domingo, julho 22, 2012

RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM DE JAMES JOYCE



FRAGMENTOS DE RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM DE JAMES JOYCE

“[...] Pensou que estava doente mas era do coração, se é que se pode ter doença nesse lugar.

“[...] Voltou a querer aplicar o ativo tédio do seu coração, diante do qual todas as coisas eram vãs e alheias. Pouco se lhe dava estar em pecado mortal e que a sua vida crescesse como um tecido de subterfúgio e falsidade. Alem do indômito desejo dentro dele de realizar as enormidades que o tentavam, nada mais era sagrado. Continuou, cinicamente, cada vez mais enleado em vergonhosa exaltação, a profanar metodicamente qualquer imagem que tivesse atraído os seus olhos. Dia e noite se movia por entre imagens deformadas do mundo exterior. Uma figura que lhe houvesse parecido de dia modesta e inocente vinha-lhe, de noite, através da treva sinuosa do sono, com a face transfigurada por astucia impudica, os olhos brilhantes de brutal prazer. Só a manhã o atormentava com a sua sombria lembrança de tumulto orgíaco, notificando-lhe a aguda e humilhante sensação de transgressão.

[...]

Ao atravessarem a portaria, um homem de estatura de anão veio ao encontro deles; sob a copa do seu chapéu mole a cara de barba por fazer se pôs sorrir com prazer, e se percebia que vinha já falando. Os olhos eram melancólicos como os dum macaco.

[...]

Era estranho, outrossim, que ele sentisse um árido prazer em seguir até o fim as rígidas linhas da doutrina da Igreja, e penetrasse em tétricos silêncios apenas para ouvir e sentir mais profundamente a sua própria condenação. A sentença de São Tiago que di que aquele que peca contra um mandamento se torna culpado de todos pareceu-lhe no começo uma frase oca, até que começou a sondar a treva do seu próprio estado. Da má semente da ambição todos os outros pecados mortais tinham saltado: orgulho de si próprio e desprezo pelos outros; avareza em guardar dinheiro para a compra de prazeres ilícitos; inveja daqueles cujos vícios não podia atingir, caluniosas murmurações contra os piedosos. Voracidade em sentir os alimentos, a estúpida raiva em que ardia e no meio da qual examinava o seu tédio; o pântano de espiritual e corporal indolência dentro do qual todo o seu ser estava atolado.

[...] Tempo houve para pecar e gozar; tempo para zombar de Deus e dos preceitos da sua Santa Igreja; tempo houve para desafiar a sua majestade, para desobedecer aos seus mandamentos, para tapar os olhos dos homens seus companheiros, para cometer pecado após pecado, e para esconder a sua corrupção da vista dos homens. Mas esse tempo tinha acabado. Agora era a vez de Deus [...].

[...] Primeiro que tudo deve uma pessoa tomar a sua posição. Estabelecer isso diante de si como primeiro alvo. Depois, então, pouco a pouco, acabará vendo o seu caminho. Refiro-me em todos os sentidos, no modo de vida e no modo de pensar. Poderá ser difícil pedalar no começo. [...] Eu acredito no homem. É claro que não sei se você crê no homem. Eu o admiro, meu caro. Eu admiro o espírito do homem independentemente de todas as religiões.

[...]

A piedade é o sentimento que faz parar o espírito na presença de algo que seja grave e constante no sofrimento humano e o une com o sofredor humano. O terror é o sentimento que detem o espírito na presença de seja lá o que for que seja grave e constante no sofrimento humano e o liga à sua causa secreta [...] De fato, a emoção trágica é uma face olhando para dois lados, para o terror e para a piedade, pois que ambos são faces dela [...] a emoção trágica é estática. Ou, antes, a emoção dramática é que o é. [...] O desejo e a repulsa excitados por meios estéticos impudicos não sãop realmente emoções estéticas, não só porque são cinéticas em caráter como também por não são senão físicas. A nossa alma contrai-se ante aquilo que teme e responde ao estímulo daquilo que deseja por uma ação puramente reflexa do sistema nervoso. Nossas pálpebras fecham-se antes que estejamos cônscios de que a mosca está a ponto de entrar no nosso olho. [...] Da mesma maneira a tua carne respondeu ao estimulo duma estatua nua; mas isso foi, escuta, simplesmente uma ação reflexa dos negros. A beleza expressa pelo artista não pode despertar em nós uma emoção que é cinética, ou uma sensação puramente física. Ela desperta ou deve despertar, ou induz, ou deve induzir, um êxtase que perdura, que se prolonga e que acaba, por fim, dissolvido pelo que eu chamo o ritmo da beleza. [...] O ritmo - disse Stephen – é a primeira relação formal estética duma parte com outra parte, em qualquer conjunto ou todo estético para a sua parte ou para as suas partes, ou duma parte para o todo estético do qual é parte [...] tornar a extrair da terra bruta ou do que dela procede, do som, da forma e da cor, que são as portas da prisão de nossa alma. [...] A arte – disse Stephen – é a disposição humana de matéria sensível ou inteligível para um fim estético. [...] significa certamente uma estase e não uma cinese [...] a beleza é o esplendor da verdade [...] principio de que o mesmo atributo não pode ao mesmo tempo e com a mesma conexão pertencer e não pertencer ao mesmo objeto.


RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM DE JAMES JOYCE 


Estava eu aboletado numa cadeira no alpendre da casa do meu amigo Luiz Gulu de França Santos Braga, na rua da Palma, em Palmares, apreciando o seu dedilhado ao violão, quando pintou o papo do “Retrato do artista quando jovem”, de James Joyce.

Na minha adolescência constantemente a gente se encontrava nesse recinto: eu, ele, Mauricinho Melo Junior, Ozi dos Palmares, Zé Ripe e Célio Carneirinho de Siqueira. Todavia, nessa tarde estávamos sós e embalados em conversas sobre Dostoievsky, Sartre, Camus, Tolstoi e outros clássicos, quando apareceu a dita conversa sobre o livro de James Joyce. É que eu já tinha lido o Dublinenses, apreciado artigos a respeito do autor em resenhas literárias de meio mundo de gente e nos estudos do Otto Maria Carpeaux que foram descobertos por minha teimosa mania de pesquisador desde o período do ginasial e que, posteriormente, me levaram para as aulas no curso de Letras em duas faculdades de Pernambuco.

Mesmo sendo um leitor do tipo voraz devorador, Gulu desconversou no papo e saiu pela tangente delineando umas canções inesquecíveis da bossa-nova. Ele jamais havia corrido de papo sobre qualquer clássico da literatura universal. Ficou no seu mutismo, dedilhando seu violão, o que só aumentou minha curiosidade.

Fui ter com a professora e bibliotecária Jessiva Sabino que me passou às mãos outro volume do Dublinenses que eu já havia lido e conversamos a respeito. Contou-me coisas e coisas a respeito do autor, deixando à minha disposição toda biblioteca pública, fato que aguçou ainda mais minha mania de pesquisa e descobrir novidades.

Dias depois ainda enlevado pela obra, encontrei o poeta e guru Afonso Paulo Lins que abriu uma conversada abundante e pormenorizada a respeito de autor/obra, iniciando-me na senda joyceana e culminando por me presentear a tradução do Antonio Hoauiss no volumaço do Ulisses, adiantando que eu me preparasse para ler o Finnegans Wakes.

Beleza.

O fato era que o livro Retrato do Artista Quando Jovem há anos havia me tocado profundamente da mesma forma que o David Copperfield de Charles Dickens. Havia, da minha parte nessa época, uma confessada simpatia por gêneros autobiográficos.

Publicada em 1916 e criada a partir de um ensaio rejeitado pelo editor em 1904, denominada inicialmente Stephen Hero e escrita num estilo maupassantiano, o Retrato do Artista Quando Jovem tem por centro a realidade do herói individualista Stephen Dédalus com reminiscências infantis, adolescentes e adultas. Tem por pano de fundo a agitação nacionalista da Irlanda, a educação jesuítica, a família, os tipos dublinenses e os companheiros do personagem, traduzindo o labirinto do indivíduo, centro de uma realidade que se expande a partir de si mesmo até o universo infinito. Essa obra é o primeiro esboço da visão cósmica e simbólico-naturalista do seu posterior opus magnun Ulisses que tem como ponto de ligação o herói Dédalus, ponte entre o labirinto da individualidade e o labirinto da realidade exterior.

O Retrato do Artista Quando Jovem descreve fases: a infância de menino frágil; a adolescência descobrindo o amor e, posteriormente, quando esse amor transforma-se em luxúria e o adolescente entrega-se às prostitutas. Em seguida, arrependido, o jovem debate-se entre uma suposta vocação sacerdotal e o chamado artístico, quando todos os conflitos culminam em sua opção pelo exílio, afastando-se da família, da pátria e da religião, para entregar-se conscientemente aos apelos da sensualidade e da criação artística.

Trata-se de um romance autobiográfico na forma de romance de formação (Bildunsgsroman) que se concentra no espaço de Dublin e no tempo interno das reações, reflexões e divagações do protagonista Stephen Dedalus, personagem concebido dentro de uma dualidade: Stephen que é oriundo de Estêvão - o primeiro mártir da igreja -, e Dedalus - referencia ao mito grego de Dédalo, revelando o conflito entre a religião e a arte.

O foco narrativo da obra está na apresentação subjetiva do ponto de vista interno de Stephen Dédalus, narrado em terceira pessoa por meio da técnica do fluxo de consciência e que leva o leitor para o universo concentrado nas características emocionais e psicológicas dos mais íntimos pensamentos dos personagens desde a infância até a fase adulta na busca pela liberdade.

Há que se observar que,  segundo Moisés (2004), o fluxo de consciência é o monólogo interior (stream of consciousness), um conceito psicológico proposto por William James que nomeia os múltiplos aspectos da atividade mental. O monólogo interior caracteriza-se por transcorrer na mente da personagem como se o eu se dirigisse a si próprio, distinguindo o Monólogo que é a voz do autor, do solilóquio que é a expressão do personagem. Diz Sábato (2003) que o psicológico é aquilo que, por excelência, pertencia ao individuo solitário que é um egoísta que não se importa com o mundo que o rodeia e sofre, afinal o gênio criador de um romancista pode mais do que as ideias que conscientemente professa. Vê-se, portanto,que na obra o autor faz uso de um método complexo manifestando um novo estilo na literatura universal e sua própria genialidade.

Já a respeito do autor, trata-se do escritor irlandês expatriado James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941), que é considerado um dos mais importantes autores do século XX. Ele é autor de obras, tais como Dublinenses (1914), Retrato do artista quando jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939). Ele participou do Modernismo e do Imagismo.

Segundo Carpeaux (1958), as obras de Joyce foram proibidas na Irlanda: “Uma censura farisaica protege os cidadãos da ilha verde contra os perigos daquela leitura diabólica. [...] Joyce é o poeta da sua cidade”. Dele também observa Castagnino (1970): um autor muito combatido e não menos elogiado, famoso por inusitada repercussão na novelística contemporânea, pródigo em musicalidade, muitas vezes mergulhado na pornografia, mas sempre regido e amparado por uma mente lúcida. Assim, sua obra é fruto de um espírito de extremo egotismo e de conseguir uma audiência relativa em face da sua complexidade, desenvolvendo na sua obra uma linha de aprofundamento de concepção e linguagem, representando uma linha de radicalização da linguagem narrativa até o ponto do silêncio no final.


FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
BURKE, Keneth. Teoria da forma literária. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1969.
CARPEAU, Otto Maria. Presenças. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1958.
CASTAGNINO, Raul. Tempo e expressão literária. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
GARCIA, Othon. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
SÁBATO, Ernesto. O escritor e os seus fantasmas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


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