A CHEGADA DELA E
VIVI – Imagem: arte do fotógrafo iraniano Bahman Jalali (1944-2010).- O que houve
não sei, nem poderia, só dela a chegada inesperada, meu coração aos pés de
quase sair pela boca, a surpresa demais da conta, o vulto inteiro nada mais vi,
lívido, perdido, só ela nos meus olhos parados no ar, somente ela, de nem ver fui
levado mãos dadas pelas ruas e esquinas, subir a escadaria, abrir a porta e me
empurrar pra cadeira e sentar atordoado como se o mundo girasse e eu extraviado
de mim, cabeça a rodar e nada sabia, nem poderia embasbacado enquanto ela
desafivelava o cinturão para desabotoar minhas calças e caçar o meu sexo dilatado
só por vê-la inteiramente sensual e amante, a saia do vestido puxada das pernas
pras coxas a me surpreender com seu ventre nu invadido por meu desejo à sua
vontade. Nada sabia, nem poderia entre o espanto e o delírio fui levado por sua
cavalgada, qual não fui espaventado ao seu trote ritmado até ao êxtase dos
píncaros de todas as maravilhas universais, até descansar a sua cabeça ao meu
ombro depois da viagem, a carícia dos meus dedos entre seus cabelos e dorso,
seus devaneios abraçados a mim como desolada e à deriva encontrou, finalmente,
seu porto seguro. Nada sabia, nem poderia dela me ninar a mimar da minha pele à
essência, eu todo a envolvê-la desprotegida, língua a lamber seu agitado coração.
Nada sabia mesmo, nem poderia e me contou dos seus dias e a eterna solidão no escuro
embaraçoso, olhos de velas acesas nos castiçais e a ameaça da aranha invisível a
atormentá-la. Não tenha medo, estou aqui, e me disse ao seu modo como era e tudo
se repete como se nunca tivesse ocorrido, como se as narrações de Sheherazade
enovelassem nossas falas e entregas, como se revivêssemos o reencontro de
outras existências. Nada sabia e me falou do que não tinha mais, do que possuia
de si, notícias que não tardam a chegar e os destinos são diversos nos acenos e
adeuses, o destino feito de atos, erros e acertos, e tudo segue pelas triviais
despedidas, nas constantes desditas. Ainda ontem ao chegar do trabalho ficou entretida
arengando com as formigas malditas invasoras do seu bolo predileto, roubando-lhe
até os farelos. Esconjurou, maldisse a vida e chorou sozinha num casa da sala.
Não chore, estou aqui. Se nada sabia, nem poderia, ela me falou de ouvir vozes
injuriosas inauditas de seres enlutados com seus rostos inexpressivos e as
deferências de ocasião, as falsas amabilidades, impostores de plantão. Compungia-se
com tudo, gente de conversatório cochichado, cheiradeira da vida alheia, só de
ver pelas costas. Engolia esses desaforos, quanta remoeta, retalhos inúteis, ô
povinho ofendido e afobado. Ah, se verdade ou exagero, era ela comigo em carne
viva, beijos de sonhos na alma e eu mais rendido que nunca. Aí me pediu para eu
roubar a Lua e não demorasse pra ela fazer um anel e selar nossa união
ressuscitada com a quebra do feitiço de Áquila. Éramos um, corpo a corpo, nossas
mãos, braços e abraços, beijo a beijo, somos um. E me contou das peraltices de
infância, moça menina no vento caingang e perguntou de mim, eu sempre lembro,
mas esqueço. A La Ursa com papangus quebraram o silêncio na cadência do frevo,
ela nunca vira, quase amedrontada, carnaval caeté. E desandei a falar, fui tão
longe, acho, muito longe, atos públicos, efemérides vazias e decadentes, era só
pra salvar minha pele, nada mais que isso, fui de arranco, mesmo não sendo esse
balaio todo, nem se sou protegido por qualquer anjo da guarda ou desviado
arcanjo, pelas beiradas e entrelinhas o mundo todo. Já andei um bocado de légua
e não cheguei a lugar algum, tenho a impressão de não ter saído do mesmo lugar
até hoje. Não sei quantas vezes quase não fui fulminado por um raio, mais de
uma vez, na verdade. Muita coisa de colosso eu já vi, sempre enjeitado daquele
sempre a mandar lembranças, pra ver botarem depois tudo abaixo, desabado, ao
emburacar no troço haviam virado a casaca, nada mais, a coisa toda espalhada,
ruínas e miséria. Deixa eu cá com meu roçado, meu teretetê, a estrada é longa,
o caminho esburacado e carregado de surpresas nada alvissareiras nesses tempos
de desumanidade, mesmo que se vá eu vou, chego nela e tudo é real, os dentes do
sorriso, o brilho do olhar. Se lá ou cá, eu sou nela, do que fui e serei, nela
eu sou. Foi a chegada dela e me fez viver de verdade. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá é dia de
especial com Amores
absurdos e show do
cantor, compositor e arranjador Celso
Viáfora; e Selvática, Longe de onde & Eu menti pra
você da cantora, compositora, percussionista, poeta e atriz Karina Buhr &
muito mais nos mais de 2 milhões de acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte
Cidadã. Para conferir é só ligar o
som e curtir. Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – Não sabemos tudo. A vida tem mais
significados do que parece. É preciso estar atento. Trecho extraído da obra Uma situação difícil (L’Olivier, 1998),
do escritor estadunidense Richard Ford.
CIÊNCIA & SENSO COMUM – [...] A
revolução científica que atravessamos ocorre numa sociedade ela própria
revolucionada pela ciência. O paradigma a emergir dela não pode ser apenas um
paradigma científico, tem de ser também um paradigma social, de vez que o
conhecimento científico ensina a viver e traduz-se num saber prático.
Consequentemente, temos de perguntar pelo papel de todo conhecimento acumulado
no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo
contributo positivo ou negativo da ciência para nossa felicidade. [...] Na ciência moderna o conhecimento avança pela
especialização e o conhecimento é tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o
objeto sobre que incide... A ciência moderna legou-nos um conhecimento
funcional do mundo que alargou extraordinariamente as nossas perspectivas de
sobrevivência. No futuro não se tratará tanto de sobreviver como de saber
viver. Para isso é necessária uma outra forma de conhecimento compreensivo e
íntimo que não nos separe e antes nos uma pessoalmente ao que estudamos.
[...] A ciência pós-moderna tenta
dialogar com outras formas de conhecimento e a mais importante de todas é o
conhecimento do senso comum, o conhecimento vulgar e prático com que no
quotidiano orientamos as nossas ações e damos sentido à nossa vida. [...].
Trechos extraídos da obra Um discurso
sobre as ciências (Cortez, 2003), do jurista
e professor Boaventura de Sousa Santos, também autor da obra Introdução
a uma ciência pós-moderna (Graal, 2003), apresentando uma reflexão crítica
com objetivo de compreender a prática científica para além da
consciência ingênua, ou oficial, dos cientistas e das instituições da ciência,
e aprofunda o diálogo dessa prática com as demais práticas de conhecimento de
que se tecem na sociedade e no mundo. O autor submete as correntes dominantes
da reflexão epistemológica sobre a ciência moderna a uma crítica sistemática,
recorrendo à dupla abordagem - suspeição e recuperação. Veja mais aqui, aqui
& aqui.
PRELÚDIO & ALEGRO AGITATO – No
entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali assim que se movia. Era dentro
disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo – e
queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são ou
que-se-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas mas-afinal-que-importa. E a cada
dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio
guardado no fundo escuro de alguma gaveta. [...] mas não é no cérebro que acho que tenho o câncer, doutor, é na alma, e
isso não aparece em check-up algum. Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora
vai desandar a tecer considerações sócio-político-psicanalíticas sobre. O
Espantoso Aumento da Hipocondria Motivada Pela Paranóia dos Grandes Centros
Urbanos, cara bem barbeada, boca de próteses perfeitas, uma puta certa vez
disse que os médicos são os maiores tarados (talvez pela intimidade constante
com a carne humana, considerou), e este? Rápido, analisou: no máximo chupar uma
boceta, praticar-sexo-oral, como diria depois, escovando meticuloso suas
próteses perfeitas, naturalmente que se o senhor pudesse diminuir o cigarro
sempre é bom, muito leite, fervido, é claro, para evitar os cloriformes, ar
puro, um pouco de exercício, cooper, quem sabe, mais pensando no futuro do que
em termos imediatos, claro. Mas se o futuro, doutor, é um inevitável finalmente
alguém apertou o botão e o cogumelo metálico arrancando nossas peles vivas,
bateu com cuidado o cigarro no cinzeiro, um cinzeiro de metal, odiava objetos
de metal, e tudo no consultório era metal cromado, fórmica, acrílico,
anti-séptico, im-po-lu-to, assim o próprio médico, não ousando além do bege. Na
parede a natureza-morta com secas uvas brancas, peras pálidas, macilentas maçãs
verdes. Nenhuma melancia escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga
molhada, nenhum morango sangrento. Um morando mofado – e este gosto, senhor,
sempre presente em minha boca? Azia, má digestão, sorriso complacente de dentes
no mínimo trinta por cento autênticos (e o que fazer, afinal? Dançar um tango
argentino, ou seria cantar? [...] tinha
versos à espreita, adequados a qualquer situação, essa uma vantagem secreta
sobre os outros, mas tão secreta que era também uma desvantagem, entende? Nem
eu, versos emboscados da nossa mais fina lira, tangos argentinos e rocks
dilacerantes, com ênfase nos solos de guitarra). Um tranquilizante levinho
levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por dia, ao acordar,
após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração tranquilo,
sístole, pausa, diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs
taquicardias, freio químico nas emoções. Assim passaria a movimentar-se lépido
entre malinhas 007, paletós cardin, etiquetas fiorucci, suavemente drogado,
demônios suficientemente adormecidos para não incomodar os outros. Proibido
sentimentos, passar sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça pra
baixo, proibido emoções cálidas, angustias fúteis, fantasias mórbidas e
memorias inúteis, um nirvana da bayer e se é bayer. [...]. Trechos
extraídos da obra Morangos mofados
(Agir, 2003), do escritor, jornalista e dramaturgo Caio
Fernando Abreu (1948-1996). Veja mais aqui, aqui e aqui.
O SICÔMORO – Contra
um céu mais escuro / vi uma girafa albina / sem folhas, a modificá-la. / Branca
– camurça como disse - / embora parcialmente malhada junto à base / erguia-se
sobranceira onde a corrente / de alpondras se lançava / numa torrente próxima.
/ Elegância capaz de despertar a inveja / de anônimos mais coloridos / Procos
de Hampshire, viva pedra da sorte, / mariposa ou borboleta. / Bem: digressão,
de animal a parecença - / mas não de flores que não murcham; / elas devem
morrer / e um pincel de nove cabelos / do camelo fêmea ajuda a memória. / Digno
de Imami - / o persa – agarrando-se a um ramo mais duro / havia uma pequenina
coisa seca / da grama em forma de Cruz de Malta / retirando-se formal como a
dizer: / “E ali estava eu / como um rato do campo em Versailles”. Poema da escritora
modernista estadunidense Marianne Moore
(1887-1972).
CENAS DE UM CASAMENTO SUECO
[...] Se não fosse por outra razão, pelo menos
teria servido para irritar as pessoas artisticamente ultra-sensíveis que por
aversão a esta obra, completamente compreensível, vão começar por ter vômitos
estéticos já na primeira cena. O que é que resta mais para dizer? Este opus
levou três meses para escrever, mas representa um período bastante longo da
minha vida em experiência. Não estou certo se teria sido melhor ser ao
contrário, embora talvez tivesse ficado mais refinado. Eu senti uma espécie de
dedicação por esses seres humanos durante todo o tempo que trabalhei com eles.
Tornaram-se bastante contraditórios, por vezes infantilmente angustiados, outras
vezes bastantes adultos. Dizem um bom bocado de coisas insignificantes, por
vezes dizem algo de importante. Mostram-se angustiados, felizes, tolos, bons,
inteligentes, insuportáveis, e amoráveis. Tudo de uma vez só. Agora vamos ver
como é que vai sair.
Trecho
do prefácio da obra Cenas de um casamento
sueco (Nórdica, 1975), do dramaturgo e cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007), dividido em seis cenas: Pureza e
pânico, A arte de varrer para baixo do tapete, Paula, Vale de lágrimas, Os
analfabetos & No meio da noite numa casa escura em algum lugar do mundo. O premiado
drama intitulado originalmente como Scener ur ett
äktenskap (1974), conta
a vivência de 10 anos de um casal aparentemente bem-sucedidos (ele professor,
ela advogada na área de direito de família), entrevistados por uma repórter
para falar a respeito do sucesso do matrimônio. Depois de recepcionar um casal
em crise, ela descobre que está grávida e ele não demonstra nenhum
contentamento, ao mesmo tempo em que uma senhora casada há 20 anos a procura
para se divorciar, motivada pela inexistência de amor no seu casamento,
provocando uma atrofia nas suas emoções. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui
& aqui.
Veja mais:
Quando
alguém se põe à sombra, não pode invocar o sol, o
pensamento de Ralf Waldo Emerson, a música de Milena Aradski, a pintura de Paul Klee & a arte de Felicia
Yng aqui.
Ainda
assim é uma história de amor, a literatura de Henrich Böll, a música de
Mário Ficarelli & a pintura de João Câmara aqui.
Ah,
esses lábios na Crônica de amor por ela, Molière, Eduardo Souto &
Clara Sverner, Tácito, Washington Irving,
Gladys Nelson Smith, Carl
Franklin, Meryl Streep, Renée
Zellweger, Bill Ward, Argemiro
Corrêa & Samdra Fayad aqui.
O culto
da rosa na Crônica de amor por ela, As mil e uma noites, Ezra Pound, Almeida Prado, Heráclito de Êfeso, Dermeval
Saviani, Vittorio Alfrieri, Washington Maguetas, Gilian Armstrong, Cate Blanchett, Alfred
Cheney Johnston & Myrna Araujo aqui.
Cantilena na Crônica de amor por ela, Goethe, Pierre-Joseph
Proudhon, Fodéba Keïta, José
Régio, Alexandre Dumas Filho, Nick Cassavetes, Tears For
Fears, Robin Wright, Jean-Francois Painchaud, Lev Tchistovsky & Graça Lins aqui.
Egberto Gismonti & Naná Vasconcelos, Martin Luther King Jr, Débora
Arango, Maria Lenk, Greta
Garbo, Marie Duplessis & A dama das camélias aqui.
Gilles Deleuze, Susan Sontag, Dian Fossey,
Sigourney Weaver, Washington Maguetas, João Pinheiro & Padre Bidião aqui.
Georges Bataille, John dos Passos, Heitor
Villa-Lobos & Kiri Te Kanawa, Berthe Morisot, Alain
Robbe-Grillet & Marie Espinosa aqui.
Ralf Waldo Emerson, Spencer Johnson, Gabriele
Muccino, Nicolletta Tomas, Monty Alexander, Felipe Cerquize, O Teatro,
Nicoletta Romanoff, A escola, a sociedade e a formação humana & Onde há
fumaça há fogo aqui.
&
A ARTE DE BAHMAN JALALI
A arte do
fotógrafo iraniano Bahman Jalali
(1944-2010).