iniciou-se na pintura com Edgar Degas. Foi amante
de Van Gogh, Guaguin, Picasso e Modigliani, além do compositor Erik Satie. Com
exposições bvem sucedidas, logo a sociedade burguesa ficou muito chocada com a
sua arte, que a par da sua conduta sexual, desafiava as convenções. Veja mais
aqui.
SALAMBÔ - [...] Salambô apeara-se da liteira, mas continuava
a caminhar sob o dossel, muito vagarosamente. Depois atravessou o terraço para
ir assentar-se no fundo, numa espécie de trono, feito de uma casca de tartaruga.
[...] Desde os tornozelos até aos
quadris, estava envolvida numa rede malhas muito pequenas, imitando as escamas
de um peixe e que luziam como nácar; o corpo era-lhe cingido por uma faixa
azul, na qual, por duas aberturas em forma de crescente, se lhe viam os seios,
de cujas pontas pendiam grandes pingentes de carbúnculos. [...] Salambô, tendo assim o povo a seus pés,
acima da cabeça somente o firmamento, em torno de si a imensidade do mar, o
golfo, as montanhas e as perspectivas das províncias, confundia-se
resplandecente com Tanit e parecia ser o próprio gênio de Cartago, a sua alma
personalizada. [...]. Trecho extraído do romance histórico Salambô
(1862 - Chardon, 1905), do escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880).
Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
COM
PERDÃO DA PALAVRA, QUERO CAIR NA VIDA: Meu coração bate desamparado onde minhas
pernas se juntam. É tão bom existir! 1. Objeto de amor: De tal ordem é e
tão precioso / o que devo dizer-lhes / que não posso guardá-lo / sem a sensação
de um roubo: / cu é lindo! / Fazei o que puderdes com esta dádiva. / Quanto a
mim dou graças / pelo que agora sei / e, mais que perdôo, eu amo. 2. Entrevista: Um homem do mundo me
perguntou: / o que você pensa do sexo? / Uma das maravilhas da criação eu
respondi. / Ele ficou atrapalhado, porque confunde as coisas / e esperava que
eu dissesse maldição, / só porque antes lhe confiara: / o destino do homem é a
santidade. / A mulher que me perguntou cheia de ódio: / você raspa lá? Perguntou
sorrindo, / achando que assim melhor me assassinava. / Magníficos são o cálice
e a vara que ele contém, / peludo ou não. / Santo, santo, santo é o amor que
vem de Deus, / não porque uso luva ou navalha. / Que pode contra ele o
excremento? / Mesmo a rosa, que pode a seu favor? / Se "cobre a multidão
dos pecados e é benigno, / como a morte duro, como o inferno tenaz", / descansa
em teu amor, que bem estás. Poemas da escritora, professora e filósofa Adélia
Prado. Veja mais aqui.
A ARTE ANETTE NAIMAN: NAVALHA NA CARNE &
OUTRAS CENAS
A atriz
formada em cinema e televisão e fundadora do Teatro Garagem, Anette Naiman, mantém sua trajetória
com a proposta de fazer um teatro independente, libertário e transformador.
Atualmente ela está em cartaz com o espetáculo Navalha na carne, de Plínio
Marcos, com direção de Marcos Loureiro, todas as quartas e quintas, às 21hs, no
Teatro Garagem - Rua Silveira Rodrigues, 331a – Vila Romana (SP). Informações (11)
99122-8696, temporada até o dia 08 de fevereiro. Veja mais aqui, aqui &
aqui.
Veja mais:
A vida
solta no calor do coração, a música de Teodora Dimitrova, a escultura
de Carlos Baez Barrueto, a fotografia de Claudia Rogge & a pintura de Robert Delaunay aqui.
Ah esse
olhar no Crônica de amor por ela, Marc Augé, Rubem Braga, Wolfgang Amadeus
Mozart, Gabriela
Mistral, Mitsuko Uchida, Analy
Alvarez, David Nutter, Francisco Ribera Gomez, Kate Holmes, Carmen
Verônica & Iolita Domingos Barbosa Campos aqui.
Tarsila
do Amaral, Hannah Arendt, Edward Grieg, Eleanor Gibson, Lígia Moreno & Rubem Braga aqui.
De
antemão & Fecamepa aqui.
A mulher celta aqui.
A mulher
suméria aqui.
Prelúdio aqui.
Só a
poesia torna a vida suportável aqui.
Escapando
& vingando sonhos aqui.
Só
desamparo no descompromisso social aqui.
Literatura
e história do teatro aqui.
Pequena história da formação social brasileira de
Manoel Maurício de Albuquerque aqui.
A
linguagem na filosofia de Marilena Chauí aqui.
A poesia
de Chico Buarque aqui.
Vigiar e
punir de Michel Foucault aqui.
A teoria
da norma jurídica de Norberto Bobbio aqui.
Como se
faz um processo de Francesco Carnelutti aqui.
As
misérias do processo penal de Francesco Carnelutti aqui.
&
ARTE DE SUZANNE
VALADON
A arte da pintora francesa Suzanne Valadon (1867-1938). Veja mais aqui.