FRAGMENTOS
DE RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM DE JAMES JOYCE
“[...]
Pensou que estava doente mas era do coração, se é que se pode ter doença nesse
lugar.
“[...]
Voltou a querer aplicar o ativo tédio do seu coração, diante do qual todas as
coisas eram vãs e alheias. Pouco se lhe dava estar em pecado mortal e que a sua
vida crescesse como um tecido de subterfúgio e falsidade. Alem do indômito
desejo dentro dele de realizar as enormidades que o tentavam, nada mais era
sagrado. Continuou, cinicamente, cada vez mais enleado em vergonhosa exaltação,
a profanar metodicamente qualquer imagem que tivesse atraído os seus olhos. Dia
e noite se movia por entre imagens deformadas do mundo exterior. Uma figura que
lhe houvesse parecido de dia modesta e inocente vinha-lhe, de noite, através da
treva sinuosa do sono, com a face transfigurada por astucia impudica, os olhos
brilhantes de brutal prazer. Só a manhã o atormentava com a sua sombria
lembrança de tumulto orgíaco, notificando-lhe a aguda e humilhante sensação de
transgressão.
[...]
Ao atravessarem
a portaria, um homem de estatura de anão veio ao encontro deles; sob a copa do
seu chapéu mole a cara de barba por fazer se pôs sorrir com prazer, e se
percebia que vinha já falando. Os olhos eram melancólicos como os dum macaco.
[...]
Era
estranho, outrossim, que ele sentisse um árido prazer em seguir até o fim as
rígidas linhas da doutrina da Igreja, e penetrasse em tétricos silêncios apenas
para ouvir e sentir mais profundamente a sua própria condenação. A sentença de
São Tiago que di que aquele que peca contra um mandamento se torna culpado de
todos pareceu-lhe no começo uma frase oca, até que começou a sondar a treva do
seu próprio estado. Da má semente da ambição todos os outros pecados mortais
tinham saltado: orgulho de si próprio e desprezo pelos outros; avareza em
guardar dinheiro para a compra de prazeres ilícitos; inveja daqueles cujos
vícios não podia atingir, caluniosas murmurações contra os piedosos. Voracidade
em sentir os alimentos, a estúpida raiva em que ardia e no meio da qual
examinava o seu tédio; o pântano de espiritual e corporal indolência dentro do
qual todo o seu ser estava atolado.
[...]
Tempo houve para pecar e gozar; tempo para zombar de Deus e dos preceitos da
sua Santa Igreja; tempo houve para desafiar a sua majestade, para desobedecer
aos seus mandamentos, para tapar os olhos dos homens seus companheiros, para
cometer pecado após pecado, e para esconder a sua corrupção da vista dos
homens. Mas esse tempo tinha acabado. Agora era a vez de Deus [...].
[...]
Primeiro que tudo deve uma pessoa tomar a sua posição. Estabelecer isso diante
de si como primeiro alvo. Depois, então, pouco a pouco, acabará vendo o seu
caminho. Refiro-me em todos os sentidos, no modo de vida e no modo de pensar.
Poderá ser difícil pedalar no começo. [...] Eu acredito no homem. É claro que
não sei se você crê no homem. Eu o admiro, meu caro. Eu admiro o espírito do
homem independentemente de todas as religiões.
[...]
A
piedade é o sentimento que faz parar o espírito na presença de algo que seja
grave e constante no sofrimento humano e o une com o sofredor humano. O terror
é o sentimento que detem o espírito na presença de seja lá o que for que seja
grave e constante no sofrimento humano e o liga à sua causa secreta [...] De fato,
a emoção trágica é uma face olhando para dois lados, para o terror e para a
piedade, pois que ambos são faces dela [...] a emoção trágica é estática. Ou,
antes, a emoção dramática é que o é. [...] O desejo e a repulsa excitados por
meios estéticos impudicos não sãop realmente emoções estéticas, não só porque
são cinéticas em caráter como também por não são senão físicas. A nossa alma
contrai-se ante aquilo que teme e responde ao estímulo daquilo que deseja por
uma ação puramente reflexa do sistema nervoso. Nossas pálpebras fecham-se antes
que estejamos cônscios de que a mosca está a ponto de entrar no nosso olho.
[...] Da mesma maneira a tua carne respondeu ao estimulo duma estatua nua; mas
isso foi, escuta, simplesmente uma ação reflexa dos negros. A beleza expressa
pelo artista não pode despertar em nós uma emoção que é cinética, ou uma
sensação puramente física. Ela desperta ou deve despertar, ou induz, ou deve
induzir, um êxtase que perdura, que se prolonga e que acaba, por fim,
dissolvido pelo que eu chamo o ritmo da beleza. [...] O ritmo - disse Stephen –
é a primeira relação formal estética duma parte com outra parte, em qualquer
conjunto ou todo estético para a sua parte ou para as suas partes, ou duma
parte para o todo estético do qual é parte [...] tornar a extrair da terra
bruta ou do que dela procede, do som, da forma e da cor, que são as portas da
prisão de nossa alma. [...] A arte – disse Stephen – é a disposição humana de
matéria sensível ou inteligível para um fim estético. [...] significa certamente
uma estase e não uma cinese [...] a beleza é o esplendor da verdade [...]
principio de que o mesmo atributo não pode ao mesmo tempo e com a mesma conexão
pertencer e não pertencer ao mesmo objeto.
RETRATO
DO ARTISTA QUANDO JOVEM DE JAMES JOYCE
Estava eu aboletado numa cadeira no
alpendre da casa do meu amigo Luiz Gulu de França Santos Braga, na rua da
Palma, em Palmares, apreciando o seu dedilhado ao violão, quando pintou o papo
do “Retrato do artista quando jovem”, de James Joyce.
Na minha
adolescência constantemente a gente se encontrava nesse recinto: eu, ele,
Mauricinho Melo Junior, Ozi dos Palmares, Zé Ripe e Célio Carneirinho de
Siqueira. Todavia, nessa tarde estávamos sós e embalados em conversas sobre
Dostoievsky, Sartre, Camus, Tolstoi e outros clássicos, quando apareceu a dita
conversa sobre o livro de James Joyce. É que eu já tinha lido o Dublinenses, apreciado
artigos a respeito do autor em resenhas literárias de meio mundo de gente e nos
estudos do Otto Maria Carpeaux que foram descobertos por minha teimosa mania de
pesquisador desde o período do ginasial e que, posteriormente, me levaram para
as aulas no curso de Letras em duas faculdades de Pernambuco.
Mesmo
sendo um leitor do tipo voraz devorador, Gulu desconversou no papo e saiu pela
tangente delineando umas canções inesquecíveis da bossa-nova. Ele jamais havia
corrido de papo sobre qualquer clássico da literatura universal. Ficou no seu
mutismo, dedilhando seu violão, o que só aumentou minha curiosidade.
Fui ter
com a professora e bibliotecária Jessiva Sabino que me passou às mãos outro
volume do Dublinenses que eu já havia lido e conversamos a respeito. Contou-me
coisas e coisas a respeito do autor, deixando à minha disposição toda
biblioteca pública, fato que aguçou ainda mais minha mania de pesquisa e
descobrir novidades.
Dias depois
ainda enlevado pela obra, encontrei o poeta e guru Afonso Paulo Lins que abriu
uma conversada abundante e pormenorizada a respeito de autor/obra, iniciando-me
na senda joyceana e culminando por me presentear a tradução do Antonio Hoauiss
no volumaço do Ulisses, adiantando que eu me preparasse para ler o Finnegans
Wakes.
Beleza.
O fato
era que o livro Retrato do Artista Quando Jovem há anos havia me tocado profundamente
da mesma forma que o David Copperfield de Charles Dickens. Havia, da minha
parte nessa época, uma confessada simpatia por gêneros autobiográficos.
Publicada
em 1916 e criada a partir de um ensaio rejeitado pelo editor em 1904, denominada
inicialmente Stephen Hero e escrita num estilo maupassantiano, o Retrato do
Artista Quando Jovem tem por centro a realidade do herói individualista Stephen
Dédalus com reminiscências
infantis, adolescentes e adultas. Tem por pano de fundo a agitação nacionalista
da Irlanda, a educação jesuítica, a família, os tipos dublinenses e os
companheiros do personagem, traduzindo o labirinto do indivíduo, centro de uma
realidade que se expande a partir de si mesmo até o universo infinito. Essa
obra é o primeiro esboço da visão cósmica e simbólico-naturalista do seu
posterior opus magnun Ulisses que tem como ponto de ligação o herói Dédalus, ponte
entre o labirinto da individualidade e o labirinto da realidade exterior.
O
Retrato do Artista Quando Jovem descreve fases: a infância de menino
frágil; a adolescência descobrindo o amor e, posteriormente, quando esse amor
transforma-se em luxúria e o adolescente entrega-se às prostitutas. Em seguida,
arrependido, o jovem debate-se entre uma suposta vocação sacerdotal e o chamado
artístico, quando todos os conflitos culminam em sua opção pelo exílio,
afastando-se da família, da pátria e da religião, para entregar-se
conscientemente aos apelos da sensualidade e da criação artística.
Trata-se de um romance autobiográfico na
forma de romance de formação (Bildunsgsroman) que se concentra no espaço de Dublin e no
tempo interno das reações, reflexões e divagações do protagonista Stephen
Dedalus, personagem concebido dentro de uma dualidade: Stephen que é oriundo de
Estêvão - o primeiro mártir da igreja -, e Dedalus - referencia ao mito grego
de Dédalo, revelando o conflito entre a religião e a arte.
O foco narrativo da obra está na
apresentação subjetiva do ponto de vista interno de Stephen Dédalus, narrado em
terceira pessoa por meio da técnica do fluxo de consciência e que leva o leitor
para o universo concentrado nas características emocionais e psicológicas dos mais
íntimos pensamentos dos personagens desde a infância até a fase adulta na busca
pela liberdade.
Há que se observar que, segundo Moisés (2004), o fluxo de consciência
é o monólogo interior (stream of
consciousness), um conceito psicológico proposto por William James que
nomeia os múltiplos aspectos da atividade mental. O monólogo interior
caracteriza-se por transcorrer na mente da personagem como se o eu se dirigisse
a si próprio, distinguindo o Monólogo que é a voz do autor, do solilóquio que é
a expressão do personagem. Diz Sábato (2003) que o psicológico é aquilo que,
por excelência, pertencia ao individuo solitário que é um egoísta que não se
importa com o mundo que o rodeia e sofre, afinal o gênio criador de um romancista
pode mais do que as ideias que conscientemente professa. Vê-se, portanto,que na
obra o autor faz uso de um método complexo manifestando um novo estilo na
literatura universal e sua própria genialidade.
Já a respeito do autor, trata-se do escritor irlandês expatriado James
Augustine Aloysius Joyce (1882-1941), que é considerado um dos mais importantes
autores do século XX. Ele é autor de obras, tais como Dublinenses (1914),
Retrato do artista quando jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939).
Ele participou do Modernismo e do Imagismo.
Segundo Carpeaux (1958), as obras de Joyce foram proibidas na
Irlanda: “Uma censura farisaica protege os cidadãos da ilha verde contra os
perigos daquela leitura diabólica. [...] Joyce é o poeta da sua cidade”. Dele
também observa Castagnino (1970): um autor muito combatido e não menos
elogiado, famoso por inusitada repercussão na novelística contemporânea,
pródigo em musicalidade, muitas vezes mergulhado na pornografia, mas sempre
regido e amparado por uma mente lúcida. Assim, sua obra é fruto de um espírito de
extremo egotismo e de conseguir uma audiência relativa em face da sua
complexidade, desenvolvendo na sua obra uma linha de aprofundamento de
concepção e linguagem, representando uma linha de radicalização da linguagem
narrativa até o ponto do silêncio no final.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
BURKE,
Keneth. Teoria da forma literária. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1969.
CARPEAU,
Otto Maria. Presenças. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1958.
CASTAGNINO,
Raul. Tempo e expressão literária. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
GARCIA,
Othon. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
JOYCE,
James. Retrato do artista quando jovem. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
MOISÉS,
Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
SÁBATO,
Ernesto. O escritor e os seus fantasmas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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