Ao som dos álbuns Maestro Duda & Orquestra de Frevo (Vols, 1, 2,3 e 4, 1999), e o concerto Suíte Nordestina (Arranjadores – Orquestra Experimental de Repertório, São Paulo, 2012) do maestro, arranjador, compositor e instrumentista Duda do Recife (José Ursicino da Silva), Patrimônio Vivo de Pernambuco. Veja mais aqui.
TRÍPTICO DQP: - Nunca
pense antes de começar, faça... - Chegou a horagá,
havia de mudar: inadiável. Logo me vi na mesma situação elegíaca de Manguel
e comecei pela parte mais difícil: encaixotar os livros. Era uma tarefa das
mais dolorosas, apertava o peito. Os invisíveis guardiões cabisbaixos me davam a
sensação dos que pereceram nos repositórios do saber e remédios da alma – como se
chegasse ao ponto da biblioteca de Alexandria com Hypatia soterrada, ou
das desaparecidas de Nínive, Bergamo ou Menin e todo aprendizado milenar às
cinzas. Era triste. Quantas vezes, confesso, não vivi na pele de Stephan Dédalos ou do Copperfield de Dickens, personagens outros quase
íntimos saltavam dos volumes e invadiam os espaços da casa perpetuando fatos e
memórias para meu regalo. Os meus rascunhos, palimpsestos muitos juntos às garrancheiras
e aos da cabeceira como se fossem da Babel de Borges, os das páginas que
mais risquei, grifando frases e rabiscos pelas margens com as hestórias flagradas
por trás das palavras escritas, os que foram emprestados e jamais devolvidos,
os que me esperavam pela leitura e os que sepultei sabendo que me matava junto
cada vez mais. Nesta hora Gayatri Spivak: A autobiografia é uma ferida onde o sangue da história não seca...
Agora me sentindo mais solitário que nunca, tombei alguns pra doação à
biblioteca municipal, mais da metade de todo acervo. Tanto doía a ponto de
ouvir alguém dizer sem saber quem: Na escuridão eles vão, os sábios e os amáveis... Sabia dos que jamais os leram e preferiam queimá-los todos, dos muitos
que quando não detestavam mais zombavam daqueles que liam e que era coisa de
doido essa coisa de queimar pestana sem pregar o olho sobre brochuras, capas
duras e publicações grossas, gente que tinha horror às impressões, quando não
abominavam quem inventou estudo. O que me consolava era a oportunidade de muitos
outros o acesso aos que li. Era o que dava alguma satisfação, pelo menos isso. Os
demais que ficaram comigo, amontoados agora nalgum canto esquecido e
inacessível.
Diário
das facécias... – Imagem da artista plástica Márcia Gebara, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. - Com o ocorrido fiquei tão deslocado: os ideais
me levaram ao desespero, a vida afundou no lamaçal, inconsolável, deprimente. Havia
de superar e eu menino outra vez, uma mão na frente, outra atrás. Em meu
consolo Edna Millay: A
infância não vai do nascimento até certa idade, e a certa altura a criança está
crescida, deixando de lado as coisas de criança. A infância é o reino onde
ninguém morre... Tentei desfazer o nó na garganta e, quase refeito, segui adiante sobrecarregado de
novas esperanças. Não fosse Elizabeth George estaria numa encruzilhada: As expectativas
destroem nossa paz de espírito. São decepções futuras, planejadas com antecedência. O
passado não pode ser mudado, pode? Isso só pode ser perdoado... E lá ia eu Senécio de Klee, pseudo Arlequim de Goldoni
– nem para isso eu servia, levando tudo nos peitos como desse, no meu soturno ensimesmamento...
Só
diga até amanhã, nada mais... – Imagem do
artista visual Ricardo Aydar, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. – Entre as mãos, a surpresa do momento: o livro
que ela me dera. Sim, foi numa tarde de décadas atrás, ela se parecia com A moça do brinco de pérola de Vermeer,
sobressaindo-se a lágrima dos deuses iluminando seus olhos e lábios na face
quase oriental. Pediu-me um favor e gratificou minha gentileza com Marlowe:
Quem pode dizer que amou sem ter amado à primeira vista? Todos vivem para
morrer e sobem para cair... Despediu-se graciosamente e, no dia seguinte, quase Hannah do Der Varleser de Schlink, quase a personagem de Kate Winslet das cenas do The
Reader de Stephen Daldry, assim, ambivalente, na
verdade, eloquentemente
bela e muito mais que antes a me presentear um livro. Mais que grato,
agora em dívida, ouvi-lhe Rosalía de Castro: Eu vejo meu caminho, mas não sei onde ele leva. Não saber para onde
vou é o que me inspira a percorrê-lo... Para mim
era o hálito da deusa Hator que debruava sobre
mim, tratado agora como se fosse
xilógrafo ou toreumatólogo pelo terraço perfumado pela presença daquela estranha simpática
e a me mostrar o busto
de quartzita rosada da Nefertiti, enquanto
apontava para os desenhos das figuras nas paredes das grutas de Altamira e
Lascaux. Estava, confesso, perdido e ela aproximando-se mais da parede,
deslizou o dedo indicador acrescentando sorridente outros desenhos aos dali
expostos. Sorriu com tanta graça que me flagrou olhos nela completamente
aturdido. Não levou em conta a minha desorientação, começou a gesticular no ar
e a paisagem ia mudando e já era outra localidade aos meus olhos ali na hora. Viu-me
espantado, tomou minhas mãos às suas e levou-me a dançar uma ciranda envolvente
corredor adentro, as vestes se soltando ao vento, deitando-se desnuda a um
canto como se fosse a
Vênus de Agatarco para me premiar muito mais por dias e noites. Quase um sonho,
a névoa onírica se dissipava e previ ao longo do tempo a despedida. Pedi-lhe
apenas um até amanhã, nem me disse adeus e nunca mais. Até mais ver.
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