ARA, OU O LIVRO
DAS PORTAS
CYANE PACHECO
Ara caminhou sobre o oceano
original, aquele que estremeceu ao ouvir os primeiros trovões, que inscreveu
uma fenda de abandono nos homens. A fuga das águas fizera o peixe dialogar com
o espelho, palavras de destino e sal. Do espelho, visões do ouro nas pedras,
assombrações vagando nos territórios do medo, cavalos e gigantes, imóveis no
fundo do mar, tais impressões eram os dardos arremessados no olhar de Ara, que
vira a noite iluminar o peixe e o espelho escurecer o verso. Ara anoitecera e,
assim, como o mundo, sumira dos olhares noturnos para vigiar as estrelas. Seu
nome segue uma estrada sem fim, por isso era velha, agora era nova: soa de ser
palíndromo, sinete, lacrimário, luva, pérola e cálice e, desde pequena,
recusara ser moeda, aro, cambraia e assunto. Ara viu o tempo pela primeira vez,
quando sua avó a ensinou a marcar as sombras da coluna de ferro no chão,
ganhara ali, seu primeiro relógio de sol. Ara conhecera o céu de cor, como se
fosse pouco o sertão, enxergara o mapa da noite, suas distâncias e os sinais do
outro lado do escuro. Naquela terra ideara luzes acesas detrás da lona azul e,
desenhara com os astros, grandes lentes redondas no rosto de Deus. Ara possuia
um foguete, onde comia os símbolos feito grãos e, no interior do qual,
conhecera os homens, mas não os tivera além do silêncio, nunca pudera vê-los em
suas intimidades e amá-los como se deve amar de vera. Ara jamais fora uma jóia
solta, moura, nem fizera tilintar os guizos em seus punhos para adentrar as
cidades quebrantadas. Suas lágrimas formavam poços de angústia nas dobras do
tempo. Seus parentes ficavam surpresos, quando Ara dizia que todos deviam
soprar suas dores ao vento, até mesmo ela, uma neta de coronel seco, do rigor
cruel da riqueza e dos espinhos, dos contrastes do tempo, dos rostos curtidos
sob um sol remoto, dos séculos decorridos de onde ouvira a voz dos paralelos
mundos, e nunca retrocedera de medo. A garganta seca de Ara engolira o cascalho
das conchas, enquanto o odor da velhice que a embalara, sumira nos dentes da
onça, postada em sua calçada, levando os seus apegos antigos. Ara também era
neta do pai de um dos justos da terra, aquele que sempre fora sábio e bom, que
a instruíra sobre o abandono das coisas e acerca do mistério da impermanência, que
a ensinara a pescar e narrara-lhe sobre os círculos, sobre o portal onde ela,
Ara, um dia também deixaria toda a sua esperança, dissera-lhe da pantera, do
lobo, da serpente e do filósofo, tomara-lhe o nome dos países e das suas
respectivas capitais, no tempo em que Ara sequer conhecia o alfabeto, antes de
ter uma mestra, cobiçada numa guerra famosa, vencida através da astúcia feita
cavalo de madeira. Ara compreendera a lição do profeta: que o homem tem apenas
aquilo que oferta com as mãos em chamas, com o coração incinerado em seu
desapego e ela pôs-se a fazer assim, desde que abrira os olhos, nas primeiras
manhãs. Ara estendera no horizonte os seus olhos de fogo corredor, esboçara
serras enlutadas, conhecera o chão batido do além-muro, os cristais sobre a
mesa do mago, o vinho e a maçã, as linhas das suas mãos e as histórias do
passado. Ara: a alma bela e o mal, forçando a porta de entrada com seus olhos
amarelos mirando suas vestes azuis. Ara gostava de transformar versos em
avessos, onde a estrada terminava diariamente sob sua tormenta, cegara diante
de tantos punhais, das armas do silêncio e das traições, da cobiça e do sono
que nunca pudera dormir. A morte acompanhara o cortejo triste do contentamento
que havia sonhado. A morte, e sua voz subterrânea, em todos os riscos, que a
coragem encerra, em todos os anzóis suspensos no ar, oferecera-lhe um belo
alqueire de mistério. Ali, foram semeadas ruínas silenciosas no chão, símbolos
que Ara havia cavado com suas unhas durante toda a sua vida, buscando água e remos,
conchas e martelos adormecidos, objetos desde antes do pecado até aqueles que
hoje recusa. Ara visitou o mundo dos mortos, crianças de cera com laços à
cabeça, desfaziam-se no calor do abismo, homens gritavam pedindo ajuda, fugira
dali, para nunca mais voltar à casa escura daquele sonho. Ara ouviu o grito
monstruoso da fera primeira, viu seus gestos e sentiu o odor amaro da sua pele,
estava sob o encanto do mal, sem enxergar o futuro como algo célere. A
inclemência das trevas a uniria para sempre àquela criatura, sair da morada do
medo a fizera construir outras fugas e sabia que, ao atingir o centro do olhar
da fera, não se protegeria das teias obscuras do porvir. O Devorador de Sonhos,
foi o homem que tingiu com sua ira, a pele e a alma de Ara. Rompeu o inverno de
aço que revestia seu ventre. As palavras que não voavam, encarceradas e nuas,
fugiam loucas, à pé, temendo os cravos e as lutas desiguais, mas após certo
tempo, retornavam, lâminas afiadas em direção à besta. Ara aprendera que os
monstros guardam o veneno entre os dentes e detrás do olhar. Ara apressou o
passo, depois daquela porta, a solidão seria delicada assim como a morte e os
dias livres do jugo perverso da imagem. Tantas luas diante dele, fizeram-na
percorrer secretos túmulos, nuvens de barro desfaziam-se na aridez daquele
olhar. Temerosa das grades dos gestos, dos redemunhos, da sedução do anjo
caído, fugiu em direção ao sagrado, guardando-o apenas para si, signos que a
acompanham e a guardam como uma filha. Tudo pegara fogo, e Ara sentiu-se uma
asa tonta de vento, desteceu a palavra sertão e a palavra mar. Para aqueles que
feriram sua solidão, acendera uma fogueira nos caminhos noturnos, soprara
brasas sob seus pés e, no início do seu pensamento, os mantivera aquecidos com
à inclinação daquilo que imaginava ser Deus. Ara também caminhou sobre um
torrão de espinhos, e em direção à Ara chovia setas envenenadas na maldade do
ventre. A pedra fria tragara suas lágrimas, e o destino corrompera o laço de
fita dos seus sonhos, o que roçava o poema era suspeito de fogo e desatino. De
onde Ara assistira verter a água benzida, surgiam braços estendidos sobre o
lago do seu ser, vira cabelos crescerem emaranhando as ideias puras. Ara
continuou diante da chama desesperada da vida, da convulsão das palavras
sozinhas, náufragas, mudas, verdadeiras mandalas girando em campos rubros de
dor. Ninguém alcançara a imagem daquele tempo, as linhas de ferro, os gritos e
as grávidas esmolando pão e agrado, exceto Ara que não podia fechar os seus
olhos, porque eram líquidos e sós. Partira o fio, desmanchara a flor, o medo
cobriu como uma onda os véus do olhar esférico visto através da janela. O mar
que devolveu os peixes mortos, e os céus que esconderam o oriente durante
noites insones e dias sem fim. A fúria e a rosa, ambas douradas de céu e
lucidez, escorriam salgadas nas ruas inseguras. Ara calara-se diante do espanto
e da lágrima, da multidão sem bússola e sem riso, da vertigem da torre que a
aprisionAra durante séculos. Ara percorrera o estreito caminho, havia ratos
azuis de lama, famintos daquilo que Ara tivera. Ara soprara quimeras de nuvens,
e regara com o sangue dos seus dedos feridos, o que preservara como um segredo
distante, a esterilidade do ambiente, as múltiplas existências em uma só. Tinto
era seu desejo e Ara não vira o perigo, esperara o silêncio e fora atingida no
último vôo, cega. E atravessando, destemida, o escuro da dor, o arremesso da
ponte, a inalação de vapores letais, os vulcões das letras dentro de sua boca,
as lâminas deslizando na exatidão do seu pulso. Seguira, ainda assim, nos trens
obedientes e vermelhos, nos carros com rodas de madeira, no dorso dos
ofuscados. Ara manipulara líquidos e cápsulas fatais, buscando o sono imenso,
coberta de medo, de inércia, de repúdio e descobrimentos. Ara conhecera a
traição sem abrigo, trama desumana e oculta, dia descomposto, uma quase-morte,
uma doença incurável dos sonhos alocados, vindos dos campos coletivos sem
futuro. Ara encontrara a porta de uma montanha de areia, sepulcro dos seus
dias, rede insana de abraços perversos, muros transpostos na calada das horas,
brinquedos nefandos diante do cansaço dos seus dedos. Restara o traço e a
lágrima, o tempo que guardara os nós das suas veias, abrigo de pássaros mortos,
múmias alimentadas de luz. A pele, a estranheza daquele lugar, os arremessos,
os liames, a lança que insistia em buscar seu alvo: o peito de Ara, que ali
construíra distintos universos com os sobejos dos seus dias, circundara seu
presente, orbe inabitada e, recortara o passado, cerzindo-o em sua pele.
Destruíra o teatro, a cidade, o infinito antigo, fizera a cama dos poemas,
triturara sua língua e moera seus próprios ossos. Reunira a matéria de suas
imagens, vira o palco abrir-se nas páginas diárias, na farsa inútil e perigosa,
desleal, como sempre fora, desde o desmaio sobre o jardim. Avistara o incêndio
e a inundação, a desistência da fortuna, de um querer interrompido, nunca mais
querer de fato, nem a vetania erma das praças. Seus pacíficos braços recebiam
carícias bélicas, loucura mirando o olhar griz de Ara e dos nascituros que
desenhava compulsivamente. Seguira sua descoberta, que não seria apagada com a
mentira da fala, nada seria abandonado, cedera à ideia de que aquela doença não
seria sua, ninguém estivera ao seu lado, ninguém vira o estige banhando seu
rosto, nem os dentes do cão faminto, suas cabeças girando à sua volta. Ali, na
margem, construíra o mundo que, em seguida, tragara seu contentamento. Soubera
das plantações de chuva, não se furtara ao cérebro e aos pés. Ara chorara açúcar
e carvão, também decantara o sal que emanava dos seus poros, lera as tristes
horas, procurara o caminho alheio, enquanto os mortos inquietos sangravam ao
seu lado. Descobrira que haviam devorado os seus olhos, que ora dormiam em um
ninho de lembranças. Algo em Ara não escurecera enquanto buscara iluminar sua
dor, o tempo que constituira para si, com animais preciosos, penas negras e
partituras de folhas, um lugar assustador e cheio de silêncio e muros, ali,
onde as coisas pareciam menos melancólicas, reunira os tijolos possíveis,
partira as bífides línguas de outrem, rezara como nunca em todos os seus
tamanhos, onde suas vestes abrigavam e recusavam qualquer vaidade, onde o
alimento era justo e sua saúde avistara o caminho que seu filho mais jovem
procurava há séculos, lugar de traços, coragem e escrituras. Atravessara, certa
vez, uma estreita ponte de prata, que ligava o lugar dos vivos às escadas que
davam acesso àquela velha senhora, louca e atilada, com quem conversara e
visitAra durante anos a fio, retornando deitada sobre a vertigem do lugar. Ara
estremecera ao ver a altura que separava os dois mundos, que carregara um lírio
em seu colo e seu vestido cheirava a incenso, ali, de volta ao mundo dos vivos,
seus aromas pacificaram as almas cansadas e salvara os bebês da imolação na
pedra das encarpas. As palavras de Ara foram vãs durante o reinado dos abutres,
era memento e aletéia, o tempo em que as oitocentas carpideiras choraram ao seu
lado, nas valas cobertas de terror, o seu tempo de chorar através da janela
pelos caixões dos anjinhos, de um azul incandescente. Ara imaginou viajar nos
barcos e testemunhar os diamantes tornarem-se motivo de extermínio, viu a
escravidão de outro modo e a pele branca tingir-se de impiedade. Ara estivera
naquele trem quando a moça fora esmagada e o velho tomara sua história para
falar sobre o amor e o gêlo. Ara vira os varões carregarem sobre os ombros,
signos de madeira, do poder das construções bíblicas, aqueles mesmos varões que
permaneceram com os olhos cerrados ao mistério do ventre, transmitindo um
estranho legado, violentando as nuvens e a carne dos sonhos das mulheres. Ara
estivera mais uma vez sozinha, recordando que da vida, pouco lhe restara além
das lembranças e do seu lento declínio, o estrangeiro de si, os instantes em
que entoara os cânticos, a névoa e o nada. Dele, pudera dizer que quase não o
via, esteve sempre partindo, sua ausência consumira as horas que Ara acumulara
no silêncio da casa, e onde assistira instalar-se o vazio e o ardor da solidão
do seu olhar. Ara percorrera o rastro das sombras, desejara vê-lo indiviso nas
estações possíveis, onde construiria para ele, abrigos em pleno mar, nos quais
o resguardaria da violência de todas as outras mulheres. Ara semeara vastas
plantações de chuva, para aquele que jamais pudera tocar a carne ou resgatar a
alegria de pisar os caminhos da sua infãncia. Ara o faria senhor de todos os
seus domínios, traria para ele as cinco propostas do sonho enquanto consenteria
que deitasse em seu colo, nos meses de ventania, observando a dança leve dos
canaviais. Seriam dele todas aquelas flâmulas verdes que pudesse alcançar com a
vista, Ara o distrairia rabiscando seu perfil no barro vermelho e o seguiria
vertendo lembranças corrosivas de si. Lá, no mundo de Ara, onde os espelhos aprisionavam
nostálgicos mandarins, ela o faria conhecer a beleza que se redesenha no tempo,
entressonhando abraços à fera luz do cotidiano. Em seus mergulhos abissais, Ara
o agasalharia e o livraria do medo, brindando-o com um amuleto que o faria
invisível diante do pecado, ainda assim, desabaria sobre Ara, uma noite sem
fôlego, vagas revoltas, irrequietas mãos, unções de santidade e perdição
dilacerando seu peito, seu corpo, suas reservas de água e sal. Ara nunca
quisera apresar nenhum daqueles pássaros nos labirintos dos seus dias, nem
desfigurar suas faces, tocando-os com suavidade e ardor, embora divisasse cada
um dos seus homens, que vaguearam nos inabitados montes, com esporas de lua,
delindo estrelas e pedras ardentes, perdidos em suas escolhas. Ara buscara a
verdade naquilo que representava abandonar a palavra sob a mesa, que a fizera
mirar a face dos meninos pagãos, a chama das velas acesas em dias de procissão,
o leito de suas mil virgindades, guardadas para cada um deles e, alumiara a
bruma de onde mais uma vez, ele, o possível amor de Ara, se ausentAra. Ara
quisera a brevidade dos dias, de sua companhia, sem cravar-lhe as garras da
dor. Pretendera guarda-lo distante de sua casa, nas povoações que erguera em
seu interior, sabia-o vasto e permitira, apenas uma vez, que sobre o seu sonho,
ele erguesse o seu reino. Ara acordou com as pupilas inflamadas da manhã, com
os olhos entreabertos, escreveu o invísivel da dor, assim relatou seu
infortúnio, que a abalara, como dizia seu amigo poeta - “desde antes e para
sempre”: há dias em que o quarto escurece, o abismo investe, as pernas tremem,
o túnel engole seu fim, as coisas se despem de sentido, o lápis se recusa a
traçar a linha, o olho de ver a luz, os cães emudecem, os outros se tornam cada
vez mais distantes, o fogo desce crestando orgãos e vísceras, a notícia ruim
fica suspensa e invisível diante do corpo, as notícias se consomem antes de
fazerem sentido, a chuva não vem e embraseia as folhas; a dor se abriga
estática, desde o princípio dos dias, o sangue acelera seu percurso, a veia
dilata, as cortinas desobedientes se fecham, o sono e os cílios travam uma
peleja desigual, as rosas definham, as cordas amordaçam o ânimo, as carpideiras
gargalham; os rios e as quedas d'água, convulsionados, arrastam os braços
desesperados, os alvéolos banham-se em colas de açúcar e goma, a morte
aproxima-se bafejando a nuca, a lágrima congela e queima a face, o pensamento
não distingue dia e noite, a ventania trás presságios estranhos, o sobressalto
enlaça o ponteiro dos minutos e Ara se assusta com o mínimo alento. Ara temia
dormir e sonhar, perder-se no caminho do alicerce do abismo, molhar seus pés na
água sob a montanha, gostar de viver no meio do lavarinto, chorar os olhos dos
seus desenhos. Ara sentia-se liberta das trinta moedas, da parentela que
cobiçara desde sempre, a vida toda de Ara, aquela que repousAra sobre o
conforto dos dias, e a outra, a extraordinária, quando Ara compreendera o
mínimo e o essencial. Soubera distinguir todos eles, havia um aquecimento no seu
coração, para aqueles que ficaram na casa dos seus avós paternos, onde seus
antepassados bordavam suas existências e, sua avó, corava diante do olhar do
esposo, fixo na linha e no dedal. O amor era um laço de moebius, que Ara
gostava de reproduzir com suas mãos, em papel, arame ou fitas distraídas.
***
PS:
SOBRE ARA - Ao
ler Ara do seu Gênesis, percorri uma geografia escatológica de cabo a rabo.
Transformadora leitura. Como Rilke definia o escritor, como aquele que não
conseguiria seguir sem o fazer da escrita, assim te percebo, alguém ferroada
por uma espécie de sina, felizmente. Demonstra um conhecimento do homem e sua
vida, profundo e honesto. Um enorme prazer em lê-la. Me sinto privilegiado mais
uma vez pelos presentes caros dessa vida. E você o mais recente deles. Forte
abraço minha amiga. De quem muito te admira, Celso Grecov. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
POEMAS
DE CYANE PACHECO
Tudo se aproxima do centro
Todos os tempos como uma vertigem
Veloz deserção do inábil gesto
Dessas invenções que irrompem
Miram
Sendo voragem e horror
Meticulosa guia
Lume opaco
Sorte que temos que engolir
Garganta a dentro
Faca e riso
Depois a morte acaricia
E o sono vem
Todos os tempos como uma vertigem
Veloz deserção do inábil gesto
Dessas invenções que irrompem
Miram
Sendo voragem e horror
Meticulosa guia
Lume opaco
Sorte que temos que engolir
Garganta a dentro
Faca e riso
Depois a morte acaricia
E o sono vem
Cada vez mais vital
A presença da grade
Venerável estranheza
Diante do conhecido labirinto
Ela disse-me sobre os enganos
Eu não levei-a a sério
Há torres de concreto
Países espumando de ódio
Outros acolhendo
Nos lugares do poema
Sou nigérrima nessa terra de brancos
Varandas que mais se parecem abismos
Posso ir embroa
Ou ficar sem entender
Nesse país
Nossa lógica estranha
Respondi à grade
Que havia morrido
Sem uma gota d'água
Nunca deixaria aquela célula
Como se fôssemos subversivos
Sendo assim, vou domir enquanto choro
A presença da grade
Venerável estranheza
Diante do conhecido labirinto
Ela disse-me sobre os enganos
Eu não levei-a a sério
Há torres de concreto
Países espumando de ódio
Outros acolhendo
Nos lugares do poema
Sou nigérrima nessa terra de brancos
Varandas que mais se parecem abismos
Posso ir embroa
Ou ficar sem entender
Nesse país
Nossa lógica estranha
Respondi à grade
Que havia morrido
Sem uma gota d'água
Nunca deixaria aquela célula
Como se fôssemos subversivos
Sendo assim, vou domir enquanto choro
Tão leve o sopro dos primeiros dias
Sabemos como é a droga da paixão
Deixa-nos cambaleantes
Quase etéreos
Sobrevoando crateras
Do vulcão à porta do inferno
E depois a vida corta-nos a cabeça
Sem dó como se fôssemos bruxas do medievo
Sobreviver é chorar cada vez menos
Até atingir a secura da boca
Dos áridos olhos sob a cama
Retomar à vida
Como se nunca tivesse existido o vento
E a gravidade é excessiva
Na tessitura das asas
Ver o mundo cruel de cima
Voar como a flor que se multiplica suspensa
Lembrar da fundura das primeiras décadas
Adoecia
Pensava em morte
Nas cápsulas fatais
Nos soníferos
Depois seguia rindo
Sobrevivendo aos dentes
Às estacas nas costas
Aos segredos e às tolices dos meninos
Como é fútil querer seriedade nesse sentimento
Hoje nem morte
Nem flor ao vento
O eixo e a pena
Aquilo que equilibra a ampulheta
Sabemos como é a droga da paixão
Deixa-nos cambaleantes
Quase etéreos
Sobrevoando crateras
Do vulcão à porta do inferno
E depois a vida corta-nos a cabeça
Sem dó como se fôssemos bruxas do medievo
Sobreviver é chorar cada vez menos
Até atingir a secura da boca
Dos áridos olhos sob a cama
Retomar à vida
Como se nunca tivesse existido o vento
E a gravidade é excessiva
Na tessitura das asas
Ver o mundo cruel de cima
Voar como a flor que se multiplica suspensa
Lembrar da fundura das primeiras décadas
Adoecia
Pensava em morte
Nas cápsulas fatais
Nos soníferos
Depois seguia rindo
Sobrevivendo aos dentes
Às estacas nas costas
Aos segredos e às tolices dos meninos
Como é fútil querer seriedade nesse sentimento
Hoje nem morte
Nem flor ao vento
O eixo e a pena
Aquilo que equilibra a ampulheta
Tem data marcada para soltar
A porta
O riso
As asas
Durante sete anos
Andou sozinha
Era um lago imenso e tranquilo
Uma estrada de fogo brando
Caminhando noutros silêncios
Ali
Não sentia travar a saliva na garganta
Nem o abraço que quebra os ossos
Em um vínculo ambíguo
Seguia como se fosse um velho monge
Hoje sabe que não deu um passo
Quando o alvoroço tomou conta dos seus dias
Depois daquele beijo
Nas infinitas horas dessa fina teia
E seus tortuosos percursos
Sozinha não precisava olhar para os lados
Receber notícias intempestivas
Tecer urdidura de desapego
Vestir um manto de brasa
Enturvar diante do riso
Se soltar a porta
Verá que a realidade é outra
Não emprestará mais seus olhos
Seu afeto potente
Sua valentia para defender
O descuido
A mantença dos afetos tristes
Que a si não pertencem
Nem escutar os assobios à noite
Dos poemas tornados flechas
Quando o homem caminha
Nas furtivas janelas noturnas
Enjeitar a montanha-russa rangendo
Diariamente nos seus ouvidos
E ele não crê que a alva figura
Mira dos seus cuidados
Também pode ser feita de lama
E goteja precisamente sobre minha cabeça
A porta
O riso
As asas
Durante sete anos
Andou sozinha
Era um lago imenso e tranquilo
Uma estrada de fogo brando
Caminhando noutros silêncios
Ali
Não sentia travar a saliva na garganta
Nem o abraço que quebra os ossos
Em um vínculo ambíguo
Seguia como se fosse um velho monge
Hoje sabe que não deu um passo
Quando o alvoroço tomou conta dos seus dias
Depois daquele beijo
Nas infinitas horas dessa fina teia
E seus tortuosos percursos
Sozinha não precisava olhar para os lados
Receber notícias intempestivas
Tecer urdidura de desapego
Vestir um manto de brasa
Enturvar diante do riso
Se soltar a porta
Verá que a realidade é outra
Não emprestará mais seus olhos
Seu afeto potente
Sua valentia para defender
O descuido
A mantença dos afetos tristes
Que a si não pertencem
Nem escutar os assobios à noite
Dos poemas tornados flechas
Quando o homem caminha
Nas furtivas janelas noturnas
Enjeitar a montanha-russa rangendo
Diariamente nos seus ouvidos
E ele não crê que a alva figura
Mira dos seus cuidados
Também pode ser feita de lama
E goteja precisamente sobre minha cabeça
Crava tachas de dor no rosto
Como rugas que o olhar sulca
Como rastro do amor na carne
Cravo de ferro que sustenta o púlpito
Discurso de palavras que trincam
Cratera imensa dentro do peito
Abertas forquilhas de desalento
Aperto na garganta
Sopro de desespero
Travo azedo de bifurcadas estranhezas
Drama que afasto porque brinco
Lágrima seca no lenço
Verdade e mentira
No insuspeito beijo
Porta sustentada
Promessa cumprida
Açoite de insanos estribilhos
Prismas distintos do desenho que existe
Presente bífido
Como a língua da serpente
Trilho o caminho da minha casa
Com o lastro frágil
Do meu pé doente
Brincadeiras dos sábados chuvosos
Ardis dos dias de feira
Solidão entrecortada que fadiga
Os braços
As pernas
O alvoroço que cessa
Sobre as paralelas que nunca se encontrarão
Como um dia se disseram
Porque gravei nas suas costas
O meu abraço
Se eu for embora
Pela extensão enfermadiça da espera
Porque a versão contradiz o gesto
Ou porque discordo da rôta explicação
Sei que será diverso o meu destino
Que não desvirtuei o voo ou o desejo
Porque não temo
Não minto
Não descarrilho
Nem destroço aquilo que acredito
Como rugas que o olhar sulca
Como rastro do amor na carne
Cravo de ferro que sustenta o púlpito
Discurso de palavras que trincam
Cratera imensa dentro do peito
Abertas forquilhas de desalento
Aperto na garganta
Sopro de desespero
Travo azedo de bifurcadas estranhezas
Drama que afasto porque brinco
Lágrima seca no lenço
Verdade e mentira
No insuspeito beijo
Porta sustentada
Promessa cumprida
Açoite de insanos estribilhos
Prismas distintos do desenho que existe
Presente bífido
Como a língua da serpente
Trilho o caminho da minha casa
Com o lastro frágil
Do meu pé doente
Brincadeiras dos sábados chuvosos
Ardis dos dias de feira
Solidão entrecortada que fadiga
Os braços
As pernas
O alvoroço que cessa
Sobre as paralelas que nunca se encontrarão
Como um dia se disseram
Porque gravei nas suas costas
O meu abraço
Se eu for embora
Pela extensão enfermadiça da espera
Porque a versão contradiz o gesto
Ou porque discordo da rôta explicação
Sei que será diverso o meu destino
Que não desvirtuei o voo ou o desejo
Porque não temo
Não minto
Não descarrilho
Nem destroço aquilo que acredito
Talvez eu mude a próxima manhã
Que se esboça no silêncio
O sono não veio
Ainda não encontrei
Aqueles olhos sob a cama
Uma doente geme no quarto ao lado
Lamento a doença
A fome
Os pobres de espírito
Os que sentem frio nas ruas
O quanto somos impassíveis
Plasmados numa espécie de letargia
Não sou feita de arame e seixos
Quando fecho os olhos
Corro todos os riscos
Ainda assim
Levo a vida
Como quem carrega um objeto sagrado
E não me quebro
Como um verbo de vidro
Que se esboça no silêncio
O sono não veio
Ainda não encontrei
Aqueles olhos sob a cama
Uma doente geme no quarto ao lado
Lamento a doença
A fome
Os pobres de espírito
Os que sentem frio nas ruas
O quanto somos impassíveis
Plasmados numa espécie de letargia
Não sou feita de arame e seixos
Quando fecho os olhos
Corro todos os riscos
Ainda assim
Levo a vida
Como quem carrega um objeto sagrado
E não me quebro
Como um verbo de vidro
O silêncio
Quer dizer que não há nada ali
Nem uma flor
Nenhum solo de palavras propícias
O paradoxo de emudecer
E amar como se fosse o ultimo
As horas se dilatam
Mas não esperam imensas
Poças de lágrimas
Esmiuçando a saudade
Nem lastimosas como às de antigamente
São giros dos ponteiros da ausência
Túmulos da quietude do sono
Como se fossem ásperas escolhas
Mas não arranham o meu corpo
São vazios rigorosos do vento
Ouço uma música na fresta da janela
Um assobio
Que gela minha nuca
E vejo passar diante de mim
Um mórbido esquecimento
Palimpsesto de meras desculpas
A dor não me encerra nesse lugar
É dissipada com o poema
Não rumino o passado
Mudo
Quer dizer que não há nada ali
Nem uma flor
Nenhum solo de palavras propícias
O paradoxo de emudecer
E amar como se fosse o ultimo
As horas se dilatam
Mas não esperam imensas
Poças de lágrimas
Esmiuçando a saudade
Nem lastimosas como às de antigamente
São giros dos ponteiros da ausência
Túmulos da quietude do sono
Como se fossem ásperas escolhas
Mas não arranham o meu corpo
São vazios rigorosos do vento
Ouço uma música na fresta da janela
Um assobio
Que gela minha nuca
E vejo passar diante de mim
Um mórbido esquecimento
Palimpsesto de meras desculpas
A dor não me encerra nesse lugar
É dissipada com o poema
Não rumino o passado
Mudo
E se estiverem todos temerosos
De me revelar a verdade
Por isso silenciam
Fecham os olhos
Se afastam
O que eu faria
Caso soubesse de tudo
Se ligasse os pontinhos
Abrisse o papel sanfonado
E visse o desenho
Como fragmentos de um enigma
Biombos de um labirinto corrompido
Se estiverem todos temerosos
De me avisar sobre à onda
De um mar diverso
Mãos de títeres
Fazendo do meu sonho
Arremedo e desalinho
Se o pequeno deus
Ri e silencia
Intuo e avisto o negativo do seu gesto
Há uma única pessoa
Que me atualiza e não cessa
Insiste e não desgarra
Porque confessa nunca ter terminado a festa
E dança
E esmiuça detalhes que cansam minha vista
Se há a manutenção do delírio
Que não seja meu
Posto que não existe
Carrego uma vela
Iluminando os meus pés
Nunca me perdi no caminho
De volta de qualquer destino
Escolhi ir trazendo em uma das mãos o fio
Diante das fabulações
Eu me inclino e assento
Meus sinais e palavras de vera
Se um vulcão plantado minha garganta
Expele a lava das perguntas
Cravo em meu peito um abismo
E trago todas as respostas
Que encontrei no intinerário da volta
Tudo torna-se instável
Em um segundo
Vamos da distância mínima
A nos perder de vista
Amores sem intimidade
Ou unidos um dentro do outro
E se estiverem todos temerosos
Porque sabem disso
De me revelar a verdade
Por isso silenciam
Fecham os olhos
Se afastam
O que eu faria
Caso soubesse de tudo
Se ligasse os pontinhos
Abrisse o papel sanfonado
E visse o desenho
Como fragmentos de um enigma
Biombos de um labirinto corrompido
Se estiverem todos temerosos
De me avisar sobre à onda
De um mar diverso
Mãos de títeres
Fazendo do meu sonho
Arremedo e desalinho
Se o pequeno deus
Ri e silencia
Intuo e avisto o negativo do seu gesto
Há uma única pessoa
Que me atualiza e não cessa
Insiste e não desgarra
Porque confessa nunca ter terminado a festa
E dança
E esmiuça detalhes que cansam minha vista
Se há a manutenção do delírio
Que não seja meu
Posto que não existe
Carrego uma vela
Iluminando os meus pés
Nunca me perdi no caminho
De volta de qualquer destino
Escolhi ir trazendo em uma das mãos o fio
Diante das fabulações
Eu me inclino e assento
Meus sinais e palavras de vera
Se um vulcão plantado minha garganta
Expele a lava das perguntas
Cravo em meu peito um abismo
E trago todas as respostas
Que encontrei no intinerário da volta
Tudo torna-se instável
Em um segundo
Vamos da distância mínima
A nos perder de vista
Amores sem intimidade
Ou unidos um dentro do outro
E se estiverem todos temerosos
Porque sabem disso
Não foi a imagem das palavras
Adversas companhias
Nas noites insulares
Nos estranhamentos táticos
No medo do afeto
Resistindo entrar
Nas temerosas esquifes
Rumo à garganta da terra
Foi aquela escada
Que jazia no calabouço
Três assentos e minha recusa
Em descer com passos lentos
E ali ter com eles e seus desvios
Sobre suas cabeças
Caminhei para não cair novamente
Nas arapucas armadas
Atenta à porta da iluminada saída
Que para mim seria entrada
Esperando mais um presságio
Acendendo uma vela derradeira
Banhando com cores quentes
As sangrentas paredes do sonho
Corte clínico e lento
Altruísmo desperdiçado
Como o arremesso
Daquelas velhas pérolas
Com as quais há meses
Alimento uma mulher esfomeada
Que bate diariamente
À minha porta
Delirando que ali é seu abrigo
Também não é o meu
Estou passado uma chuva
Porque assim é o tempo
Quando aquele lugar se for
Seguindo sua sina
Não é uma casa
Um barco
Uma prisão
A areia do mar
O lençol de lava de um vulcão
Talvez seja uma marquise
Há uma candeia na saída
Indicando o caminho futuro
Mas o desfecho se arrasta
Recua
Se faz de morto
Mente para si e insiste
Será que ouviu sobre o fim
Ou foi dito baixinho
Uma balbúcia
Um fio de voz titubeante
Quase inaudível
Detrás das janelas imóveis
Embrulhado em macios novelos de lã
Querendo o insuportável
Reparo do dano e dos diálogos de junho
Sabe que a mulher revelou
Que jamais sairia dali
Foi quando a achou vária
Sabia que ela aprendera de cor
Sobre um aquecimento da alma
Que sem ele soprado
À mesma hora da madrugada
A faria morrer de frio
Se tiver que seguir sozinha
Suas pernas vacilam
Nesse lugar reflito sobre nossas diferenças
Sobre o acúmulo dos diálogos inveterados
Que continua tendo oposto ao meu silêncio
Esgarçado tecido que tremula
E me faz dormir profundamente
É cansaço o que eu sinto
Fastio dessa emenda viscosa que se arrasta
Há aquela escada que salva
Os condenados
Estou em outro lugar do caminho
Daqui leio o que recebo
Água fervente
Riscos de lâminas na pele
Tóxica rotina de velhos vícios
As palavras que me manda
São revoadas de corvos adestrados
Que se assentam em meu colo
Amplio à indiferença e os afugento
Adversas companhias
Nas noites insulares
Nos estranhamentos táticos
No medo do afeto
Resistindo entrar
Nas temerosas esquifes
Rumo à garganta da terra
Foi aquela escada
Que jazia no calabouço
Três assentos e minha recusa
Em descer com passos lentos
E ali ter com eles e seus desvios
Sobre suas cabeças
Caminhei para não cair novamente
Nas arapucas armadas
Atenta à porta da iluminada saída
Que para mim seria entrada
Esperando mais um presságio
Acendendo uma vela derradeira
Banhando com cores quentes
As sangrentas paredes do sonho
Corte clínico e lento
Altruísmo desperdiçado
Como o arremesso
Daquelas velhas pérolas
Com as quais há meses
Alimento uma mulher esfomeada
Que bate diariamente
À minha porta
Delirando que ali é seu abrigo
Também não é o meu
Estou passado uma chuva
Porque assim é o tempo
Quando aquele lugar se for
Seguindo sua sina
Não é uma casa
Um barco
Uma prisão
A areia do mar
O lençol de lava de um vulcão
Talvez seja uma marquise
Há uma candeia na saída
Indicando o caminho futuro
Mas o desfecho se arrasta
Recua
Se faz de morto
Mente para si e insiste
Será que ouviu sobre o fim
Ou foi dito baixinho
Uma balbúcia
Um fio de voz titubeante
Quase inaudível
Detrás das janelas imóveis
Embrulhado em macios novelos de lã
Querendo o insuportável
Reparo do dano e dos diálogos de junho
Sabe que a mulher revelou
Que jamais sairia dali
Foi quando a achou vária
Sabia que ela aprendera de cor
Sobre um aquecimento da alma
Que sem ele soprado
À mesma hora da madrugada
A faria morrer de frio
Se tiver que seguir sozinha
Suas pernas vacilam
Nesse lugar reflito sobre nossas diferenças
Sobre o acúmulo dos diálogos inveterados
Que continua tendo oposto ao meu silêncio
Esgarçado tecido que tremula
E me faz dormir profundamente
É cansaço o que eu sinto
Fastio dessa emenda viscosa que se arrasta
Há aquela escada que salva
Os condenados
Estou em outro lugar do caminho
Daqui leio o que recebo
Água fervente
Riscos de lâminas na pele
Tóxica rotina de velhos vícios
As palavras que me manda
São revoadas de corvos adestrados
Que se assentam em meu colo
Amplio à indiferença e os afugento
Comigo
Só
Mente
O olho cinza
Da noite
Exata
Mente
A luz que amanhece
Esquece
À tarde
E dorme
Só
Mente
O olho cinza
Da noite
Exata
Mente
A luz que amanhece
Esquece
À tarde
E dorme
EPÍSTOLAS
OBSCENAS - 1: Meu caro e amado L.A, Agora,
quando os ponteiros do relógio do nosso dia, marcou em mim, a saudade do teu
corpo, nessa mesma hora do meu regresso da rua, onde fui comprar um vinho para
nós dois, também estás comigo, na memória da minha pele. Nessa hora que me
inflama tua falta e eu neblino, não estás ao meu lado, eu me sento e suspiro
percorrendo a memória dos beijos, memórias nuas que carrego e refino para o
próximo encontro. Nada posso fazer, senão esperar os próximos dias, quando
chegarás e ouvirei mais uma vez tua voz. Nesse instante, separo os meus
tímpanos do mundo e os aproximo de ti, dos teus sussurros no meu ouvido, dos
teus gritos de gozo. Talvez eu tenha insultado as dores alheias, mas os dois
sabem que há uma geleira entre eles e o nosso desejo, primordial e antigo, enquanto
estávamos vagando, perdidos de nós mesmos. Quero ouvir-te, desde que aordo até
a hora em que velas o meu sono, de ninguém mais me agrada ouvir a voz. Perto de
ti, a onça adormece, as folhas assistem o lançamento do foguete, sinto-me livre
e aceito o teu convite. Voaremos ainda mais, meu amor, para galáxias distantes,
ou sentaremos em nossa cama, morrendo de rir. Tu deverias estar agora, comigo,
eu deitaria minha cabeça em teu peito e me dirias sobre os teus sonhos, tuas
invenções, tua solidão e teus mistérios. Devo dormir e sonhar contigo, sempre
voltando para saber por onde andas, o que fazes distante de mim, se pensas
aquelas indecências que falamos baixinho, dessas de fazer corar as dançarinas
de cancan. Demorei para te dizer dessa saudade, parei na metade da escrita,
suei ao lembrar-me daquele dia entre a sala e o corredor, também na casa dos
nossos amigos. Espero que me mandes algumas linhas, escondidas em teus
escritos, gosto desse teatro de sombras, dessa brincadeira contigo. Como queres
que eu assine? Ocyane? Bice? Amorzinho? E tantos nomes com os quais me chamas,
num enredo de puro encantamento. Melhor saber que estou aqui, com todos os
nomes e sem nenhum, o que me falta é teu corpo, tua alma, teu espírito.
POEMA
Da Série Erótica - para LA:
Abro os olhos e ele está ali
Minha boca o encontra
Seguimos viagem
O tempo e os suores
Não há cansaço
Nem mesmo o tempo está ali
Algumas vezes voltamos a dormir
Noutras recomeçamos
Como uma espira
Uma cobra engolindo a própria cauda
Uma mandala que se sonha
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 2: Meu menino-mar L.A, Sei o quanto és
silente, estando longe de mim. Quantos dias, desde o nosso último encontro,
desde aqueles beijos e afagos indecentes. Sequer, recebi algumas linhas
escritas, tuas cartas que me comovem e as vejo escondidas, guardadas para mim.
Também sei que os cavalos descansam demais nos positons e, com isso, atrasam
nossos diálogos, deixando aflita. Imagino que pensaste que eu teria ido para o
sertão ou viajado para visitar nossos amigos, enquanto eu estou em casa,
curando-me de uma distensão muscular, não te vexes, não é nada sério. Até a
próxima sexta feira, quando novamente estaremos juntos, eu te direi dos beijos
guardados em minha boca, das palavras na minha garganta, de toda a extensão do
meu corpo, para brincares como um menino. Também vadio em teu corpo, que me
abraça e me inflama, sinto tanto essa ausência durante a semana. Digo que é
preciso mais tempo para nós dois, três dias apenas não bastam, sangro, como
sangram os açudes, de tanto alvoroço quando penso em ti. Cada carícia tua fica
marcada na memória da minha pele, já te disse isso, nem falo tanto do cheiro
que volta impregnado em meus cabelos, em minha roupa, cheiro de perfume e sexo.
Diariamente, escrevo para ti, espero que leias ao acordares, antes de dormir e
quando sentires minha falta, ou seja, meu amor, durante todo o dia. Escrevo
linhas indecentes, devassas, libertinas, como nossos abraços e aquilo que
fazemos, em nosso quarto, quando estamos nus e juntos. Esses são os escritos mais
impudicos e eu os escrevo, a velhice traz alguns apanágios, e eu os aproveito.
As palavras fogosas, te abraçam, mesmo distante, como se falassem junto de ti,
murmurando e ouvindo os teus gemidos. E, o teu grito, a música do teu grito. Há
outras palavras, acanhadas e vestidas, saem a passear aos domingos, parece que
vão à missa, mas são ímpias, ou melhor, acreditam no sagrado, no fractal, na
mônada, na substância. Essas palavras adultas, quando nuas, devassas e, quando
vestidas, quase castiças, surgem que não há quem diga, o quanto se deleitam
quando estão contigo. Sou essas duas e muitas mais, todas tuas, querendo fazer
do teu gozo, meu abrigo. Sabes o que sinto por ti, o que podes fazer comigo,
sabes da extensão dos nossos lugares no mundo e, do que me instiga para que
criemos um mundo, sabes de tudo. Se embargamos nossas vozes, deve-se à
morosidade do desnovelo, dessa enfermiça atitude, que nos agasta mas, também
nos une. Sei que não darás importância às garras da onça, arranhando teu
sossego. Tanto faço durante os dias em que estás longe, que abate-me um
cansaço, um desânimo e, só recobro minha força, quando minha boca toca à tua,
meu corpo encontra o teu (entre a sala e o outro vão, em nosso quarto, até
sobre a mesa, quando paramos a leitura - como fizeram Francesca e Paolo).
Quantos dias de espera, que parecem séculos, até que venhas me abraçar, que
cantes para eu dormir, aninhada em teus braços, parece que não chega nunca,
logo os ponteiros aceleram e tens que voltar. Tu me disseste, que um dia não voltarás,
que ficarás comigo, será esse um dia de festa. Nesse momento, é tudo o que
quero, mas sei que não adianta meu lamento, então espero, são apenas cinco
dias, eu me engano achando que é tempo breve, como aqueles em que estamos
juntos. Prometo não chorar dessa vez, quero mirar teus olhos de índio, que são
meus olhos acesos, as gemas brilhantes que me guiam. Imagino que no próximo
encontro, dirás que me amas ou ficarás mudo, e deixarás nossos corpos falarem
da alegria imensa de estarem juntos, da saudade infinita desses dias distantes.
Tua Bice
POEMA
Da Série Erótica (2) - para
LA:
Trepida o solo
Da memória
Aquela cama
Aquela manta azul
Torso
Mãos
O que vês em mim
Tudo teu
Todas as manhãs
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 3: Meu amorzinho L.A, Espero que não tenha
chovido onde tu estás, sei que ficamos sem contato, se ao menos, os cavalos
atravessassem aquela ponte, mas não, até eles temem fazer isso. Sei que o verei
em breve, sabendo que será melhor nosso encontro, como tem sido, é crescente nosso
desejo, encaixamos em tudo, até nos diálogos, nossa iinfinita interlocução, mas
sabes que não falo só nisso, mas nas viagens de foguete, que me levas sempre.
Sabes o quanto fico solitária sem ti, leio e releio cada palavra que me mandas,
são uma espécie de mantra, de música sagrada aos meus ouvidos. Há ditos que não
compreendo bem, mas não me exaspero, me dirás quando estivermos juntos. Sei que
ficarás exultante quando leres esta missiva, se os fogos forem aqueles de
quando acordas, não esqueças a candeia acesa. Se eu sinto saudades de ti, minha
língua sente muito mais. Até breve. Te amo, meu menino.
Tua Ocyane
POEMA
Da Série Erótica (3) - para
LA:
Quando olhei aquele menino
Com os meus olhos de fera
Não desfiz destino alheio
Nem me atravessei no meio
Do que parecia e não era
Se há vã quimera na cova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Não desfiz destino alheio
Nem me atravessei no meio
Do que parecia e não era
Se há vã quimera na cova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Se ele pisou no freio
Se o dia é clandestino
Eu sei que aquele menino
É o meu amor de vera
Se viemos de outra esfera
Se foi surpresa de alcova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Se o dia é clandestino
Eu sei que aquele menino
É o meu amor de vera
Se viemos de outra esfera
Se foi surpresa de alcova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Se construímos o paraíso
Se não nos falta a conversa
A saudade nos consome
Eu sei da força inversa
Torcendo para caírmos
Sabendo que nos reprova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Se não nos falta a conversa
A saudade nos consome
Eu sei da força inversa
Torcendo para caírmos
Sabendo que nos reprova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Vem de outra cidade
E eu seguro a porta
Também me faço de morta
Outridade é minha trova
Ele é meu deus menino
Sendo estrela é supernova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
E eu seguro a porta
Também me faço de morta
Outridade é minha trova
Ele é meu deus menino
Sendo estrela é supernova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Ele também é o meu mar
Por ele invento um lugar
O meu olhar é traquino
Fui feita para ele amar
Quem diz isso é o destino
Assim ele me renova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Por ele invento um lugar
O meu olhar é traquino
Fui feita para ele amar
Quem diz isso é o destino
Assim ele me renova
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Se ele findou minha espera
Chegando como um cometa
Não careci de luneta
Mudei a atmosfera
Deixou de ser Casanova
Para ser meu menino
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Chegando como um cometa
Não careci de luneta
Mudei a atmosfera
Deixou de ser Casanova
Para ser meu menino
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
Quando longe dele eu fico
A saudade é tamanha
Perto dele faço bico
Ele me mata de manha
E me leva para a alcaçova
Para eu ouvir o seu trino
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
A saudade é tamanha
Perto dele faço bico
Ele me mata de manha
E me leva para a alcaçova
Para eu ouvir o seu trino
Tenho que tocar o sino
E repetir o mesmo hino
Era velha
Agora Era nova
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 4: Meu menino-deus L.A, Acabei de voltar do
restaurante com minha mãe, longe de ti, sinto fastio, nada me apetece. Desde
aquela quinta feira, sinto-me doente, fiz todos os exames e os médicos
concluíram que é cansaço excessivo, distenção muscular, também pela leitura das
avançadas páginas do kama-sutra, que li contigo e, na nossa idade, esse
desmesurado desejo, deixa vestígios nos dias seguintes. Tive que escrever no
papel de pão, não encontrei aquele bloquinho que guardamos na biblioteca, sei
que é um papel horrível. Mas, somos intimamente, anarquistas, disso sabemos e
nos afinamos nisso. Vivemos em uma biblioteca, com cama, fogão, chuveiro e luz
elétrica, fora esses vãos, nada faz nossa casa parecer com aqueles lares
certinhos, aquelas casas doentes. Trazemos pouco hábitos das nossas casas
paternas, e os que estão mais arraigados, os subvertemos, achando graça disso.
Sabes que meu pai é morto e, é de certo modo, inóspito o convívio diário em
minha casa materna, não que haja violência ou desequilíbrio nesse sentido, mas
pelo modo como a aridez dos afetos, a ausência de outridade, ascende sobre a
leveza dos gestos. Não tenho irmãos, como também sabes, o que torna mais pesada
minha conduta nos dias brancos, tenho uma mãe-outra, que também cuido, dessas
heranças do século dezenove, embora cheia de carinho. Sempre fomos uma família
pequena, um ou outro, ocasionalmente desequilibra os dias, mas não há
malfeitores ou indignos. Apenas duas pessoas frequentam os templos e rezam,
seguindo a crença cristã, uma condução que não compreendo, há clivagem entre a
oração e a prática, vejo isso quase na multidão que avisto. Resisti quando
subtraíram meus pertences, preferi desbravar o mundo, ouvir música, viver
durante tantos anos a duras penas, a me curvar, pedir à benção, capitular
diante dos homens comuns. Iniciei vários estudos, que os dedos de duas mãos não
dariam conta, mas desisti de alguns deles, ganhando essa fama inglória de
colecionar sucessivos abandonos. Quis ir embora para os lugares ermos e
distantes, mas tenho você, me cercando, me convidando para criarmos e voarmos
juntos. Quando você, à noite, desaparece das minhas vistas, dirijo-me à grade,
para fumar um cigarro, pensar em nós, sonhar com melhores dias, recordar todas
as frases que escrevi até aqui. Em poucos segundos, volto para os topos da
minha juventude, nada disso seria possível sem aquele rapaz franzino, que
revestiu o quarto de cortiça e se mudou para aquela rua. Como ser obscena
enquanto escrevo essa carta? Sim, em um átimo, neblino, chovo, trovejo, só ao
me lembrar de ti, da tua voz, das tuas mãos, da tua boca e das viagens cedinho,
que fazemos naquele foguete. Escrevi Ara, que será um livro dedicado a ti e aos
meus filhos, posto que todos os homens estão mortos, digo e repito, depois que
descobri o teu amor. Quase sinto o teu cheiro e lembro-me que escrevi longas
declarações de amor ocultas para ti. Devo dizer que espero apenas o tempo
necessário para te amar sem pressa, mas deves ter um tempo livre de mim, para
saíres caminhando pelo mundo, conhecendo lugares e pessoas. Não espero que
sejas um daqueles homens comuns, provedores e assíduos, por obrigação. Aguardo
o teu desejo, diário, renovado, em nossa vida. Tua curiosidade, teu bater de
asas, essa brisa, esse fogo que me encerra. Sei que não te arrependes de nada,
nem daqueles dias triangulares, inexoráveis, quando tudo doía e deixava marcas
de sangue na ponta dos dedos, maculando as palavras inocentes. Todas aquelas
lembranças, às vezes perturbam, mas nunca me afastei da nossa verdade, jamais
soltei a porta e deixei que entrassem os afetos tristes. Sabes o que me alegra
e aquilo que me desmotiva. No entanto, quando estamos juntos, atestamos uma
assombrosa alegria, uma ebulição, um espalhafato. Nossos corpos juntos, nada
mais perfeito, mais macio. Vês que há em mim, algo terno e melancólico, tens a
conta disso, do quanto foram injustas algumas dores. Por isso, quando te digo
que as granadas não se divertem e, gostas disso, eu as jogaria no mundo, jamais
em ti. Sou avessa à deselegância, à insistência em permanecer onde não mais me
cabe, disso, bem sabes, do quanto minha simplicidade se avulta ao teu lado. Eu
me despojei de todas as máscaras, aquelas coladas à minha pele e às outras que
repousam sobre a cômoda de igreja. Alguns dos nossos amigos, sabem tudo de nós,
talvez não entendam a lógica da nossa espera, do que significa outridade,
evitar as dores alheias. O que nos importa é que estamos juntos e muito
felizes, meu amor, meu menino-mar. Não somos pássaros nas tempestades, temos
uma cama quentinha e um desejo que nela se espalha, sem testemunhas. Não me
apraz te deixar sozinho, com a imagem daquele teu olhar no embarque do trem, teu
olhar exausto de lutar e ter respostas antagônicas. Sei que ninguém jamais se
aproximou tanto do meu eixo, do meu âmago, como também te avistei o mais perto
possível, inaugurando os teus arrepios. Se me espanho, é porque sei o que é
falação, sei quem me foi leal e quem me traiu e, eu te aviso desde sempre, tudo
o que nos acontece e, por alteridade e lembrança de um amor, cegas e esqueces
do essencial. Eu escreveria até amanhã, para falar da saudade e dessa gana que
nos une, que nos move em direção um ao outro. É que não inventaram máquinas
rápidas e sempre derrubo o tinteiro, mas comprarei uma máquina royal para
apressar a escrita e te enviar minhas missivas. Não posso mesurar o que achas
dessa minha sandice, de te escrever tantas vezes ao dia, nos papéis que
encontro à minha disposição, às vezes com algumas manchas (não me perguntes de
quê, que ficarei rubra). Deves me responder com pressa, fico no aguardo das
tuas palavras sinceras e amenas. Oquanto te respeito, não está nas telas, disso
que chamam cinema. Se tu silencias ou dizes algumas frases que conheço ou que
li, vindas nas garrafas, reclamo que isso me angustia, então terás que refletir
sobre o que fazes, afinal, não penso em outra coisa no nosso próximo encontro,
senão em tuas carícias. Sei que não neblinei tanto nessa epístola, nas outras,
trovejarei.
Tua Cy
POEMA
Da Série Erótica (4) para LA:
No momento quase impossível
Quando o gemido
É um rouco grito de morte
Ali eu deixo que tuas mãos
E os teus dedos de lã
Tua pele macia que me inflama
Retire de mim a razão
O pudor antigo
Todos os vestígios de outras mãos
Quando me tocas
Meu amor
Meu menino
Sinto o que jamais senti
Até quase à surdez em relação ao mundo
E quando falas ao meu ouvido
Eu não tenho mais volta
É o tao e o desmantelo
É o teu cheiro
O meu tato
A minha boca
Quando me olhas com todo o desejo
Eu chovo e te banho de beijos
Quando o gemido
É um rouco grito de morte
Ali eu deixo que tuas mãos
E os teus dedos de lã
Tua pele macia que me inflama
Retire de mim a razão
O pudor antigo
Todos os vestígios de outras mãos
Quando me tocas
Meu amor
Meu menino
Sinto o que jamais senti
Até quase à surdez em relação ao mundo
E quando falas ao meu ouvido
Eu não tenho mais volta
É o tao e o desmantelo
É o teu cheiro
O meu tato
A minha boca
Quando me olhas com todo o desejo
Eu chovo e te banho de beijos
Epístolas
Obscenas 5:- Meu amor danadinho L.A, Meu doce e
delicioso menino, ainda bem que sincronizamos nossos horários hoje cedo, adorei
receber tua carta, imagino a saudade do foguetinho ao acordar e não ser
acarinhado como sempre faço aos domingos. Para me dizeres todas aquelas
indecências portentosas, úmidas e causadoras do arrepio de todos os meus pelos,
deves estar te arrastando de saudade, pelos corredores da tua casa, inquieto em
tua cama. Estou fatigada, imaginando tua massagem, tua respiração cadenciada
comigo, e aquelas lambidinhas que me encantam, até ensaiarmos exaustos, outras
viagens. Procuro o teu livro de música, que te remeterei assim que o encontrar.
Temos que marcar uma visita aos nossos amigos, dessa vez, prefiro ficar em
outro lugar para não dar nenhum trabalho a eles, afinal, somos muito tagarelas,
quase insuportáveis, não sei como nos aguentaram. Te amo e sei que sou amada,
belo encontro o nosso.
P.S: Adorei falar contigo agora, é
inacreditável nossa sincronia. Acho até que aquele senhor que vem trabalhar de
barco, e foi além dos outros, tem toda razão sobre essas coincidências.
Tua Onça
POEMA
Da Série Erótica (5) para LA:
Brincando com ele, falei que
ia seguir a beleza dos poemas de Adélia Prado, escrever despudoradamente para
que ele e o mundo, saibam do tamanho do nosso amor. Pois bem. Tenho feito. Tudo
o que escrevo. Não é plágio, é um tipo de coragem de ser feliz. É como uma
borboleta que entendeu a construção das asas, o casulo e, voa ou repousa, sem
medo. Quando ele se aproxima, a borboleta voa para dentro de mim e ele, o meu
amor, sente meu ritmo.
EPÍSTOLAS OBSCENAS 6: Meu amor L.A, Enviei e
chegará em tua posta restante, um mimo para assinalar os meses em que estamos
juntos. Pensei em enviar-te no natal, mas está muito distante e minha ansiedade
não me permitiu adiar. Eu o faço para que me recordes, sempre que manipulares
esse objeto. Não é um presente demasiadamente especial, mas dará mais conforto
aos teus dias e, principalmente às tuas noites. Há algumas madrugadas que não
durmo, pensando se irás gostar, qual o papel do embrulho, se é da cor que mais
gostas e até mesmo se tanto precisas. De uma coisa, tenho certeza: ficarás deveras
encabulado ao abrires esse pacote, creio que jamais pensarias em tal ousadia de
minha parte, em tanta indecência numa só pessoa, pois bem, sou tua e me sinto à
vontade para fazê-lo. Será segredo entre nós dois. É algo que derreterá teu
coração, que por guardar tantas dobras dentro dele, casualmente, faz às vezes
de uma pedra sagrada. Se gostares, serei a pessoa mais radiante do mundo,
gostaria de ver tua expressão ao receberes essa maravilha para nós dois. Deves
ter cuidado, é um tanto frágil, nem deves deixá-lo muito tempo aceso. Também
poderia parecer um livro, desses antigos, com páginas de papel, que sobreviverá
a todos os tempos, depois da morte do neto do teu bisneto e dos filhos dele.
Quero ficar enrodilhada em ti, nem me importo mais se me chamam serpente ou
outras coisas tolas, apenas te quero meu e perto, tão perto que nossos olhos
tornem-se um, no meio da testa, ciclopes desejantes e libidinosos, loucos um
pelo outro, é isso que espero de ti e da vida. Depois da minha morte, espalhes
minhas cinzas ou me transformes em um diamante, para me pendurares em teu
pescoço. Gostaria de sentir o sopro divino, uma rosa negra perfumando a solidão
e a estranheza da cidade que escolheres. O que parece discrepante em mim, é que
gosto muito de literatura, sabendo que és genial, o mais inteligente que
conheci nessa vida, também inventas palavras e escreves todos os dias. Estou
aqui, contando as horas para te abraçar e te despir. Vem logo, não imaginas a
falta que sinto, o quanto neblino quando me invades o pensamento.
Tua Traquina
POEMA
Da Série Erótica (6) para LA:
Uma gota salgada
Na ponta da língua
Não é uma lágrima
É o amor cumprindo sua sina
Nessa vida o maior
Repito que para sempre nutra
Os meus olhos e o kama sutra
Corpos lavados de suor
Perco uma espécie de gravidade
Somem todos os eixos
Os músculos dão-se aos desleixos
Ele é minha divindade
Às vezes choro
E não percebo essa emoção
São os seus afetos pagãos
Que cada vez mais eu imploro
Sei que ele também
Desconhecia tamanha viagem
A colisão foi nossa passagem
E o deleite nos sobrevém
Na ponta da língua
Não é uma lágrima
É o amor cumprindo sua sina
Nessa vida o maior
Repito que para sempre nutra
Os meus olhos e o kama sutra
Corpos lavados de suor
Perco uma espécie de gravidade
Somem todos os eixos
Os músculos dão-se aos desleixos
Ele é minha divindade
Às vezes choro
E não percebo essa emoção
São os seus afetos pagãos
Que cada vez mais eu imploro
Sei que ele também
Desconhecia tamanha viagem
A colisão foi nossa passagem
E o deleite nos sobrevém
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 7: Meu único amor L.A, Te escreverei horas e
horas, quero ser a tua mais perspicaz leitora, acompanhar a velocidade do teu
pensamento (como nas nossas conversas), descobrir onde escondes os bilhetes,
revelas os palimpsestos, apagas as datas, exageras, onde desejas todas nós e
nenhuma ao teu lado, nos dias mais quentes da tua solidão. Quero tua boca em
mim, enquanto te leio e descubro em ti os teus mistérios, teus enigmas, cada
dia mais, quando me aproximo do teu centro. Para ti, inventarei palavras e
precipícios, redirecionarei os ventos, idearei dialetos para dizer que te amo
em língua diversa, que mais ninguém saiba, só tu, meu amor, meu imenso desejo.
Farei um vestido da cor que me disseste para aquela brincadeira indecente,
terei a coragem que teve Adélia, se me perguntarem sobre o que fazemos nus,
juntos e traquinos. Não posso, ainda, estar contigo a toda hora, então te
espero na cama, na poltrona ou naquela cadeira da nossa sala, onde escreves. Leve-me
contigo para onde fores, até mesmo para os lugares que não me segredas e foges.
Eu, meu amor, não te esqueço nunca, nem quando durmo e sonho, também ali, estás
comigo. Sim, tenho sonhos devassos e voluptuosos, de uma eroticidade que gostas
de ouvir, que te enternece. Quero ser menos tola, escrever sobre outros
assuntos, mas desde que te vi, nada mais me parece digno do meu interesse,
exceto tua vida, nosso amor e o que inventamos juntos. Sempre lutei contra as
dores, que nem deviam estar presentes, eu te espero, meu amado, sei que virás e
criaremos várias portas de saída para nossa loucura, para os nossos
pensamentos. Nunca te esqueças de mim, nem me deixes sozinha. Eu aceitei voar e
não quero mais sair de perto de ti, porque acho que é um amor subversivo, duas
verdades cruas e delicadas, um complexo jogo de espelhos. Um dia tu irás
embora, ou eu te deixarei, mas essa ideia é insuportável para mim, nunca olhei
para trás, nunca te desabriguei, nem menti para ti. Trouxeste-me o desenho, a
fotografia, a literatura e o melhor de tudo: a respiração e o riso. Plantei
árvores em volta de nós, menos um pé de esperança, como fez aquela moça, que
não é aquela outra, mas uma presa para sempre à cama. Eu não perguntarei se tu
voltarás, sei que sentes o mesmo chamado em teu corpo, a mesma pergunta em tua
carne, como sinto na minha: Vem, tremo ao pensar em ti, tua imagem em minha
memória, me deixa em chamas.
Teu amorzinho
POEMA
Da Série Erótica (7) para LA:
Depois que ele me disse que
meu nome era Bice, tornei-me ainda mais o que sou: uma onça mansa, quase
gueixa, uma manteiga derretida, uma mulher apaixonada, uma velha buscando ser
sábia e resiliente, sua brincadeira na vida, uma monja, sua interlocutora, sua
musa, sua companheira, uma menina traquinas, sua melhor amiga, sua chef de
cozinha, seu playground, seu destino mais tranquilo, com quem ele enlouquece,
se aborrece e ri. A propósito, eis uma bela historinha sobre nós dois. Essa é a
parte que mais me incendeia.
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 8: Meu amor L.A, Meu pequeno, como se deu essa
paixão tão abruptamente e, jamais arredou de nós, têm crescido a cada dia e me
deixando animada para criar nosso universo privado, nossas invenções públicas?
Como pude, no primeiro momento em que senti o gosto da tua saliva, te amar tão
intensamente como jamais havia me ocorrido? Eu também senti que minha vida me
abandonava, eu me deixava ir em tua direção, me despojando das preocupações,
das fadigas, dos desgastes (inclusive daquele que, por outridade, me disseste
que fazia parte do passado), eu então deixei os afetos tristes e corri para os
teus braços, onde descanso e sonho. Nunca me ocorreu que poderia ser tão
arrebatador fazer amor dessa maneira, trazendo a comunhão como sagrado, para o
corpo/alma/espírito. Nosso círculo de duas cores, nossa mandala de equilíbrio
que gira e ao se mover, constrói as imagens que precisamos para seguirmos. Em
nosso tapete, ao lado da nossa cama, jaz o passado, o presente, o futuro, todos
os tempos possíveis, o que torna o encontro, por si só, uma vitória dos
devires. Posso repetir para ti, aas palavras vindas de alguém que também me
ensinou a não ser uma mulher (dessas que ao achar que não são iguais, também
não se distinguem, nos gestos e na companhia): "Meu querido, o quer que eu
faça, quer eu trabalhe ou esteja bebendo algo, quer esteja sozinha ou com
outras pessoas, você sempre está em meu coração", sim, isso te falei nas
primeiras cartas, no quantto te guardo dentro de mim, as impressões dos teus
dedos, das tuas mãos, do teu cheiro e da tua voz, que amo e ouço como um
mantra. Nossos corpos desconhecem a trégua quando estamos juntos, e somos
velhinhos, não o bastante para respirar entre uma viagem e outra nesse
multiverso. Sou uma não mulher, posto que busco subverter os modos de prender,
marcar com ferro, cercar e possuir, como quem possui um terreno, uma casa, um
objeto qualquer, pois bem, sou essa não mulher inteira, que adora brincar
contigo, te acompanhar até cair o último pingo (também do juizo). Quando
estamos juntos, em nossa casa, nada mais sou do que esse desejo ávido,
orgulhoso, ardente, que urge por um abraço, um beijo, por você inteiro
(sem os vestígios da memória). Não desconheço as leis que regem nosso viver,
embora me agaste com a postergação de uma dor extemporânea a nós, que não podemos
mais cuidar, nem cumprir. Houve um engano no início, teremos que reparar e
seguir o que nos cabe, essa nacada da vida que nos sustenta, nos alimenta e nos
move. Sei que me darás um anel e este eu nunca tirarei do dedo, até o fim,
morrerei com ele. Esse aro é simbólico, pode ser feito com os miolos de pão, os
vidros lapidados, com os teus cabelos ou os arames que encontramos naquela
estrada de volta aos domingos. Sei que me acorda um tipo de devoção porque é o
oque vejo em teus olhos, então retribuo, alardeando aos quatro ventos, esse
sopro, esse destino esses círculos d'água que se multiplicam. Nosso amor é
comum de dois gêneros, eu te vejo em mim e sei que me vês, em ti, nas tuas
atitudes, nas experiências, na resistência às dores inevitáveis, no quanto são
espertas nossas crianças íntimas. Eu te digo: O que fazer dessa saudade
desafogada, ampla, profunda? Se podes apressar o tempo, então que o faças! Que
venhas o mais breve, aguar as flores que nascem em mim para ti, das nossas
melhores sementes - as palavras do nosso afeto potente.
Tua menina traquina
POEMA
Essa foi a última semana
Daqueles primeiros medos
Porque no ouvido os segredos
Daquilo que o amor emana
O que ele escreve em meu corpo
E cresce como uma planta
Brota a flor na garganta
Eu conto os novos enredos
Que ao mundo espanta
Amor de menino e infanta
Daqueles primeiros medos
Porque no ouvido os segredos
Daquilo que o amor emana
O que ele escreve em meu corpo
E cresce como uma planta
Brota a flor na garganta
Eu conto os novos enredos
Que ao mundo espanta
Amor de menino e infanta
Sigo o que ele diz
E brinco feito criança
Ao lado dele sou feliz
Como se fosse aprendiz
Rindo da própria lembrança
E nessa dança de giz
Eu me torno Beatriz
Comigo ele se encanta
E leva essa herdança
Curando a cicatriz
E brinco feito criança
Ao lado dele sou feliz
Como se fosse aprendiz
Rindo da própria lembrança
E nessa dança de giz
Eu me torno Beatriz
Comigo ele se encanta
E leva essa herdança
Curando a cicatriz
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 9: Meu amado L.A, Sei que sabes que te defendo
até de ti mesmo, mas também pareço impiedosa quanto te questiono sobre teus
conflitos, tua dificuldade em ser assertivo diante do já não desejas. De volta
à cidade grande, decidi que deverias saber de tudo o que penso, não me refiro
aos textos escritos ou visuais, mas à extensão da minha cupidez. Não tens ideia
da dimensão dessa decisão de ir contigo até o momento que for inteiro isso que
nos afeta. Te dar a minha Arte e as minhas palavras, é o que posso de melhor te
presentear (ou a qualquer outra pessoa). Sempre sonhei contigo, antes de te
encontrar, como pode acontecer algo assim? és meu ideal terreno, também dos
lugares desse multiverso que nos cerca, nos observa e nos engolirá quando for o
tempo. És o abismo, a corda, o equilíbrio e a tensão que me move a ser além de
mim mesma. Posso estar enganada, mas não creio que haja alguma dúvida no teu
amor. Nem no meu. Sei que caminho em teus extremos, pontos equidistants dessa
corda, como se visse em ti, tudo aquilo que ´és, tua beleza e teu horror. Se tu
foste uma miragem, uma projeção que faria nosmeus delírios (eu também os tenho,
mas cuido para que não ultrapassem às bordas do outro), desde o primeiro
momento, faria o que fez aquele de quem tnto falamos e, chegamos a acreditar
que pontuou o pensamento, estendendo-o aos territórios inauditos:
"...conceder-te-ia melhor saúde e muito além daquilo que é bem mais
valioso... e talvez um pouco mais de amor por mim (embora isto não tenha a
menor importância) e o mesmo se daria com a coleguinha renitente". Desisti
de escrever poemas de sororidade ou dialogar sobre isso contigo, sei que sentes
outridade, que esperas por gentileza para que reste a amizade, essa coisa
sagrada que deve ficar em vidas que se tocaram, que viraram passado ou têm que
se transmudar em afeto diverso. Então prefiro silenciar sobre essas coisas do
mais fundo do coração, até porque sabes de tudo, dessa impermanência, do
imponderável, do fugaz, da duração de um dia e algumas horas de quebra. Sabes
exatamente do meu desejo, do meu amor? Suponho que sim, não o diria tão
abertamente se não fosse minha verdade maior. Eu me enterneci com esse
desenlace, embora parecesse séria, intransigente, inquieta com essa demora,
essa coisa enfermadiça. Sofro por não seres capaz de te posicionar com mais
firmeza, embora saiba que estás somente comigo, que fui tua melhor escolha (há
controvérsias espalhadas por aí como pétalas ressequidas, sementes do antigo
engano). Jamais conheci alguém assim, como és diante do amor e do tempo.
Disseste que comigo tudo foi completamente novo, que encontraste tua melhor
interlocutora, pois bem, também sobre isso devemos conversar, estando fora dos
domínios do equívoco, para compreender porque tudo se deu dessa maneira, com
tamanha penúria do que me parecia mais digno. Eu te segredei que não abriria
mão da minha mais recôndita inocência, que guardo desde que nasci, também não
mataria e esquartejaria em praça pública, a onça. Eu confundi teus medos, tuas
palavras que não me soavam com a veracidade necessária, girando à borda dos
desesperos alheios, da pujança da loucura distante, quando eu me envergonhei
daquelas atitudes todas. Quando esperei porque vi o que te passou despercebido:
o lume que crescia quando me miravas, na rua, na cama, em qualquer lugar dos
nossos encontros. Vi primeiro do que tu, que me amavas, por isso fiquei aqui,
não arredei. Em particular, temos tudo para enfrentar o tempo de um dia e todos
os instantes futuros. Nunca foste grosseiro comigo, nem te comportaste mal na
minha frente, teu cérebro sempre foi rápido em responder-me às perguntas mais
difíceis, às vezes, gaguejavas, tentavas emendar os teus disfarces, mas isso
passou, ficou para atrás, minguou, vivemos noutro período, cada vez mais
próximos daquele sonho primevo. achei que eras um gato, uma invenção do obscuro
escritor que recebe rosas negras de madrugada. Confundi tua forte vontade com o
desprezo quando te sentias questionado. Pensei que eras infantil, egoísta,
querias te expandir, colecionando os amores, que eras astuto, que tinhas totl
domínio sobre a sexualidade feminina, enfim, pensei tantas coisas de ti. Foram
os meus enganos, mentira, nunca duvidei de tua palavra, isso que disse, ouvi de
quem menos imaginas. Eu sempre estive aqui.
P.S: Quase não deu para te dizer que as fotos
que me mandaste me deixaram deveras afogueada, isso não se faz com quem padece
de saudade. Na próxima sexta, me pagarás com juros, não faremos mais nada
(talvez encher de quando em quando, uma taça de vinho). Poderia ser mais
obscena, que tal dizer que chovi ao ver o teu corpo? Pois é, conjugo-me nesses
verbos inexistentes em relação ao corpo do desejo.
Tua Jó
POEMA
Se é de lã o meu amor
É lá em casa que mora
A toda hora o desejo
É por isso que pelejo
Que ele acorde agora
Se dorme dentro ou fora
E tudo o que ensejo
Da saudade é o beijo
Que ele não vá embora
Como se fosse um lampejo
É lá em casa que mora
A toda hora o desejo
É por isso que pelejo
Que ele acorde agora
Se dorme dentro ou fora
E tudo o que ensejo
Da saudade é o beijo
Que ele não vá embora
Como se fosse um lampejo
Se é de lã o meu amor
Tem que ser amor macio
Como se fosse um cio
De quem foge com ardor
De quem não sente calor ou frio
Quem lava o rosto no bacio
Por dormir no arredor
Por ser curto o cobertor
Por não ser um amador
Tremula de arrepio
Tem que ser amor macio
Como se fosse um cio
De quem foge com ardor
De quem não sente calor ou frio
Quem lava o rosto no bacio
Por dormir no arredor
Por ser curto o cobertor
Por não ser um amador
Tremula de arrepio
Se é de lã o meu amor
Eu quero logo é cantar
Não quero é sentir dor
Nem coisa vã vou calar
Mas dizer a todo mundo
Que no meu peito é tão fundo
Pareço até moribundo
Ou um rotundo a girar
E no tremor bandeirar
Tempo de destemor fecundo
Eu quero logo é cantar
Não quero é sentir dor
Nem coisa vã vou calar
Mas dizer a todo mundo
Que no meu peito é tão fundo
Pareço até moribundo
Ou um rotundo a girar
E no tremor bandeirar
Tempo de destemor fecundo
Se é de lã o meu amor
Eu o levo para o meio da sala
Viro tigre de bengala
Vou nua para a festa de gala
Com distinção e louvor
Uso um anel de opala
Pode ouvir que na minha fala
Desapareceu a dor
Jogada naquela vala
Onde não se abriga o candor
Eu o levo para o meio da sala
Viro tigre de bengala
Vou nua para a festa de gala
Com distinção e louvor
Uso um anel de opala
Pode ouvir que na minha fala
Desapareceu a dor
Jogada naquela vala
Onde não se abriga o candor
Se é de lã o meu amor
Eu vou logo avisando
Cansei e vou matutando
Rezando com todo o fervor
Dizendo sem tirar nem por
O que tiver desandando
Diferente do amor brotando
Entenda que é aquando
Se besta for ficando
Terá em mim um contendor
Eu vou logo avisando
Cansei e vou matutando
Rezando com todo o fervor
Dizendo sem tirar nem por
O que tiver desandando
Diferente do amor brotando
Entenda que é aquando
Se besta for ficando
Terá em mim um contendor
Se é de lã o meu amor
Se ele me dá alegria
Não é nessa pedra fria
Ali onde deitou-se um dia
O corpo do desamor
Se decide pelo rancor
Vê logo que a assimetria
Tem no eleito o autor
Que sou o seu vigia
E não temo o raptor
Se ele me dá alegria
Não é nessa pedra fria
Ali onde deitou-se um dia
O corpo do desamor
Se decide pelo rancor
Vê logo que a assimetria
Tem no eleito o autor
Que sou o seu vigia
E não temo o raptor
Se é de lã o meu amor
Saberão que sou sua fã
Que temos uma igualdade
Que deixamos a maldade
Naquela e nessa cidade
No vazio da farsa vã
De quem sequer disfarça
Negando o amanhã
E para sua desgraça
Temos nós dois um imã
Saberão que sou sua fã
Que temos uma igualdade
Que deixamos a maldade
Naquela e nessa cidade
No vazio da farsa vã
De quem sequer disfarça
Negando o amanhã
E para sua desgraça
Temos nós dois um imã
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 10: Meu delicioso L.A, Nossas intermináveis
conversas, cada vez mais excitantes, mais orientadas e mais ricas, quando
raramente concluímos algum assunto, enveredamos pela tarde noite, começamos bem
cedinho, depois de tanto amor espalhado no quarto na sala, na cozinha, quando
tomamos banho e nos perfumamos, afinal, as palavras têm uma densidade
importante para nós, também há aquelas que guardam invariável leveza e, voam
para nos distrair.
Quando distantes, pedes-me que eu não me esqueça de ti, como se isso fosse possível, desde aquele primeiro beijo. Esse encontro foi a maior benção para nós dois, nessa solidão esquisita que arrastávamos sem encontrarmos um par para olharmos nos olhos, compreendermos tudo que é dito, na velocidade máxima, esticando a corda, sem no entanto, parti-la. Nada é capaz de abalar-nos quando estamos juntos, nem mesmo aquele velho cadáver simbólico e insepulto. Nossos corpos são os portos seguros para os nossos desesperos, esses que vêm da agudeza do pensamento, da lucidez fugidia quando rompem às manhãs. Escuto às vezes algo sobre você, de quem menos espero, nua tentativa de me sugestionar para eu me afaste de ti, como se pudesse abalar o meu amor e o meu desejo. São declarações indiretas, estranhas, um modo particularmente ofensivo, pois bem, nada que seja capaz de dissuadir meu olhar sobre nossas asas, nosso sonho que em breve, realizaremos (adianto que nesse sentido, já somos íntimos). De um modo quase atroz, gostaria tanto de saber como você está, em que está trabalhando e como tem conduzido aquelas ideias sobre o projeto que nos une. Se me refiro à atrocidade do que em mim, é mais curioso, é por causa da distância física que nos separa, essa que dura exatamente quatro dias. Receba um beijo meu em sua fronte, em seus olhos e em meu amado foguetinho.
Quando distantes, pedes-me que eu não me esqueça de ti, como se isso fosse possível, desde aquele primeiro beijo. Esse encontro foi a maior benção para nós dois, nessa solidão esquisita que arrastávamos sem encontrarmos um par para olharmos nos olhos, compreendermos tudo que é dito, na velocidade máxima, esticando a corda, sem no entanto, parti-la. Nada é capaz de abalar-nos quando estamos juntos, nem mesmo aquele velho cadáver simbólico e insepulto. Nossos corpos são os portos seguros para os nossos desesperos, esses que vêm da agudeza do pensamento, da lucidez fugidia quando rompem às manhãs. Escuto às vezes algo sobre você, de quem menos espero, nua tentativa de me sugestionar para eu me afaste de ti, como se pudesse abalar o meu amor e o meu desejo. São declarações indiretas, estranhas, um modo particularmente ofensivo, pois bem, nada que seja capaz de dissuadir meu olhar sobre nossas asas, nosso sonho que em breve, realizaremos (adianto que nesse sentido, já somos íntimos). De um modo quase atroz, gostaria tanto de saber como você está, em que está trabalhando e como tem conduzido aquelas ideias sobre o projeto que nos une. Se me refiro à atrocidade do que em mim, é mais curioso, é por causa da distância física que nos separa, essa que dura exatamente quatro dias. Receba um beijo meu em sua fronte, em seus olhos e em meu amado foguetinho.
Teu Oceano
POEMA
Das três coisas do amor
Sei que a primeira é a conversa
Porque se cala e não versa
Diante da onça não tem pressa
E com a geringonça atravessa
Trazendo todo o ardor
Fazendo uma promessa
Com os olhos de mirador
Ouvindo o som da orquestra
Dissipando o rancor
Sei que a primeira é a conversa
Porque se cala e não versa
Diante da onça não tem pressa
E com a geringonça atravessa
Trazendo todo o ardor
Fazendo uma promessa
Com os olhos de mirador
Ouvindo o som da orquestra
Dissipando o rancor
A segunda é o sonho
Porque o vazio é medonho
Aquele em que o rosto tristonho
Que atravessa o rio
Sente logo um arrepio
No caminho enfadonho
Mas não esquece o brio
Toca as águas e sente frio
E no bisonho vestígio
Do amor pela onça que viu
Porque o vazio é medonho
Aquele em que o rosto tristonho
Que atravessa o rio
Sente logo um arrepio
No caminho enfadonho
Mas não esquece o brio
Toca as águas e sente frio
E no bisonho vestígio
Do amor pela onça que viu
E a terceira é o sexo
Também chamado desejo
Esse desmantelo sem nexo
Que do corpo quer o ensejo
Como acento circunflexo
Acolhe e tem traquejo
No meu corpo faz festejo
Alumiando com o reflexo
O clarão do relampejo
Do amor ficar perplexo
Também chamado desejo
Esse desmantelo sem nexo
Que do corpo quer o ensejo
Como acento circunflexo
Acolhe e tem traquejo
No meu corpo faz festejo
Alumiando com o reflexo
O clarão do relampejo
Do amor ficar perplexo
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 11: Meu menino levado L.A, A insinuação de que
passas horas ocultando outros diálogos, é uma calúnia tão baixa que a anotarei
aliás para mim futuramente. Sei, aliás, como te comportas, da tua imensa
outridade, inclusive destacando um material que merece ser mesmo divulgado,
porque é bom, exceto quando tenta dar vagas respostas ao que não tem mais jeito.
Nessas horas, esqueço essas ofensas e te imagino nu, comigo, naquelas
brincadeiras no sítio, tudo se esvai, some, se reduz a algo sem o menor
sentido. E, por falar nisso, ontem sonhei contigo, claro, como quase todos
eles, um sonho libidinoso, puramente excitante do ponto de vista do lugar que
estávamos. Lembre-me de te narrar os mínimos detalhes na próxima sexta feira.
No desconhecimento de onde fica esse local, mudaremos apenas o cenário, sei que
vais adorar a brincadeira, tudo a ver com a constatação de que o tao sempre
parece presente, nas horas sagradas dos nossos corpos.
Tua Pimenta Malagueta
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 12: Meu sempre querido L.A, Reproduzo em
diversos suportes, as cartas que te envio, não quero sentir o mal-estar de um
dia vê-las arder no fogo, de enxergar isso tão claramente que as palavras
voariam minutos antes de tornarem-se cinzas. Temo que a casa incendeie, afinal,
basta um dos nossos beijos para que um clarão, um relâmpago acenda o ambiente
em que estamos. E, se olugar pegar fogo, claro, sempre o salvaríamos,
aprendemos isso com J.C e, fomos lembrados por Y.L. Mil vezes eu te escolheria
para estar ao meu lado. Disse tantas vezes isso e, ouvi a resposta voltar
acrescida de um par de aspas. Tornara-se seu mantra quando o sol surgia no
horizonte do mar ou da floresta próxima, onde nos salvamos do mundo. Sei que os
efeitos da nossa loucura, vista pelos homens comuns e até repreendida pelos
mais distantes, descansam, dormem com as pernas entelaçadas, como as nossas. É
subversivo o nosso querer, não porque deu-se através de uma forte colisão, das
longas horas dos primeiros diálogos ou coisa parecida, é demolidora pelos
silêncios, a reunião de tantas palavras guardadas, de tantos ritmos, de uma
alegria sem fim, pelo fato de estarmos juntos. Nem falo do que é erótico em
nossa ligação mais profunda, isso tem importância equivalente à interlocução
que nos une. Já corremos em círculos. Repetidos, incessantes. O quanto nos
buscamos sem sabermos nossos nomes. Ridículo é aquele que se esconde de si mesmo.
Eu estou diante de ti, inteira, mirando o vasto horizonte dos nossos sonhos,
destemida e forte. Vendo que carregas para longe de nós, a superfície do que já
não tinhas. Creio ser melhor assim, a condução para além-portas, ainda mais
adiante do fosso que demarca a cidade e o poente. Eu gritarei alto que me
escutas e me admiras, gritarei alto dentro da nossa casa, meu grito de alegria.
Eu já te disse que penso em ti e me emociono? Se não, agora está dito. Não nos
escondemos das nossas dor e isso nos distingue no meio daquela multidão
perdida. Carregamos uma candeia e um cinzel, retiramos a forma da pedra bruta,
talhamos nossa face, nos acariciamos, desfalecemos de cansaço. O espelho em que
te vês, também me reflete, como somos parecidos, meu amor! O teu silêncio,
quando escreves na minha frente, parece o que tens de melhor, porque posso te
mirar e imaginar todas as indecências possíveis. E, as imagino até que ergues
tua vista, te levantas e saímos dali. Tu me disseste que és meu, sem que eu
forçasse essa resposta, fiz uma pergunta tímida, se desejas mais alguém, se há
um resíduo do desejo antigo. Diante de tua negativa, da verdade que iluminou
nosso caminho, aceitei-te como pessoa minha, como alvo de todos os meus
encantos. O que queres mais? O que posso te oferecer além do que já te disse?
Surgir vestida de vermelho como se fosse para um daqueles salões proibidos dos
séculos passados? O que queres, meu menino? Como queres brincar no meu corpo?
Se me disseres tudo, não daremos conta de fazer mis nada, além das brincadeiras
de alcova, dos suspiros mútuos. Vejo que evitas as inapropriadas citações, não
mais assinalas tua presença nas páginas alheias, eu confesso que não me importo
se adias tua chegada na minha, interessam-me os dias dos abraços e aninhos. Tudo
parece girar em torno de nós, enquanto respiramos, quietos nos colo um do
outro. Deixemos o mundo, essa bola fria e achatada, rodar à vontade, ignoremos
o que se fala à boca miúda, aqueles que desconhecem o supremo prazer do amor
recíproco. Nós merecemos mais tempo e, o teremos. Olhe para mim que olharei
para ti, assim construiremos nossas asas. Não vês que nada poderia ser mais
certo?! Como preferes estar comigo, adivinho tuas fantasias, teus olhares
lascivos, e esse esgar que me atrai como a luz atrai o inseto. E eu que te
amo?! Exulto com a revoada de vagalumes soltos, livres, pestanejando em nossa
sala, de janelas abertas, de mesa que às vezes, vira uma cama. Quanta falta eu
sinto dos dias em que estás noutra cidade, sentindo uma saudade equivalente.
Tua Bice
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 13: Meu feroz amor L.A, Meu amor, eu te beijo
e abraço na imaginação, estou no quarto do meio e, só tu sabes o que isso
significa. Também beijo tuas mãos, quando fecho os olhos e vens diante da minha
presença, quase uma prestidigitação. Escrevo uma carta muito curta para
lembrar-te de que me dás gozos ardentes e profundos, que ao teu lado, minha
alma não repousa, posto que dança com força e ritmo, um furor amoroso. como eu
te respeito, meu menino, mesmo tendo vivido algumas turbulências, como se
tivéssemos embarcado numa aeronave tonta, eu te acato com tuas idiossincrasias
e exageros, cuido de ti e velo teu sono. Respeito igualmente o teu caráter,
ainda mais depois dos últimos dois encontros, por todas as razões que vivemos,
pelo que me afirmaste sem que eu quisesse sabê-lo, dizendo-me sobre essa
escolha, sobre o sonho de viver sempre comigo. Não nos resta uma dúvida sequer
de que, além dessa violenta paixão, caminha tranquilo um amor temporão, tardio,
porém constituído de um desejo vigoroso, sadio. Eu te peço tão pouco, apenas o
que nos importa para atravessarmos as lutas do período de um dia.
Tua Jaguaretê
EPÍSTOLA
OBSCENA 14: Meu amor imenso L.A, Quando escurece no
sítio e meu coração deveria estar imerso na quietude que sinto, quando estás
junto e, me embalas até meu sono suspender os padecimentos do decorrer da
semana, eu não consigo esquivar-me do que pode ser a ilusão desse mesmo
coração, desse afeto que me possuiu inteira, chamo de ilusão os dias longe de
ti. Sinto que estou sempre contigo e, se estou em uma repartição pública, em
uma reunião ou noutro lugar onde me acero de mais pessoas, ali, ruborizo,
imaginas a razão? Penso nos nossos jogos amorosos, naqueles beijos que me
deixam completamente líquida. Quase te vejo, tentei fugir no início,
evitando-te como a um inimigo, mas constantemente te procuro em meu pensamento,
naquilo que arde em meu corpo, na impressão da ponta dos teus dedos em minhas
ancas. Naqueles dias longe de ti, eu me traí e me contradisse, só eu sei o
quanto permanecias em minha memória, rondando, tocando os meus lábios (como
fazes sempre), roçando minha nuca até quase eu sentir o teu cheiro. E, quase
desfalecer por isso.
Tua Santa Paciência
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 15: Meu amorzinho L.A, Boa noite, meu bem.
Desde que me enviaste aquelas duas deliciosas indecências, que te beijo em
minha imaginação.
Acabei de chegar do Minuto, sabes que diariamente compro pães especiais, aqueles que também gostas de comer em nossa casa. Estou na verdade, na praia, na casa da tua sogra. Sinto-me cansada e instalei-me para te escrever. Também fiz um chá de cidreira com cravo-da-índia, dizem que é excelente para a saúde. Tomei banho e te digo, é outro momento em que estás sempre presente, lembro-me que ficas recostado na parede, continuando o assunto que veio contigo da sala, ou seja, conversamos até debaixo d'água. Voltei para casa de trem. Na sala de espera da estação (onde aquele ancião passa muitas horas palestrando e, vez por outra, aparece Bimbo, a estranha criatura, lembras que te falei?) andei de lá para cá a pensar em ti e dizia comigo: mas porque deixei eu o meu menino-deus? Lembrava tudo, até ao mais ínfimo esconderijo da tua alma e do teu coração. É quando penso no quanto tivemos sorte de nos acharmos em meio à confusão desses maus afetos. Para onde eu iria sem ti, depois de tocar a maciez de tua pele e minha boca te levar ao paraíso dos homens? Se eu fosse religiosa, acharia que Deus te pôs em meus braços para que nada do que é mais caro em ti, tua criação, se perdesse, nos hábitos comuns à sombra das obsessões. Pelo contrário, se ele existisse e os japoneses o tivessem fotografado, como disse M.F, ele o teria feito para com abundância, clareza e superação dos vícios limitantes, como a automatização dos casais. Estamos livres disso, meu amor, senti desde o primeiro momento, tanto das práticas diárias, quanto da lubricidade que se amplia a cada encontro. Sinto que juntos nos salvamos de tudo o que é baixo e ofende o espírito. Eu sei que também te perturbo com coisas vãs, como o dia em que abandonarás a carcaça do velho navio ou porque voltas tão cedo aos domingos (mesmo tendo as respostas na ponta da língua).
Acabei de chegar do Minuto, sabes que diariamente compro pães especiais, aqueles que também gostas de comer em nossa casa. Estou na verdade, na praia, na casa da tua sogra. Sinto-me cansada e instalei-me para te escrever. Também fiz um chá de cidreira com cravo-da-índia, dizem que é excelente para a saúde. Tomei banho e te digo, é outro momento em que estás sempre presente, lembro-me que ficas recostado na parede, continuando o assunto que veio contigo da sala, ou seja, conversamos até debaixo d'água. Voltei para casa de trem. Na sala de espera da estação (onde aquele ancião passa muitas horas palestrando e, vez por outra, aparece Bimbo, a estranha criatura, lembras que te falei?) andei de lá para cá a pensar em ti e dizia comigo: mas porque deixei eu o meu menino-deus? Lembrava tudo, até ao mais ínfimo esconderijo da tua alma e do teu coração. É quando penso no quanto tivemos sorte de nos acharmos em meio à confusão desses maus afetos. Para onde eu iria sem ti, depois de tocar a maciez de tua pele e minha boca te levar ao paraíso dos homens? Se eu fosse religiosa, acharia que Deus te pôs em meus braços para que nada do que é mais caro em ti, tua criação, se perdesse, nos hábitos comuns à sombra das obsessões. Pelo contrário, se ele existisse e os japoneses o tivessem fotografado, como disse M.F, ele o teria feito para com abundância, clareza e superação dos vícios limitantes, como a automatização dos casais. Estamos livres disso, meu amor, senti desde o primeiro momento, tanto das práticas diárias, quanto da lubricidade que se amplia a cada encontro. Sinto que juntos nos salvamos de tudo o que é baixo e ofende o espírito. Eu sei que também te perturbo com coisas vãs, como o dia em que abandonarás a carcaça do velho navio ou porque voltas tão cedo aos domingos (mesmo tendo as respostas na ponta da língua).
Tua Kоролева
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 16: Meu Bebé, meu Bebezinho querido L.A, Não
sei quando te entregarei essa carta manuscrita em mãos. Amanhã irei comprar um
novo tinteiro e algumas penas. O velho tinteiro que carrego comigo desde os
tempos da fazenda, rachou na base e está manchando todo o mata-borrão, sabes
que não gosto de papéis manchados. Também quero recordar-te que amanhã a
previsão da meteorologia é desanimadora, exatamente porque quando chove muito,
dificulta nossa conexão. Ocorre o oposto quando lembro dos teus beijos,
neblino, chovo e trovejo, guardo-me líquida para o dia da tua chegada. Continuo
parecendo um cão sem plumas, mas logo estarei bem, não te preocupes. Estou me
divertindo muito com nossas últimas invenções e, não imaginas as saudades de ti
que sinto nestas ocasiões. Por mim, eu te veria a toda hora, isso não seria
maçante, sei que jamais enjoaria da tua presença. Adeus, amorzinho, faz o
possível para cuidar de nós dois, sei o quanto está sendo difícil para ti,
também concordo em conduzir o final desse processo, com o máximo de outridade
possível, até mesmo sendo generosos ao ponto de dispendermos tempo para esse
fechamento. Eu, que estava iludindo-me em relação ao caminho a seguir nessa
história, já nem publico, embora escreva algumas imagens, embora mantendo os
avisos (aqueles que conversamos a respeito). Estou tranquila quanto a isso.
Façamos, mesmo que pareça o oposto do que pretendemos, um tipo de bem que não
nos trará males futuros, quantas vezes nossa intenção é interpretada de outra
maneira, desvirtuada? Concordas comigo? Muitos, muitos beijos, da tua, sempre
tua, mas muito desolada pela distância de ti, louca para que chegues e
encontres minha boca, sempre desejosa dos teus beijos.
Tua Boa Gaja
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 17: Meu amor L.A, Sabes que não há tantos
casais como nós por esse mundo, não é? Os nossos desvelos, a nossa casa e nossa
intimidade, as nossas deliciosas carícias que inventamos sob medida para nós
dois, nesse afeto que não se cansa, que mantêm o apetite dos primeiros dias,
meu menino-deus, meu mar. Como o meu coração liga-se a ti e à Arte, com um só
fio, que se entrelaça, borda nesse nosso tecido inaudito, uns raminhos de hera
que criam raízes e que se agarram cada vez mais à nossa pele. Quando saí do meu
sabático, daquele recolhimento necessário à compreensão da solidão, ao me
aproximar do meu próprio eixo, passei um breve momento, numa fantasia platônica
que se desfez, para logo encontrar-te, bólido que me atingiu irremediavelmente,
que vive em mim. Pois, eu te digo, quando saí dessas lapadas da vida, caí
justamente nos teus braços, lugar macio de se sonhar além. Quando deito a
cabeça em teu peito, quero ficar ali, dias, meses, anos, bem quieta, apenas
ouvindo tua respiração e construindo em mim, uma ideia de ninho. É quando vejo
passar diante de mim, o horror de uma solidão vivida, onde tu não existias. A
minha solidão vivia de um pólo ao outro da terra, tiritando de frio, gelando
minha alma. Era como se eu fosse um pequenino inverso, um chumaço de neve, uma
flor de vidro, nuvens holográficas, embaçamento da vista. Até que olhei para ti
e o mundo tornou-se límpido, as letras se encaminharam para seus lugares, as
palavras voltaram a brincar na praça. Fora os poucos amados que guardo e
guardarei nos meus melhores lugares, na vida, agora há só tu e eu, mais
ninguém, no sentido do desejo, das paixões e dos amores findos. De mim não sei
que mais te dizer: eu me alimento de maneira saudável, devoro uma floresta que
nasce em meu prato, exagero no vinho, diminuí os cigarros, mas durmo mal;
parece que o entardecer acende as lâmpadas que devo ter engolido sem me dar
conta, ligo-me à tomada e recarrego num instante, sentindo-me impelida à
criação. Também gosto de te encontrar nas esquinas das madrugadas, sem prévia
combinação. Mas, falta-me todas as manhãs o primeiro olhar duns lindos olhos de
índio, puxados e luminosos, que são todo o meu bem.
Tua Mulher (encantada contigo)
EPÍSTTOLAS
OBSCENAS 18: Meu amor adorado L.A, (encontrei essa
carta entre as tábuas do chão, perto da tua tina, é que escrevi-a na sala de
banho, lembrando-me de tua nudez que me tenta os sentidos, por isso te envio
somente agora). A tua carta, escondida dentro daqueles poemas alheios, oculta
entre as palavras da tua longa escritura, demorou a chegar às minhas mãos e,
isso veio dar-me uma alegria desde que partiste. Ai, como não imaginas o
tamanho da minha falta de ti. O que eu sinto corresponde exatamente - estou em
tuas mãos e, tu estás nas minhas - aos sentimentos que expressas tão
carinhosamente e eu, quando te digo sobre os meus, suspiro como nos tempos
imemoriais, mas é-me muito difícil responder no teu belo e eclético estilo,
numa linguagem tão elaborada, nessas doces expressões, que merecem uma resposta
mais em atos do que em palavras. Deves me aguardar, prepara-te para tantos
beijos e abraços que te darei. Esperes ainda mais, muito mais do que já fizemos
juntos, afinal, nunca senti tamanha saudade e desejo. Espero, no entanto, que o
teu coração seja capaz de aventar tudo o que o meu sente e quer te dizer (e
realizar em teu corpo). Talvez que se te amasse menos não me fosse tão custoso
exprimir o que penso, pois tenho de vencer a dupla dificuldade de expor um
sofrimento insuportável, que me atropelou e, sabemos que hoje nos acerca, como
uma língua estranha. Desculpe-me pelos os meus erros, os teus, irrelevei-os,
soltei-os aos ventos curativos das manhãs, salguei-os dentro de uma cumbuca
trazida do Himalaia, portanto plasticamente ficou bonito: aquele sal
cor-de-rosa, alumiando e tangendo erro por erro. Acho bárbaro o que tenho lido,
não referente à gíria dos anos idos, mas à barbárie, à descompostura, então te
livro desse constrangimento, apenas nós sabemos que não merecemos dedos em
setas, apontando para nós. Qual o mal que fizemos? Sequer imaginávamos esse
encontro, nem premeditamos nada, até que me beijaste enquanto eu dormia e eu te
segurei pela mão, dali para frente, o universo se encarregou de nos levar no
colo. Tu, o meu único e derradeiro amor - tu, minha única alegria nas noites do
sítio - tu, me habituei a considerar só meu - porque assim me disseste que és.
Eis a nossa história em poucas palavras: uma bela colisão, quando um passou a
fazer parte do outro e o passado não suportou, não resistiu, os homens morreram
simbolicamente e, daqui a pouco, teremos também aquele espaço vazio (sim, o
limparemos, pintaremos as paredes e faremos uma festa, mergulhando no mar ou no
rio). Por quantas provações já passamos e suportamos todas elas, em tão pouco
tempo? Como parecem séculos esses meses, mais precisamente cinco meses.
Devemos, tu e eu, não mais sofrermos por outrem que parece impedida de ver
nossa realidade (ou talvez não queira mesmo, esteja doente de esperança), pois
tanto a tua situação como a minha são igualmente extraordinárias, como
dialogamos bem, como tua lanterna ilumina meu caminho! Lembrei-me de alguém que
disse algo assim, adianto que traduzirei o gênero para entenderes melhor, direi
apenas o sentido que ele quis ao definir um amor que se parece com o nosso,
portanto não o cito ipsis litteris, adapto-o ao que quero te dizer: Antes de te
conhecer estava sempre interessada em muitos homens, nunca num só. Agora, que
te amo, não existe nenhum outro homem no Mundo. Falas de lágrimas e da nossa
desdita; o meu sofrimento é interior, não choro. Claro que entendeste o mais
fundo sentido desse amor, logo, acrescento, também corrompendo a originalidade
do texto, sem me preocupar com as más línguas, inclusive, porque escrevo para
ti, cartas abertas (quem já se viu ser feliz ao sonegar tamanha beleza que é
amar desse modo, tão sagrado quanto lascivo?!), então vamos lá (mantenho
apenhas um excerto original, mudando o final para traduzir o gênero:
"(...) Meu tesouro adorado - tremo enquanto te escrevo, como treme o mesmo
doce bater de coração. Tenho milhares de coisas para te dizer e não sei como
dizer-tas - um milhão de beijos para te dar, e, ai de mim, quantos suspiros!
Ama-me - não como eu te amo, pois te sentirias muito infeliz; não me ames como
eu mereço, pois não seria o bastante - ama-me como te ordena o coração. Não
duvides de mim." Sou e serei sempre a tua mais terna amante, sempre, meu
amor.
Tua Flor
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 19: Meu anjo, meu tudo, meu ser L.A, Hoje
escreverei menos do que ontem, sei que o teu tempo é exíguo e eu te abasteço
por mais de uma semana, com essas missivas, em apenas um dia. Porque tamanha
tristeza quando me faltas? Não falo das nossas conversas pontuais e esparsas,
mas das tuas mãos, da tua boca, dos teus abraços apertados (cheios de segundas
e terceiras intenções)? Não exigimos a totalidade do outro, embora a tenhamos,
estamos seguindo e aprendendo sobre a liberdade, sobre o encanto e esses
convites da vida. Olhemos para as árvores do nosso quintal, para os nossos cães
e para aquela preguiça lutando pela vida (morreu e teve um enterro digno).
Conto as horas para tua chegada, todavia, na cama se multiplicam os meus
pensamentos em ti, meu amado imortal. Aquele gênio que admiras, disse o que me
dizes, lembro-me das tuas palavras, lendo às dele: " Viver sozinho é-me
possível, ou inteiramente contigo, ou completamente sem ti. Quero ir bem longe
até que possa voar para os teus braços e sentir-me num lugar que seja só nosso,
podendo enviar a minha alma ao reino dos espíritos envolta contigo. Tu
concordarás comigo, tanto mais que conheces a minha fidelidade, e que nunca
nenhuma outra possuirá meu coração; nunca, nunca… Oh, Deus! Por que viver
separados, quando se ama assim?". Eu te asseguro que tu tens-me feito a
pessoa mais feliz e mais infeliz do mundo, dada a distância que nos impede do
abraço diário, do dengo, do carinho. Acabei de saber que diariamente, os cavalos
levam as correspondência para tua região, mandarei agora, diariamente, todas
que eu puder, assim, se ocorrer algo com esse transporte, terás farto material
para saberes do meu amor por ti. Há quem chame nossa ideia de
"ridícula", teria lido por acaso o poeta português, por excelência?
Acho que não, nem amado o suficiente para mirar-te na mesma linha do horizonte,
na mesma diapasão. E isso me faz pensar que abrir nossa correspondência,
intentando dizer que é possível, nos dias de hoje algo tão belo e grandioso, sei
que apenas tu, sabes e sentes o teor do que escrevo. Tu receberás outra carta
sobre isso, em seguida, dessa vez, oculta como aquelas primeiras declarações de
amor que te fiz. Fiques tranquilo, fito com confiança a nossa vida e a certeza
de que alcançaremos nosso objetivo, aquela biblioteca imensa, com mesas
cadeiras, cama. sim, viveremos juntos e brincaremos das primeiras horas da
manhã até a hora que nos colher o sono. Hoje e sempre, quanta ansiedade e
quantas lágrimas, sabes que me emociono quando penso em ti, meu amado. apenas
te digo: queiras-me sempre, precisávamos de mais três vidas para darmos conta
do que nos reserva o que chamam destino. Jamais duvides do fiel coração de tua
amada.
Eternamente tua, apaixonada e fã,
Tua Buzuntão
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 20: Meu amor L.A, Aquela madame que disse que
os primeiros amores são mais fortes, pois nascem da necessidade de amar, não
viveu o suficiente para nos conhecer. Talvez eu não pareça com algumas mulheres
normais (por escolha, não por condição) que tu conheceste. Como és raro, meu
amor! Quanta perspicácia em teu pensamento! Não tomes tão somente como elogios,
sei que ambos, não gostamos muito, ficamos encabulados, querendo fugir para
longe desse lugar (tão ansiado pelos demais). Como elevas tua sensibilidade
sem, no entanto, te afastares do teu eixo, do teu centro, mais que me atrai, me
chama e nele, me abraço com tamanha força e paixão. Lembro-me até hoje, quando
disseste baixinho ao meu ouvido: "Tu pertences ao pequeno número de
mulheres que ainda sabem amar, sentir, e pensar.", quase não me contive em
mim mesma, ali, vi que havia findado um tipo de solidão, que hora nenhuma foi
temente aos novos costumes, tampouco descartou aqueles velhos, como o teu lenço
de tecido e o modo como te sentas (não posso pensar que as nuvens armam a
chuva). Como te não amaria eu? No preciso momento em que tomaste minha carne e
me trouxestes tantos universos para o meu corpo? Os meus esquecidos, os teus
até então não manifestos, essa alegria que me sustenta nas manhãs durante a
semana?! Tenho gostado de repetir o que leio e, nos diz tanto, como essa frase
exata para o que sinto: "levanta-te, crê e ama: aqui está uma alma que te
compreende e te ama também", às vezes, parece algo cabotino, silvestre,
desses potes de mel que derramam no interior de uma bolsa feminina, mas é isso,
o que fazer diante de tamanha colisão? Soltar as palavras, deixá-las prosseguir
nesse caminho. Não me importo se pensam que sou isso ou aquilo, importa-me o
teu amor e, esse, sei que tenho. somos responsáveis por nossos risos, quando
estamos juntos ou separados. Para mim, esse é o melhor encargo. Pressinto que
nossa felicidade - essa coisa etérea, surpreendente, descontínua, anda
aparecendo mais, nos cumprimentando e desejando morar aqui, em nossa casa? Também
sentes isso? Eu te agradeço (ai, as formiguinhas sem calças agora surgiram)
pela muda da roseira negra, plantei-a em um jardim de uma rua que podemos
alugar uma das casas, apenas para ficarmos na janela, nos divertindo com o
deambular dos loucos. Sexta feira é dia da tua vinda, faltam poucos dias e está
tão longe! Mas que fazer? Sinto-me a criatura mais estoica, exatamente porque
igualmente sinto-me à porta do paraíso. Sejamos pouco exigentes com o destino
que já nos pôs de frente (e, nos deitou numa cama macia, ouça nesse instante,
meus suspiros). Depois queimaremos bandeira, no quilombo para o qual em breve,
se mudarão nossos amigos, atearemos fogo no mundo, eu, por mim, já queimei
todos os navios. Tu aplacas minha visão de mundo, pois não tens aquelas ambições
estéreis de morares nas vitrines enfadonhas (dos círculos, panelinhas,
academias, mesas dos bares de uma burguesia que fede ainda viva). Como disse
aquele senhor de óculos redondinho: "Estamos ambos neste caso; amamo-nos;
e eu vivo e morro por ti". Nada mais há de ser dito nessa epístola de
número 20.
Tua Zumbi de Estimação
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 21: Meu amor imenso, Se eu dissesse que já não
te amo, que te detesto, que és mau comigo, eu o faria porque não estás agora
comigo, colado ao meu corpo, dando-me os inúmeros beijos breves em meu rosto,
como sabes que gosto. Não me respondes minhas correspondências com frequência e
eu até te entendo, em tua cidade a comunicação é precária e os cavalos que
trazem as notícias ficam reclusos nas baias. É mesmo ermo, esse lugar que
escolheste, bem feito, era para estares comigo, acordando e dormindo ao meu
lado. Deixo estar, não tardará essa realidade, verás que viveremos também em um
lugar afastado, embora o acesso à aldeia, é mais rápido, imagine que temos até
uma livraria inaugurada recentemente. Conheço o livreiro e te apresentarei a
ele. O que fazes o dia todo? Por que não me dizes? O que te faz esquecer de avisar
sobre aqueles deslizes? Sei que nenhuma afeição abala e põe de lado o amor, o
terno e constante amor que me prometeste. Sei que não tens mais amores além de
mim, nem uma amante que te ocupes durante os dias de sol, em que tu passeias e
tomas banhos de sol. Espero que chegue amanhã, no mínimo quatro páginas
daquelas tuas belas palavras. Espero poder em breve segurar-te em meus braços,
beijar-te e cobrir-te com um milhão de lambidinhas indecentes, afogueadas como
o sol do Equador.
Tua Mulher, fogosa e traquina.
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 22: Amado pequeno menino, Desde o primeiro
dia, me disseste que foram os astros, eles mesmos que nos colocaram um no
caminho do outro, que nos uniram, que seria inevitável e violento esse
encontro, teria que acontecer, estávamos predestinados. Também disseste que eu
seria a última, porque a amada imortal. Hoje vejo as estrelas arderem, aquelas
que começaram há milhões de anos, outras que estão se apagando para sempre.
Nada nos separa, porquanto estamos sob o encantamento dos nossos olhos e de
toda a nossa existência. Sequer um segundo do que representa a velocidade da
luz, nos aparta, quando olhas tua estrela, sei que sou eu, assim me segredaste.
Sempre foi muito difícil para mim, imaginar um amor dessa natureza, algo tão
arrebatador que eu mesma, pensava que só existia na literatura. Hoje, por ti,
sei que não apenas existe mas, me faz sorrir ao lembrar-me do teu rosto, do teu
esgar apaixonado, quando me olhas naquelas tardes quentes do sítio. Sempre
guardo uma medida de ternura, um cadinho para fazer a secreta mistura de desejo
e curiosidade em relação à próxima aventura a ser desvendada no nosso espírito.
Nada se repete, mesmo que tenhamos vivido dias delicados, as minhas desconfianças,
a tua delicadeza e espera, os teus recônditos que me exasperavam, teu adiamento
em dizer à verdade ao passado posto ali, diante de nós, impedindo o fluxo da
paixão e dos ventos. Jamais deixei de expressar o que sinto e sabes até quando
gargalho ou choro, apenas ouvindo minha voz ou através do ritmo dos poemas que
te escrevo. Há duas alternativas para evitar este contrassenso. O primeiro
seria me privar de relatar uma atmosfera que aparentemente não vai durar mais
que alguns poucos dias. O outro seria fazê-lo trazendo vinculado à espera, um
olhar sereno, acima das vicissitudes, das surpresa que surgem no desenrolar de
um dia. Se negamos a primeira alternativa proposta, porque talvez nos conduza a
um estranhamento, uma distância esquisita, devemos então, enfrentar o dia,
porque desde sempre, dissemos que é o período que dura um amor para sempre.
Temos feito o que o amor nos recomenda, cada um à sua maneira, aproximando e
favorecendo cada vez mais, intimidade ao desejo. Imagine que cada duas horas
dos quatro dias que se passam entre a tua ida e a tua volta, parece algo
infinito, onde me solto e gravito em torno de uma realidade que não faz sentido
se estás distante. Imagine quão desguarnecidos e, consequentemente, quão curtos
pareceriam os milênios durante os quais não pensamos em nada, e então a ti,
seria sugerido que a postergação dos fatos que interessam ao cientista, ao
astrônomo, é incomparável à aflição dos segundos que estamos apartados um do
outro, nos amando nesse alongamento geográfico. Nós suportamos porque sempre
vem a sexta feira, os abraços, os beijos e um diálogo sem fim, sem a memória
exata do começo (apenas o memento impresso nos nossos corpos). estamos ligados
de maneira intrínseca e indesatável, vivemos o inesperado e surfamos nos
devires, compreendemos a impermanência e não a tememos. Há uma sedução em ti,
algo que me atrai e me prende, sei o que é, o que sinto, mas sempre fazes algo
novo, me surpreendes com aquilo que trazes de delicadeza do teu universo
masculino. Não será necessário falarmos dos sacrifícios dos primeiros dias,
vejo que são quase findos, os pactos descumpridos, o alvoroço ante a libertação
de um afeto que foi incapaz de transmudar-se em algo novo. Não somos culpados
de nada, meu amor, estou certa disso. Apesar de não existir, parece uma
brincadeira do que seria o acaso, os dados de Mallarmé, os vagalumes nas nossas
telhas. Você vai acostumar-se a continuar amando uma mulher complexa, nada
simples admito, às vezes impulsiva, que cria uma onça em seu íntimo, podendo
ter maus humores aleatórios, que também ri de tudo, basta uma mínima gracinha
que fazes para mudar tudo. Seguiremos juntos nesse intento, nessa viagem
deliciosa de corpo e pensamento. Como eu te acho inteligente! Tenho de repetir
isso, porque é algo que me atrai, fico horas enredando essa conversa, me
comovendo. Tu me afetas de um jeito que nunca havia sentido, então eu te disse
que sou tua e é contigo que quero seguir o curso da velhice. Por isso
alegre-se, meu amado, o tempo do sossego há de chegar — se é que ainda não
chegou — nele aquilo que tu concebeste como criação e elevação de toda a estima
mútua, surgirá diante de nós, tão claramente que confundiremos com desses
clarões misteriosos que riscam os céus. nada poderá mais nos perturbar, nenhuma
sombra, nem os fantasmas arrastando suas frágeis e reativas palavras. apenas
nós dois, podemos causar um desequilíbrio, porque isso ocorre e vidas ajuntadas
e intensas. Em breve retornaremos nossos trabalhos, aqueles que nos instigam a
viver felizes, mesmo cheios de hábitos, com um rigor necessário, pontual que
pode nos afastar por alguns dias, mas saberemos do lugar ocupado por esse amor.
Não somos principiantes e a madureza que trazemos à luz, decerto nos guiará. O
que fizemos, nossas intenções, podem até provocar despeito, inveja, sentimentos
menores, exceto retirar-nos o respeito que sempre intentamos em nossas ações.
Tanto quisemos curar as feridas alheias, dispendemos nosso tempo, isso é o que
move-nos, somos almas parecidas, quase gêmeas, embora amantes sublimes. É
provável que não te escreva mais hoje, nessa casa da praia há muitos insetos, a
luz acesa os atrai e evito fechar a janela por causa do calor. Eu te escreverei
amanhã, meu amor, talvez do nosso atelier. Sabes o quanto te amo!
Teu amorzinho
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 23: Meu homem apaixonado L.A, Gosto
demasiadamente desses códigos secretos, desses labirintos, dos espelhos colados
aos sapatos, das fugas, dos medos do menino, gosto mesmo é de ti, isso sim, me
move em direção às coisas que me são mais importantes: o outro, a Arte, o
pensamento, a palavra, o teu corpo, tua alma, teu espírito e, tudo aquilo em
que estás inteiro. Como tu me instigas e me animas! Eu ouvirei. Claro, não me
furtarei ao tremor, desses que o arrepio começa na base da coluna vertebral e
passeia despudoradamente por todo o meu corpo. Gosto que não sejas tímido e,
sejas cada vez mais assertivo, mais direto, sabendo que estarei contigo. Eu te
responderei que igualmente habitas os meus sonhos, quando some o teto sobre
nossa cama e, a chuva ilumina com cada gotícula, toda sua extensão. Tudo aquilo
que vem da fonte, daquele lugar que olhas, acenas porque brilha somente para
ti. Eu jamais te deixarei sozinho. Te direi, basta, não venha no meu encalço,
eu vou ao teu encontro, nos abraçaremos na floresta escura, em meio à nossa
vida, tu és o poeta que me guiará e irá comigo, eu serei tua Bice. Ignores essa
fina lâmina, esse corte de papel, que dói quando a água banha. Falta pouco, meu
amor, muito pouco para eu beijar os teus olhos, para viajarmos no meu foguete.
Quando sabemos ser felizes.
Tua mulher enxerida
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 24: Meu menino danado L.A, “Meu Muito Querido:
Há momentos em que o quarto escurece, nesses períodos devo ficar bem quieta,
hoje sei tanger os pensamentos hostis: basta pensar em ti, não como uma boia ou
qualquer coisa assim, mas como um horizonte, um mar aberto de interlocução,
águas que nado e não canso. Sim, ambos temos nossas línguas-de-osso, bebemos
águas de chocalho ou janeiro, falamos como "o homem das cobras",
desses que abrem as maletas no pátios das feiras ou nos adros das igrejas (eu
mesma adorava vê-los convencer as pessoas dos efeitos dos unguentos mágicos).
Hoje tive a impressão de que havia algo além de uma suspeita em relação à dor
de cabeça, afora todos os exames darem negativos quanto a uma doença física,
novamente ocorreu um epsódio estranho. Eu te contarei na próxima sexta, sim,
penso que mesmo que não a sigamos, um dia precisaremos de uma pauta, afinal, os
assuntos vão engarrafando como o trânsito de uma megalópole. Deste-me a maior
felicidade possível. Fostes em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa
podia ser (do inferno ao paraíso, um aprendizado único). Não acredito que duas
pessoas possam se divertir tanto juntas e sejam tão tranquilas nesses períodos.
Sei que há coisas que escrevo, não como devo dizer, mas não me exaspero, são
questões efêmeras que não mais nos entristecem. O que quero dizer é que te devo
toda a felicidade da minha vida, de saber-me amada, como devo e mereço ser.
Inventamos esses mistérios para proteger outras pessoas das dores inúteis, mas
tens a consciência de que toda a gente o sabe, inclusive, houve aquele clarão
no céu, algo inegável. Somos engraçados, às vezes, numas brincadeiras de
meninos buchudos. Não creio que duas pessoas sejam tão felizes como somos,
justamente nessas brincadeiras que inventamos juntos.
Tua Menina Amarela
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 25: Meu amor L.A, Tudo o que posso dizer é que
estou louca por ti. Há dias que apenas essas cartas me animam, talvez remontem
á maneira daquele psicanalista de quem tens reservas e eu, por constatar
mudanças importantes, continuo respeitando. Com isso, meu amor, quero dizer que
tentei enviar-te pela manhã, no malote que saiu antes das dez horas, todos os
manuscritos, com nanquim no papel cansom (algumas seguirão ilustradas). Vejo
que os dias passam e seu pudesse os aceleraria, sabes que espero
impacientemente por te ver. Tu me mandaste as respostas das primeiras cartas,
ainda nessa madrugada, morri de rir com a miscelânea de assuntos cruzados e
pensei: "É mesmo um danado, pensa que não vejo". Sugiro que não me
mandes as respostas, mas que as traga, que me digas quando estivermos na cama
(há alguma dúvida quanto à diversão dessa noite? risos). Como sei que és quase
um ratinho, comprei um queijo trapista, cuja receita remonta quase mil anos
(levarei para o sítio, um artigo que escrevi sobre isso). Também tenho uma
surpresa que vis gostar demais (queria ter a língua mais presa, não tem jeito,
agora tornou-se meio assunto inesperado). Quando te vejo, tudo o que queria
dizer desaparece, tudo o que reúno durante a semana e, caímos naquela mesma
loucura de voltar no domingo com assuntos não trazidos à baila. Sei o quanto o
tempo é precioso quando estamos juntos, o quanto são supérfluas as palavras. Como eu te
acho brilhante! Justamente porque compreendes a impermanência das coisas, e
repetes comigo: "tudo névoa-nada". Não é apenas isso que me encanta,
mas quando te preparas para voar em mim, as tuas pernas como um torno, o calor
no meio das tuas pernas. Acho que devo parar, ainda não estou tão impudica
assim. Queres a toda hora desmascara-me, provocares meu riso solto, nessa
brincadeira especular onde não há vencedores, nem vencidos, apenas um casal que
se ama e se diverte. Entendes porque olho para ti longa e ardentemente? Porque
és o meu amor? Há tanto sagrado em ti, o quanto te espero também nisso.
Tua amada
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 26: Meu amor L.A, Meu único amado, sua carta
foi deliciosa, levanto-me da cama mais animada. Andas com um bodoque no bolso
das tuas calças, só pode! Para citar apenas os três últimos, sei que os
estilhaços voaram em todas as direções, alguns vieram parar aqui, eu apenas ri
de tudo. Levarei o que vinho que gostas, queres mais algum mimo? Meu projeto de
tornar-te o mais dengoso do planeta terra, está de cima. Eu simplesmente não
posso lidar com a ideia que você, tão belo e ora, inteiramente meu, não acorda
diariamente nos meus braços. Isso é injusto, doloroso, menos porque temos
alguns dias na semana e esses, sãomuito intensos. Eu preciso ver você logo –
você é a coisa bonita que eu mais quero (nos territórios da paixão e do desejo)
Mas, mas eu não sei como fazer isso. Fomos durante muito tempo, pressionados
pelas asas dos abutres, eu não os quero mais por perto. Hoje sei quem nos quer
bem e quem não suportou nosso enlace. O nosso amor passou pela sombra e pela a
luz do estranhamento e da tristeza e saiu disso radiante como o vemos (e o
veremos). Sejamos sempre, infinitamente queridos um para o outro, como, aliás,
sempre fomos. Penso em você todos os dias.
P.S: Eu gostaria enormemente de partir com você para qualquer lugar onde haja frio e cores nos céus, que tal a Escandinávia?
P.S: Eu gostaria enormemente de partir com você para qualquer lugar onde haja frio e cores nos céus, que tal a Escandinávia?
Tua Dona
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 27: Meu Amorzinho L.A, Temos a certeza de que
além do que pode unir como um casal, nesses assuntos relativos ao desejo, às
invenções deliciosas da carne, há o que me parece o mais fundo: nosso amor à
Arte, que se desdobra à criação, circunscrita nos territórios distantes da vaidade.
É algo mágico a forma com a qual tu percebes a realidade, unes os pontos exatos
dos diálogos, fisgas as sutilezas das cores, das texturas, das filigranas das
letras, palavras e sentidos. Eu fico verdadeiramente impressionada com tua
agudeza e velocidade de raciocínio (confesso que é mais difícil acompanhar a
velocidade dos passos das pernas). Tu conferes à realidade, um nexo alquímico,
onde tudo está presente e, ao mesmo tempo, escondido. Pareces dizer:
"Aqueles que podem ler, que leiam; os que não compreenderão, aguardem, vou
esmiuçar melhor nas próximas vezes", debulhas os fractais, organiza-os,
torna-os passíveis de serem melhor vistos. E, o que me parece mais estranho é
que as linguagens se interpõem, também surge uma profusão de estilos,
inspiração multifacetada, uma estrutura complexa que sustenta sem, no entanto
franquear aos leitores, aquilo que a sustenta. Vejo que o que está por trás, a
engrenagem, a coxia, o mecanismo e o método utilizado, nunca é visto, quase
sempre (porque, às vezes escapa ao leitor mais astucioso), é algo velado.
converso contigo, como falava com meu pai, sobre literatura, com os olhos de
menina curiosa. Então tens a mesma paciência e, aquilo que não sei, pegas a
minha mão e me mostras com o entusiasmo de quem faz aquilo que ama. Essa é tua
beleza, é isso que me aquece, quando trovejo, chovo, neblino. Não te esqueças
de que, de modo algum, junto de ti, eu sinto medo. Tivemos todos os sinais de
que estando juntos, nos protegermos do mal, avançamos com nossas
visões de mundo, afinadas como a música que me deste. Musa e muso, que apenas a
nós dois interessa. Eu me atrevo a dizer, em nós, estou certa de que o amor
habita, pode ele ter outras casas, nessa, a nossa, ele tem a melhor vista. Eu
te amo, como tu me amas e amas os livros. Estou louca para contar a surpresa,
mas esperarei até sexta. Não, não estou grávida, sou uma velha, a tua velhinha
doida, meu amor (não fosse isso, acho que teríamos duas dúzias de meninos e
meninas, todos com a tua cara linda). eu te dou meu amor, minha lealdade, minha
paixão e compartilho contigo, todos os teus desejos. Sempre.
Tua Bice
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 28: Meu querido L.A, Todas as cartas que te
escrevo saem-me com toda a naturalidade com que faço outras coisas, como beber
um copo d'água (que me trazes de madrugada e eu adoro). Como me é agradável
dedicar um tempo a te escrever e te enviar essas epístolas, só tu sabes o que
significam para mim. Elas refletem obviamente o que têm de refletir que é o
querer a essa pessoa, amá-la e sonhar durante todo o tempo com ela. E,
portanto, manifestar, dessa forma, cada passo ou bater de asas.. Tenho muitas
razões para pensar, por exemplo, que o grande acontecimento amoroso da minha
vida, foi exatamente esse, poder te encontrar numa idade em que o deserto foi
atravessado e as dores não destróem os sonhos. Foi ter conhecido a ti. Se eu
não tivesse te conhecido, como saberia sobre o amor? Você poderia dizer: “Ah,
mas você teria conhecido outros homens”, como aliás, me enfadava com seus
ciúmes enrustidos, sugerindo que eu voltaria ou seguiria com outros meninos.
Mas não é disso que se trata, não é uma maneira comum de perceber a beleza e a
intensidade do nosso encontro, é outra coisa: nada podíamos fazer depois
daquela sexta feira. É simplesmente o fato de ter o teu riso e os teus olhos de
índio, olhando para mim, nada mais. E isso mudou a minha vida completamente.
Tua Amada Cy
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 29: Meu Amado Imenso L.A, Quantas vezes eu te
disse que foste a primeira realidade no lugar do amor verdadeiro? Como não rir para
ti e não ser tua mulher, se seguindo, com os passos curtos de uma gueixa? com
as garras de uma onça Jaguaretê? Como não te dizer todas as palavras que te
elevam ao lugar mais alto desejado por todos os mortos? Estamos onde homem e
corpo são intrínsecos um do outro. Como negar isso? Então te digo: sim, tens
meu riso e minha dor, meus dias e aquilo que buscares e representa o universo
para ti (menos ser o alvo daquela lâmina, feita toda de língua, que anda
cortando à tela). Eu apenas ponho aspas no que me confessas, quando dizes que
me amas e, devolver-te. Logo, meu amorzinho, só tu és a realidade (complemento
dizendo que és também todo o sonho). Acordo e corro para os teus braços,
estando longe ou perto, porque hoje sei que estás m e esperando infinitamente
mais inteiro do que um dia estiveste. Foi assim que nos tornamos o amor dos
olhos do outro, antes de nos tornarmos amigos, por essa coisa enigmática que
nos levou a conversar quase um dia inteiro, fazer uma festa, pintar o rosto,
morrer de saudade na despedida primeira. Sabíamos que não éramos duas partes se
encontrando, duas metades vagas e soltas no mundo, nem tínhamos o semblante de
todos os outros amores antigos, assim pudemos suportar os primeiros meses, seus
castigos, suas sombras, os versos ressentido e às provocações das manhãs.
Seguimos ao largo das plântulas extintas, das garrafas quebradas, "das
setas envenenadas do ventre", como diria Ara. Acordei e te espero para
sair e não levar a metade de ti, não te deixar sem chão. Penso que tens não apenas
meu riso, todo o meu corpo, mas a boca para pronunciar esse amor e, às mãos,
para criar a Arte que também sustenta nossos diálogos. Sempre fomos duas
unidades, dois bólidos que se chocaram sem prejuízo de nenhuma das partes, duas
surpresas guardadas há muito tempo para si mesmas. Sim, meu amor, eu te digo
(aparentemente me contradizendo): desde sempre, fomos uma pré-unidade bem
ordenada. Sempre estivemos à nossa procura, na ínfima probabilidade, nos
achamos. Como me cansar de dizer que sou louca por ti? Seria diferente se não
houvesse tanta sincronia, na vida, no desejo e no pensamento. Sempre fomos,
quando não havia mesmo o antes, onde eu sorri para ti e tu me sorriste de
volta, quando nos iluminamos. Como não te amar tanto?
Tua Nut
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 30: Menino bonito L.A, Comparam-nos a tantas
figuras, animais, plantas, que loucura, meu amor! Eu sou, para dizer-te em
breves palavras, uma criatura de uma simplicidade espantosa, apaixonada, porém
tímida, disfarço, sei que ainda estou criando aquela intimidade pretendida com
a palavra, mas é exatamente assim que eu me sinto. Tu, em troca, és um
verdadeiro poeta, cada letra é um palavra e, como és rápido, canoro, penetrante
e potente, apenas acredito que exageras no tempo de trabalho, em detrimento ao
de descanso. Sei que pensarás: "quem fala?!", sim, precisamos
equilibrar melhor nosso tempo, como equacionamos aquele propósito do descanso
nos finais de semana. Agora senti vontade de relacionar alguns traços que ejo
em ti, então resumirei essa carta, a isso. Ei-los: tens celeridade no
pensamento, és silencioso, quase nunca permites que saibam o que pensas (nem eu
sei direito), conduzes dentro desse modo silente, o que queres, como queres e
isso, tanto tranquiliza, quanto enlouquece, tens como aquele nosso amigo (que
nasceu no Império Austro-Húngaro e nos visitou noutro dia), "força, saúde,
apetite, potência de voz, talento oratório, autossatisfação, superioridade
mundana, perseverança, presença de espírito, experiência e certa amplitude de
vistas, claro que com os defeitos e as fraquezas que correspondem a todas estas
virtudes e aos quais te levam teu temperamento" e, nisso diferes dele, teu
bom gênio. Vou te contar um segredo, que eu da minha parte, nem sei mesmo se
guarda alguma veracidade, pois és imprevisível nas paixões, mas acho que
ficaremos juntos até o fim dos nossos dias e, consequentemente mudaremos muito
nossas visões de mundo. Eu ainda sinto ciúmes, mas não pretendo viver assim
para sempre, acho que é algo insuportável, desnecessário e, te digo isso desde
sempre. Posso parecer louca, mas viveria uma vida claustral contigo, naquela
casa que sonhamos (e, estou confiante que em breve a teremos). Mudando um pouco
de assunto, chegarás no dia em que a lua estará mais cheia, podemos colocar as
cadeiras do lado de fora, onde a noite é mais escura e deixar que a luz
prateada, nos ilumine.
Tua Ocyane
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 31: Meu Dono L.A, Estou aqui, aguardando que
acordes e adorando o atraso, significa que equilibras por algum período, as
horas de trabalho e de sono. Meu menino querido, esta carta é a despedida da
amante que te deixa por uns minutinhos para ir ali, na esquina, encadernar as palavras,
fazer tuas vontades. Sei que acontecerá oque acontece sempre enquanto caminho e
gosto de fazer isso, vou te recordando e rindo sozinha das tuas brincadeiras.
Quem passa por mim, deve-me reputar como uma louca, rindo sozinha com cara de
besta. Teria outra cara o amor, nas manhãs de sol, senão essa próxima às das
representações dos êxtases dos santos? Quando li um trecho do poema de hoje,
senti minha voz embriagada, meus olhos afogados, descobri que não sou assim tão
má quanto pensam nas terras distantes. Eu te digo, senti mesmo vontade de
chorar, recuei da carreira desabalada em tua direção, nessa manhã, desse ritmo
de fogo e, parei para te esperar na areia da compaixão. A lucidez das dores
alheias, dos sonhos esgarçados, dos olhos tristes e fuzis de letras, me
paralisou o riso. Sei que não deveria, caso fosse alguém como fui descrita, uma
sombra, um corvo, uma velha ou rosa ressequida (sim, eu dou importância ao
outro, mesmo nessas horas delicadas, escuto suas vozes clamando o improvável),
uma vez que os pactos foram descumpridos e eu continuei efetivando os meus, por
isso somente, sinto-me livre de qualquer discrição, mas prefiro seguir os meus
próprios caminhos e afugentar à mágoa que caberia em meu peito, caso eu me
permitisse. Queria te dizer isso, mesmo que não nos importe ou nos interesse,
como antes ocorria. Acabaste de chegar, vou correr para ti.
Teu amor
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 32: Meu Bonito L.A, Hoje pensei no quanto
estamos ficando velhos, como víamos nossos pais, tios e avós. No quanto estamos
nos acostumando um com o outro, nas tardes dos nossos dias possíveis. Pensar
que não vou vê-lo é terrível, por isso, desde a segunda, organizo a agenda,
desfaço tudo o que poderia me impedir de ficar contigo. Pensamos parecido.
Lemos a mente um do outro. Sabemos o que o outro quer sem perguntar. Tu já
pensaste no quanto isso é estranho e intenso, na exiguidade do tempo para
tanto? Eu mesma, fico bestinha. Nos tratamos como algo garantido e continuamos
nos equilibrado em um fio, nesses sonhos funâmbulos que concebemos. Somos,
repito, muito sortudos por compartilharmos essas trelas. Tu continuarás me
fascinando e inspirando. Cada vez que vens, sinto que é a primeira, a primeira,
sempre a primeira e fico cobiçosa da sua presença, contando as horas,
exatamente como deve ser uma mulher apaixonada e destemida. Você me faz ser
melhor. Você é o meu objeto de desejo e, é por isso que eu amo e cuido.
Tua Traquina
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 33: Meu Camarada L.A, Enquanto, durante a
semana, nos separa um espaço, estou convencido de que o tempo é para o meu amor
como o sol e a chuva são para uma planta: fazem crescer. Isso parece tolo, mas
se pensares direitinho, quantas coisas cresceram em nós, com aquelas chuvas
presentes em nosso quarto? Basta saberes que o meu sentimento é gigantesco,
sagrado, pândego (como gostas, na medida exata do teu humor); e nele se
concentra toda minha energia espiritual e toda a força dos meus sentidos. Se
falaste do meu riso e, o teu? Quando esboças o mínimo esgar, eu me derreto,
flama na neve, incêndios noturnos. Mas se eu pudesse pressionar contra o meu
coração o teu, coração infindo, aberto ao outro, ele saberia o que vivi, então
me beijarias, sem me dizeres uma só palavra. O teu silêncio também é minha
fonte e minha luta. Não gosto que encontres outra pessoa para jogares xadrez
(bem sabes o porquê).
Tua Camarada Cy
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 34: Meu Par do (meu) Reino L.A, Que felicidade
suprema foi a minha hoje, querido desta alma! Como tu és lindo, afetuoso,
encantador, amante e poético! Nunca te vi assim, pelo menos, não comigo, nunca
me pareceste tão belo! É vária tua criação e nela eu me perco, descubro as
notas barrôcas, ligo os pontinhos, retiro as folhas de papel coladas umas às
outras; rejuvenesço minhas ideias, relembro o que havia esquecido, me surpreendo,
que passeio agradável, meu amor! Possuir-te é gozar de uma raridade, algo
inesgotável e pulsante. Juro-te que já não tenho mérito em te ser fiel, és-me
único. Nunca quis me fixar em outro corpo, de mudança, como se fosse minha
casa, meu abrigo no mundo, mas quis em ti, habitar para sempre. Também nunca me
senti tão livre, o que me faz querer ficar cada vez mais perto. E o que eu te
estimo e aprecio além disso. Tua ternura verdadeira. Onde estavam no meu
coração estes afetos que nunca senti, que só tu desadormeceste e que dão à
minha alma um entusiasmo tão ameno? Realmente que te devo muito, que me fizeste
melhor, outra do que jamais fui. O que sinto por ti é indecifrável, está
constantemente se renovando, não se prende à cadeia dos dias, posto que dura
apenas um deles, de cada vez (como um adicto se salvando da morte). Bem me
dizias tu que em te conhecendo te havia de adorar e, que tu já me admiravas,
apenas pela Arte e as surpresas subsequentes. Estou me estendendo muito nessa
escrita, devo descansar para ti. Pentearei e empoarei minha peruca, reforçarei
os cachos, colocarei rodelas de pepino nos olhos, separarei o khol (pigmento
preto), um minério de antimônio ou manganês (fórmula antiga), o verde de
malaquita, um minério de cobre, e o cinabre, um minério de sulfeto de mercúrio,
para pintar as pálpebras, os lábios e a face. Prefiro esses cosméticos aos mais
recentes. Também terei que verificar cada um dos arames da combinação, das
fitas, as meias e outros adereços, imagines que passo mais de três horas para
me vestir e ficar diante dos teus olhos desejosos de mim. E, em poucos
instantes, retiras tudo isso, amassas e me fazes a mulher mais feliz que
existe.
Tua Anquinha Aramada
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 35: Meu Amado L.A, Eu guardo um conflito em
relação a ela, no mesmo instante em que a rechaço, também nela acredito, vá
entender essas coisas! Ela é a vida, essa incontida hemorragia do tempo. Sei
que, existindo ou não, há algo que me alimenta e, nesse caso, eu não contesto.
Ter atravessado aquela sequidão do deserto, sua aspereza que me indicou o
significado da solidão e me trouxe de volta para uma espécie de centro, de onde
posso me lançar, no entanto, não sucumbir às perdas e distanciamentos do mundo.
Confesso que isso me equilibrou como se realinhasse alguns princípios sagrados
e trazidos no colo, com cuidado, até ali. Dentro dessa espécie de transe,
coragem de morrer, ardência nos pés, ouvidos moucos às ameaças, esse modo de se
desnudar no meio da praça, sendo alvo ou não (às vezes, tornando-se alvo, por isso
mesmo, por querer ser destemida, mesmo chorando por dentro). No centro desse
vazio, eu ri, surpresa em saber-me sozinha e não encontrar a dor inexpugnável
todas as manhãs, antes, reinventava um modo mais compacto da alegria e, a
levava comigo dentro dos bolsos, da mochila cheia de livros, da boca. Então
salvei-me da insolação do percurso. Aprendera a fazer silêncio, para fora e
para dentro de mim mesma, silêncio no outro como uma forma de respeito. Lidava,
àquela época com a questão do espaço, da casa, do corpo, da cidade, das outras
cidades que me olhavam inquirindo meio mundo de coisas, os espaços íntimos, aqueles
que, de tão vazios, ensinavam sobre o eco das palavras mínimas. e, tudo isso,
mais para o outro do que para mim mesma, dava para ver no momento primo, no que
sangrava através dos meus olhos, o que era, do afeto, início ou coisa finda.
Aprendi ainda mais a dar às costas ou correr arfante para o abraço, nos filhos,
nos amigos, nos pais, em adulto, menino, nos bichos. Abracei a mim mesma, não quis
mais abraçar o vazio como uma coluna fincada no meio da minha sala. Na hora em
que nascemos, mesmo sem dentes, temos que aprender a trincá-los, mostrar que
mordem, temos que acabar com isso, deixar que à luz da leveza e não do violento
grito, as coisas surjam, irrompam, se entrelacem, dêem frutos, morram, vivam.
Ficar diante dessa possibilidade, desse mistério, amassando as uvas com os pés,
mastigando as flores, lavrando o campo das ideias, recobrando os sentidos após
breve desmaio, renascendo sob o sol quente, após ter caído tantas vezes, levado
tantos murros da vida, saber-se irremediavelmente sozinha. E, eu te digo, meu
amor, hoje, contigo não me considero uma eremita como fui nesse sabático
necessário à compreensão do outro, para o qual sempre irei ao encontro e, até
hoje, me dirijo. Não há nada além do outro e, isso é salvação e castigo, uma
ponte, uma escada, um pântano, uma praia, a cama, o trem, o ombro, o
travesseiro, a corrida pelo pão, a desmedida paixão, o amor falso ou
verdadeiro, tudo está ali, no outro. Essa tomada de consciência, se veste de
poesia e de horror, não há como tirar o mundo de dentro do s olhos, após
estendê-los no além de si. Nem recolhê-los, como se fossem fragmentos de
conchas (na extensão dos sambaquis), laranjas, dados do acaso, cabelos na pia,
donativos para os desvalidos, as fichas dos jogos do viver, as fotografias e as
armas dos mais temidos embates. Sempre sobrará o poema, nu, no meio dessa praça
oscilante, dessa areia movediça que a pavimenta, dessa vida lassa. Então o
tempo ocupa-se desse movimento das vagas, desse ir e voltar que traz, leva,
dissolve, cria e, quando gira, redemoinho que transporta as nuvens, os ciscos,
a poeira suspensa, aquilo que um di nos tornaremos. Compreender essas ondas da
realidade, que independem de nós e, ao mesmo tempo, não seriam sem que as víssemos,
é estranho, une e reparte, contrai e estende, como tuas escrituras fazem no
corpo de quem as lê. Devo concluir essa carta, daqui a pouco tempo chegarás,
estou ansiosa, parece que nunca te vi, tu és desses maridos prometidos dos
séculos passados, que pode ou não dar certo, conquistar meus suspiros ou posso
mesmo estar com aflita de ar, do segundo encontro, com o primeiro namorado.
ele, esse preliminar desejo é teu, com todas as coisas que vês e eu vejo, estás
pensando que é brincadeira amar? Como se toca realejo e se vê uma multidão
seguir? De homens, vaga-lumes, ratos, borboletas, um cardume? Não, é coisa
íntima, alvoroço contido até a hora do abraço, coisa que emociona no instante
do primeiro memento, que põe os pés, funda e se alarga por dentro. Desmesurado
contentamento, porque chegarás em poucos minutos.
Tua Alvoroçada
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 36: Meu amor L.A, Sobrevivemos a um final de
semana na Idade Média, foi divertido como tudo que fazemos juntos. Banhos em
garrafas d'água mineral, banhos de saliva, de chuva. Sim, foi um final de
semana inusitado, agrada-me a ideia de estarmos cada vez mais próximos um do
outro, sabendo que para equilibrarmos nossos desejos, teremos que surfar nesses
devires, passadas aquelas ondas, desfeitos os laços que sustentamos por
outridade (claro, nada é exatamente assim, há o tempo do outro e o nosso
tempo). Lembre-se que assim que tu atingires aquela marca e, fechares o longo
tempo daquelas paixões, teremos mais espaço para inventarmos nosso tempo
futuro. Sei que estaremos juntos para sempre (esse sempre é o tempo da alegria
e do encanto), sem discussões ou outras coisas, somente para amar um ao outro.
Eu te amo mais do que nunca.
Tua Cascão
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 37: Meu amado L.A, Eu não sei como te dizer
sobre esse domingo que arrasta-se sob os meus pés, carregado da falta que me
fazes, após dias de imensa alegria. Como te dizer do quanto sinto tua falta? Da
nossa conversa sem fim, dos risos e dos abraços que se estreitam e tornam-se a
cada dia mais delicados? Do quanto fizemos, ambos, a escolha certa, de
continuarmos afirmando nosso voo. Eu te respondo: sim, eu quero, aceito e
ficarei todo o tempo em que o amor, essa imensidão que nós nos tornamos.
Eu te amo tanto que meu coração poderia explodir. Tudo o que amo, tudo o que
quero, tudo o que preciso é você - para sempre. Pareço inestética, às vezes,
sinto-me como se jamais houvesse vivido tanto. Eu quero apenas estar onde você
está e ser o que você quer que eu seja. Eu sei que é inapropriado de minha
parte tocar naquele assunto que consideramos finito, se o faço é para
compreendermos o exercício de outridade e seus desdobramentos, urge o
esvaziamento completo de uma história que muito nos custou e, hoje, nada mais
nos custa. Tantas vezes, e eu prometo que vou tentar milhões de vezes mais,
aceitar a tua sugestão: olhar apenas para ti, esquecer os nomes, deixar quem
não os interessa convidar para nossa vida, fechar um ciclo (demasiadamente
prolongado). Aproveito para te agradecer o presente, aquelas palavras que me
embalarão durante toda essa semana, a candeia que me alargará a consciência
sobre a alteridade. Eu te amo, meu menino.
Tua Nut
EPÍSTOLAS
OBSCENAS 38: Meu Gato Garoto L.A, A felicidade está
dentro de ti, eu a vejo, quando decidimos que o passado não seria mais posto em
nossa sala, lugar de criação, brincadeiras, indecências, risadas (quem dobraria
a gargalhada lendo as besteiras que lemos ontem, aquelas cartas tolas?). Termos
nos libertado das correntes dos últimos tempos e nos permitido crescer naquilo
que nos aproxima, no que passou a ter mais sentido, no que chamamos de amor,
amizade e desejo. Significa uma construção de um percurso surpreendente, claro
e instigante. Iluminamos a adega, é nisso que penso agora, sabe aquele frio na
coluna? Aquela memória dos abraços? Cresce uma flor em minha garganta e eu sei
a resposta: apenas abra as suas asas e se se sinta livre dos grilhões do
passado. Estamos juntos (e felizes).
Te amo para sempre
Tua Gata
OUTRAS EPÍSTOLAS
I
Durante quase uma década, nenhum homem a tocou.
Pensava nisso quando o táxi parou na frente daquela casa e ela reviu o longo
corredor: ali, noutros dias, meia dúzia de rapazes a desejaram, no entanto, ela
fez que não era consigo, ignorou-os e nunca mais voltou ao local. Naquele dia,
trataria de questões restritas ao trabalho. A pontualidade, a pressa ao
caminhar no quarteirão, o sol e o desconhecido, a fizera suar e falar demasiadamente,
sentia-se esquisita. Parecia livre de correr os riscos conhecidos, que gravaram
as mãos dos homens em seus desejos, na geografia de sua carne; ali, diante
dele, viu que encurtara sua respiração e, ao perceber seu olhar agudo, apertou
as pernas, disfarçando que as cruzava na cadeira. Quando o viu, tratou de
dar-lhe um abraço, foi um gesto impetuoso, sem nenhuma intenção velada de
sedução. Falaram o necessário e, puseram-se a conversar sobre outros assuntos.
Imediatamente, após algumas cervejas, percebeu que ficara ainda mais arfante,
desconhecia no entanto, a razão de tal decorrência, não esperava reagir daquele
modo, até os seus passos mudaram o ritmo. Após algumas horas, temeu que ele
corresse os riscos das noites e o convidou para hospedar-se em sua casa,
Rigorosamente para protegê-lo até às primeiras horas do dia seguinte.
Continuaram, um diante do outro e, numa intimidade improvável, numa liberdade
inaudita, falou para aquele estranho, sobre histórias inacessíveis, dessas que
seus maridos e namorados, jamais acessaram - sobre a ausência do lugar do amor,
por exemplo. Quis alegrar-se com ele, inventando um entrudo, chorando por
vazios que arrastava há tanto tempo, envergonhou-se da disposição do mobiliário
e das caixas abandonadas ali, há meses, daquele caos que se instalara. Entrou
numa espécie de transe, dormiu sem saber se era manhã ou tarde, qual o dia da
semana que estavam, reiniciou uma tentativa de compreensão do que ocorrera,
querendo segurar suas mãos e calar diante de uma pergunta que vinha à sua
garganta: o que estava acontecendo? Temeu afastar-se e, ele era até então,
apenas um estranho afigurado por um amigo. Quando chegaram naquela montanha,
ela desabou, quebrando os ossos, imobilizando o tempo, esquecendo a intensidade
de tantas dores. Em uma interceptação do seu olhar, o viu: inteiro, desejável,
iluminado, pode avistá-lo tão grandioso diante de si que, quase despencou da
cadeira ou desfaleceu. Acordou com ele alisando e beijando seus cabelos, uma,
duas, três, vinte vezes, despertando algo secreto na superfície de sua pele.
Abriu os olhos devagar, sentiu que a respiração encurtava, que queria suas mãos
e sua boca, perto de si, para que se distraíssem e passassem horas em um beijo
longo, molhado, vigoroso. Ele quis levantar-se, ela o segurou pelo braço e não
puderam mais resistir àquela estranheza, ambos não pensaram naquele desfecho.
No início do beijo, ela sentiu um tremor como se fosse descer uma corredeira de
gozos, em um rio infinito de deleite, molhar-se naquelas águas, chover enquanto
a força do vento, a levava rio abaixo, fazendo-a deslizar como jamais sentira.
Assustou-se porque nunca sentira tanto amor e desejo, gozo e uma vontade de
fazer com ele, tudo o que guardara, em seu corpo por mais de três décadas. Não
tocou o corpo daquele homem, sentiu que ele alcançara sua alma, porque ficara
líquida, abrasada no rastro de suas mãos cariciando seus seios, seu ventre,
seus braços, suas pernas, eriçando seus pelos e, convulsionando seu corpo.
Sentiu que ia desmaiar, que parecia sublevar de tanto gozo, não sabia como
afastar-se daquelas mãos e daquela boca, agitava-se, até que sumiu dentro de
si, foi a lugares repletos de luzeiros, brandões suspensos, fazendo-a
desconhecer à força da gravidade, seu próprio peso, tremular nesse lugar ignoto
da fome que a invadira. Sentiu que ondas elétricas percorreram seu corpo,
vindas do desconhecido afeto. Não, a partir dali, ele não era mais
desconhecido, sabia que era seu amor, sabia que estava inaugurando esse lugar:
com as pernas apertadas, molhadas de desejo, falando sobre o cego genial, que
ambos gostavam, querendo que ele, seu amor inaugural, morasse dentro de si,
para sempre. Não conseguiram fazer amor, naquele dia, porque os cães invadiram
o quarto, os insetos o fustigaram, as horas os confundiram, não sabiam o que
fazer. Pareciam assustados com tudo aquilo. Alternaram seus sonos, mas
encontraram-se nas primeiras horas da manhã: não podiam deixar de agarrar-se um
ao outro, vorazmente, descontroladamente, enlouquecidamente, volteando suas línguas
dentro das suas bocas; ele, com o pau tão duro que a fez transmudar-se em
trovoada, retomar os gozos encadeados, lamberam-se, sentiram uma imensa alegria
de algo que, estando além do sexo, dentro das invenções da liberdade e do gozo,
atingiu suas existências. Sabiam remanescer, essa lascívia, do sagrado e do
sacrílego, das luzes vermelhas do espírito e dos salões concupiscentes dos séculos
passados, retiravam os frutos da afrodisia dos seus jardins íntimos. O quarto
revestiu-se da voluptuosidade que sacudiu os dois pares de pernas,
enrodilhando-os, inventando tantos orgasmos que ela pensou que ia morrer. Ela
quis lamber todo o corpo daquele homem, segurar com força seu pau duro,
agarrar-se a ele, abrir suas pernas e permitir que ele morasse dentro dela, convidá-lo
para dançar o ritmo atávico dos animais. Estava assustada com esse batismo
erótico, essa imensidão que ele inaugurara nela, essa vontade de brincar de ser
uma cortesã de antanho, com seus gritinhos, seus jogos impudicos, seus
encarnados gozosos. Quis que ele ficasse sobre ela, numa cadência que a levaria
a outros tantos gozos, aos lugares no interior dos desmaios, queria seu peso,
seu suor colando seu corpo ao dele, queria ele, inteiro, para sempre. Não ousou
perguntar nada além do que estava acontecendo, temeu sair dali, compreendeu em
um instante, o que significa o amor liberto. Ele a faz virar uma chuva, sempre
que se aproxima dela, até mesmo quando fala ao seu ouvido, sente que neblina
por dentro, contraindo seu sexo. Nunca havia deixado beijarem sua vulva, seu
grelo intumescido, enfiar a língua em sua vagina quente que mais parecia uma
mina d'água ao lado dele. Nunca outro havia feito isso antes, embora alguns
tenham tentado, ela guardara para aquele desconhecido que sabia ser seu amor,
pequenas delicadezas, as quais presenteava apenas a si mesma. Sentia os dentes
dele em seus mamilos, gostava daquela mínima dor, ele os chupava, descia a
língua por suas ancas, lambia detrás das orelhas, agarrava-a com força,
fazendo-a cair inerte na cama. Ela sabia que isso era possível porque brincava,
enfim, livre, no corpo, na alma e no espírito de um homem. As lágrimas vieram
depois de alguns dias, ainda assim, ela segue o amando, ouvindo os próprios
trovões, quando ele se aproxima.
II
Até colidir com ele, jamais havia pensado em
roupas para deitar com um homem (exceto quando uma amiga trouxe de presente de
casamento umas roupas íntimas esquisitas. Até aquele dia, o pódio das calcinhas
era bunda-rica ou qualquer uma, sem essa coisa de rendas e balões. Teria uma crise
de riso se vestisse aquilo, era muito encabulada para certas coisas (escondendo
muito bem para que ninguém percebesse, ou seja, o inverso da maioria). Depois
que ele se foi, sem que ambos soubessem se haveria um reencontro, ela passou
uma semana numa cama hospitalar, tomando anestesia, cortando e costurando os
pés. Ele, seguindo a vida tranquila do colo e do enredo antigo. Sonhou com ele
enquanto esperava a maca, quando teve medo de morrer ali, nunca mais vê-lo, não
dar tempo de tanto amor compactado na improbabilidade do desejo. Alugou uma
casa, convidou o amigo-irmão e esperou seu amor, estava numa espécie de transe
(reivindicou sua reverberação até o fim). Quando tocou o interfone, seu coração
parecia uma sinfonia étnica, um desmantelo, teve vontade de voltar para o
banheiro, destrocar a roupa, se esconder para sempre, morta de medo do
desconhecido. Começaram a se beijar no elevador, esqueceram os andares, abriram
a grade, foram para a sala, mais contidos: ela teve vontade de gargalhar de
tanto amor, rir porque estavam ali, sozinhos, sentiu-se imersa na
bem-aventurança de saber-se dele, de querer guardá-lo dentro de si, de levá-lo
para os lugares onde o céu mudava de cor, nas madrugadas frias. Eles eram
vascos amantes: ela caminhou, abriu uma garrafa, beijou aquele homem e
encostou-se no balcão da cozinha. Quis que ele a beijasse, no colo, no pescoço,
a agarrasse pela cintura, apertasse suas ancas, mordesse sua língua, seus
seios, a segurasse pela sua bunda, arranhasse suas pernas, buscasse sua boca, descobrindo
nela, gozos que jamais haviam visto o mundo. Ela tornou-se líquida, sentiu uma
poça banhar seus pés, enquanto gemia, arquejava seu corpo, agarrava-o louca por
ele, para sempre, espantada com a chuva que vertia de si, como se fosse uma
nuvem nas mãos dele, uma velha e rara joia guardada para aquele homem, fazia-o,
por conhecer o amor. Riram, arrumaram os vestígios libertinos que inventaram
ali e retomaram o diálogo sem fim: os fios que a enlaçaram e a transformaram em
um lago. Após esse dia, soube que ele gostava quando não usava calcinha e uns
vestidos arrebatadores. Nunca havia pensado em roupa para um homem, que coisa
mais sem sentido, escolher o que vestir para ser admirada. Todos os meses
seguintes, esqueceu a calcinha em casa, sentavam em qualquer lugar e não
sustentavam um toque furtivo e libidinoso, suas respirações mudavam. Foi assim,
em um pátio cheio de gente, quando ela tocou de leve em seu braço e ele ficou
de pau duro, tendo que disfarçar, com um olhar que a deixou ainda mais faminta dele.
Nessa semana, encontrou uma camisola vermelha, lembrou-se dele, que não via há
semanas e, a trouxe consigo: ele terá todas as mulheres que quiser, nela, que
espera lamber levemente, o foguete que a leva para todas as metagaláxias de uma
só vez, líquida como agora, enquanto escreve.
III
Aquilo que durante oito anos, fez parte da
minha insônia, torna a me indagar no presente: são as reflexões acerca do corpo
e da arte, sobre o lugar e a construção do espaço, o continente e o conteúdo, o
sagrado e a escassez da fé, o amor e a construção histórica do lago que o
afoga, o reconhecimento do colo antigo e às imprecisas geleiras, enfim, sobre
questões que invariavelmente nos conduz aproximando-nos ou livrando-nos dos
apelos díspares dos desejos. Percebo que ao me voltar para a atuação do tempo
nos afetos, desse que é impresso na memória ou irremediavelmente perdido, busco
conter a invisibilidade do outro, sobretudo quando ele não está mais ali,
partiu para outros mundos. Ler as marcas embutidas no testemunho da fotografia:
a expressão de cada indivíduo que posou para a lente de outro indivíduo - esse
mantendo um estreito laço com o susto das primeiras máquinas; a coloração do
papel e saliência chegada à superfície, dos sais de prata; o documento do
suporte e seu verso, sua delicadeza ou formalidade; o testemunho da moda,
implícita no rigor do vestuário e do gesto, na imobilidade precisa, nos dá
pistas para descobertas do nosso olhar presente. Dos acenos das Câmeras
Obscuras, colando aos cartões daquela época, suas imortalizações aos teatros
orientais, ocultando detrás da imagem, cenas concebidas para o alumbramento do
espectador. Assim, sobre aquele moço que herdou parte dos instrumentos que
precisava para realizar sua ideia, há o registro do que escreveu Lemaître:
"Acredito que ele possui uma inteligência rara em tudo o que envolva
máquinas e o efeito da luz", sobre Daguérre, como poderia ser dito de um
modo ou de outro, sobre aqueles que o antecederam ou sucederam: Talbot,
Florence, Wedgwood, Niépce, Voigtländer, Atkins, Bull, Harris, Rizzo, Hauron,
Itier, Marey, Nadar, Bright, Steinheil, dentre outros, anônimos ou com reduzida
visibilidade. Continuariam essas pesquisas suspensas, até o primeiro diálogo
que tive com ele, Luiz Alberto Machado, meu principal interlocutor sobre todos
os assuntos possíveis, inclusive a relação entre a imagem e a verdade.
Perguntou-me sobre o que dizer da improbabilidade e sincronia, sobre a colisão
de mundos. Nada que ocorrera naqueles dias de inverno, faria qualquer pessoa
próxima de nós, entender o que fora fundado ali, além do que comumente e
vulgarmente, chamam de amor. Entenderão, quando essa improbabilidade ressurgir
nas indagações sobre as imagens guardadas há mais de cem anos, nos álbuns da
minha família. Fiz-me então, inúmeras perguntas que abarcam aquelas questões do
passado e incorporam outras ao corpo dessa dúvida: Como foi com eles o advento
do amor? Como será que viveram ou morreram, dentro de suas casas e nas suas
expedições pelo mundo? Se são meus ascendentes, porque estão distantes de tudo
que sou? Onde estão em mim? Porque não foram extraviados? Isso significa um
tipo de cuidado com eles ou uma reverência distraída? Naqueles dias do passado,
eu havia me afastado dos livros, acorrido ao chamado da imagem em movimento, tido
a coragem de ser afetada platonicamente por alguém que me trouxe o olfato da
minha cidade natal e, mormente, aberto uma porta à interlocução - que culminou
com à ideal referida anteriormente e, consequentemente a um platô distinto da
palavra. Nesse momento, os álbuns foram revisitados, novas descobertas se
completaram e agarram-se às antigas questões, aquelas imagens me fizeram um
convite silencioso: o que poderia, enfim, tornar-se um argumento para um novo
olhar sobre a criação e seu feitio? Senti que algo luminoso partira dos dois em
minha direção: dos álbuns e dele, que estava ali, disposto à troca acesa das
palavras. Refleti sobre o que parecia transformar-se em um palimpsesto do
pensamento e da memória, no intercâmbio aberto por essa relação, onde cada
imagem daquela foi redita e recontada através do olhar alheio. Outra pergunta
apresentou-se diante disso: Como franquear às pessoas de um determinado lugar,
o tempo pretérito, guardado nos móveis silenciosos, no interior das casas em
extinção. Retomei as antigas reflexões sobre o público e o privado,
relacionando suas bordas, suas interseções, suas fronteiras invisíveis, a
curiosidade que as perpassa, a rigidez dos portões e das intimidades. Então me
veio outro enigma: Como obsequiar à geografia humana das cidades, aqueles
álbuns guardados a sete chaves, pelas famílias tradicionais? Comecei com os
meus, álbuns paternos e maternos, adormecidos nas caixas e gavetas, há quase um
século e meio. quis bordar em suas reproduções, as histórias que atravessaram as
gerações, os méritos e deméritos, igualmente formadores da anamnese desse
labirinto. As obras intermediárias, gravuras em tecido, devem ficar expostas no
interior de um espaço equivalente a uma sala de estar, portanto, com
referências do lugar remanescente, privado, fechado, protegido e, as
reproduções em papel de seda, das fotografias anteriores ao bordado, nesse
caso, retiradas e ampliadas dos álbuns, serão coladas nas paredes dos muros,
alcançando assim, a arte urbana, o lambe-lambe, o grafite, a impermanência
porque sob sol e chuva, numa circularidade que faz a serpente engolir o próprio
rabo, vida e morte fundarem um encontro no presente, os mortos sairem para seus
últimos passeios públicos, o interior das salas e alcovas, desdobrarem-se ao
avesso, à exposição pública de suas expressões regeladas. Há tantos mortos nos
esperando, ansiando um longo passeio ao nosso lado. Que os álbuns soltem-nos
suas imagens, cantoneiras, folhas de seda, torsais, histórias, surpresas. Essa
exposição é dedicada a Luiz Alberto Machado, meu melhor interlocutor, em tudo
no mundo, único e grandioso amor, como a invenção do tempo em nós dois.
IV
Não esperam abrir as malas da viagem,
despedem-se dos caseiros, afugentam os cães e, irrigados de desejo, agarram-se
um ao outro, como se fossem morrer, como se o mundo fosse sumir - aliás, tudo
some às suas voltas, nenhum livro, taça, bota, lápis, tangerina, vinho ou
telefone ou nada sobre aquela vasta mesa, permanece ali, tudo some, é
empurrado, derrubado, jogado para longe. Tudo resume-se às mãos, loucas pela
pele, pela boca, adentrando os cabelos, as pernas, alisando o pescoço,
agarradas às costas e segurando o rosto repetindo palavras vindas do amor. ela
aperta as coxas, escorre, geme, respira, ronca de tanto prazer, emite gritinhos
que vêm junto com a voz rouca dele, nos seus ouvidos, dizendo que ela é tudo,
gostosa, é dele, macia, perguntando como pode ser tão deliciosa, deixá-lo
enlouquecido, de pau duríssimo, doido para entrar nela e nunca mais sair.
Seguem até o limite, quando gemem, ambos, baixinho, um gemido ritmado, quando
encontram-se flutuando, com força, loucos para gozar um no outro, o pau
entrando e saindo dela, lugar macio e apertado, como se fosse sua boca
chupando, lambendo, mordendo aquele pau delicioso, mordendo devagar os
testículos, a língua escorregando, sentindo o gostinho de sal, lambendo
novamente, perna, barriga, voltando com a ponta da língua para a cabecinha do
pau, que ela chama foguetinho, porque a leva às alturas de todos os édens, que
a faz desmaiar de gozo, que a faz tremer minutos depois de caírem sem forças,
suados, mortos de tanto desejo e amor. até recomeçarem, numa mandala que gira e
os faz saber que nada mais gostoso e obsceno do que o encontro dos seus corpos.
Eles se beijam e tornam a se beijar, lascivos e demoradamente coadunados,
língua e confidências que só os dois conhecem. Namoram, descuidadamente, na
passagem do corredor, sobre a mesa, na adega, em qualquer lugar onde a respiração
fica ofegante e sentem-se molhados, vindo de dentro para fora, dessa vontade de
fusão dos corpos. Há dias em que ela o cavalga, retarda o entra e sai de se pau
em suas entranhas, deixa-o louco de tesão, muda de posição, deita-se de lado,
ele a agarra, enfia com toda força o pau dentro dela, grita, recomeçam, ficam
horas nessa dança sagrada. O ar vai embora de suas pulões, desfalecem para
alguns minutos de descanso. é certo que nunca houve um desejo desbordante e
belo, como aquele dos dois amores.
CONFESSO
- para LA: Confesso: Achei estranho inaugurar o alvoroço desse amor.
Foram meses de água e sal. Precisei de um caderno de caligrafia. Quero a mão
dele, segurando a minha. Passar o resto dos dias, olhando os seus olhos,
soprando-os se cair um cisco. Descascando suas roupas e deitando próxima das
suas pernas, ele sabe o que quero dizer. Quando ele me beija, torno-me um bicho
incomum, toco o animal que há na memória mais distante. Todas às vezes que ele
faz isso, se eu estiver perto ou distante, sempre seremos livres e juntos. E
viajamos de foguete.
Pensando bem, ele teve uma excelente ideia. Há
muitos meses, falávamos dos casais de artistas, das suas epistolares relações,
desse modo de olhar o outro sem as dobras, o plissado que surge, inevitável,
entre o público e o privado. Há quase cinco meses, escrevi três cartas pra ele,
entregues em mãos, com uma caneta de nanquim, em um papel canson creme. Falo da
riqueza de detalhes, da técnica, do imenso carinho com que foram manuscritas,
porque daí, surgiu essa vontade de prosseguirmos, trazendo à luz da
contemporaneidade, um método antigo. Relemos uma bibliografia sobre o assunto
(ele, mais do que eu, porque tem mais tempo e método). Gestamos esse assunto
com o cuidado necessário, precisamos cuidar de outras demandas e hoje, enfim,
ele voltou a tocar no assunto. Resolvemos trocar cartas, enviando-as pelos
correios. Eu sou irrequieta e, aproveitando uma conversa, quando estávamos a
caminho de João Pessoa, sobre os poemas eróticos de Adélia Prado, quando ele me
acrescentou uma série de informações deliciosas, como convém aos poemas eróticos,
iniciei essa série "Epístolas Obscenas", exatamente porque não vejo
outra maneira de prestar uma pequena homenagem, à poeta que tanto gosto, Hilda
Hilst. Como falar sobre a poesia erótica sem ela? Deveu-se a isso, o título
escolhido. Esperei ele acordar para fazer-lhe essa surpresa e, ao contrário das
pessoas acometidas da normose paranóica desses tempos, prefiro dividir a
alegria dos bons encontros, como esse, meu e dele. Sendo alguém criada com
reverberações do século dezenove, confesso que relutei em expor de forma mais
desvelada, nossa relação. É que precisei engendrar um enigma para criar coragem
de escrever e publicar. O alvoroço foi tanto (e, tudo de memória, pois não
pudemos nos ver nesses dias, eu estava ocupada), que escrevi sete poemas de uma
só vez. Daqui para a frente, desarnada, espero estender essa correspondência
até o meu último fôlego, dedicada a ele e para quem quiser ler. É mais uma
tentativa de criar intimidade com a palavra, brincar com ela na praça,
impregnar de leveza os nossos sentidos.
DRME: Às vezes eu acho, mas não sei, foi o que
pensou ao falar pela primeira vez em algo que os homens chamam de sonho,
riscando um limite de auroras e arrebóis, engolindo manhãs inteiras, nas
divisas de mundos pautadas nos solos ilusórios, nas proximidades das janelas
delirantes, nos objetos maravilhosos e nas perguntas que não cessarão nunca de
se multiplicar e enredar os seus risos. A ausência da vigília que funda os
silêncios insones e as luzes acesas dos corpos e as dores dos seus escuros.
Aquilo que chamam de sonho e são olhos despertando em direção à complexidade
dos sentidos, aquilo aguarda e vive e morre por derradeiro. As primeiras
cidades foram constituídas a partir de uma esfera coralina, em cujo interior,
no centro dessa desproporção, pendia um balanço e, sobre ele, a criança
brincava de pêndulo, nada à sua volta, era a cidade o resumo do vento e da
delimitação transparente de sua busca. Imenso útero lúdico, de onde parecia
partir a célula embrionária dos sumos pensamentos. Desde lá, até ganhar um
objeto com lentes para mirar o céu, acreditou que as estrelas se localizavam do
lado de fora dessa orbe, desse rudimento de sonho. Ali, fundou as primeiras
impressões de si e do espaço, também instaurou os territórios da brincadeira.
das descobertas de si. Por isso, até hoje, acha estranho chorar de dor, olhar o
outro envolto nas palavras que insistem em fugir dos afetos de vera, que a
confunde mais do que à compreensão daquela esfera, quando se recusa às
brincadeiras, na gravidade e da leveza dos gestos. Descobriu no princípio do
silêncio, onde não havia sequer a palavra, que a utopia não tem quina, nem
bordas.
A próxima invenção subverterá o olhar conhecido
lucidando o tempo de significados. Ou nada dirá. Suas jóias constroem lâminas
que convidam à auto-contemplação ao reencontrar os arquétipos sem alardear o
novo. Não parece postular para si a vigilante espreita dos dragões. Descobrimos
em suas jóias uma imagem além do objeto-borracha, dos edifícios vertiginosos ou
da prata que inibe o ato de reluzir. Um vaso de murano, a gravidade, um anel. A
ideia aparece única e solitária de estilos, porque em suas criações prevalece
não apenas o corpo, mas suas extensões e pedras angulares. A atitude do olhar,
ainda mais ousada, o lúdico diante de livros iridescentes, as cores tais quais
um verso, uma imagem, uma cadeira no alto da parede, o que Duchamp enxergava e
desaparecia diante dos cegos à sua volta: isso atinge as jóias de André Lasmar,
como nos toca suas idéias de metal, de madeira, de aço. Estão relacionadas às
múltiplas formas: às telas, aos recortes de cânones guardados atentamente, à
acuidade de ir além do olho e do cérebro. Observamos que suas formas se
distanciam das prisões geométricas, seus elementos criam raízes aéreas:
artefato e cadência estelar, angústia criadora. Ele nos surpreende com as três
chaves que descobriu ao inventar um caminho estrangeiro de si mesmo.
CYANE PACHECO
- Reunião de textos, fotos & expressões da artista plástica &
visual Cyane Pacheco.
35 ANOS ARTE
CIDADÃ