TRÍPTICO DQP – Esperança, amanhã diferente - Ao som do álbum Les Voix Humaines (Alia
Vox, 1998), do gambista, regente e compositor catalão Jordi Savall. – Era primeiro de janeiro, o Ano Novo, enquanto
do outro lado do planeta só se comemorará lá pra depois de meados do mês de
março e outro ano diverso do daqui. Não consigo entender direito a razão disso.
Saber eu sei, vale mesmo que O Sol nasce para todos e aqui os que
vivem na escuridão se alimentam para a tragédia da violência monstruosa. Sigo
pela rua sombria abandonada pelas estrelas daquele dia, terra de mortes e
nascimentos. É como se estivesse na cidade da eterna primavera e eu visse ali
tombar assassinado o médico sanitarista colombiano n’A ausência que seremos (Companhia
das Letras; 2011), do escritor Héctor Abad Faciolince: ... Os anos, as palavras, as brincadeiras, as
carícias se apagaram, e no entanto, de repente, rememorando o passado, alguma
coisa volta a se iluminar na sombria região do esquecimento. Quase sempre é um
misto de vergonha e alegria, e quase sempre aparece o rosto do meu pai, colado
ao meu como a sombra que arrastamos ou que nos arrasta... Depois de mortos,
ainda sobrevivemos por alguns frágeis anos na memória de outros, mas também
essa memória pessoal, a cada instante que passa, está sempre mais perto de
desaparecer... Diante de mim as cenas do drama Forgotten We Be (2020), do cineasta espanhol Fernando Trueba. Lá estava eu envolvido com a trama e cônscio entre
milhares de outros mortos doutros rincões que não foram apenas sequestrados,
desaparecidos ou imobilizados, como as Filhas
da Dor e os tantos crimes sem solução engordando as estatísticas da
impunidade. Não sei por onde voo nas periferias e favelas sem Estado nem futuro
algum, locais em que grupos fardados, paramilitares e narcoterroristas cultuam o
fascismo de sicários no espetáculo do terror: são os inimigos do
povo, polícia, exército, facções criminosas, facínoras que pregam o medo das
represálias com palavras de ordem, notícias falsas, contragolpes, plantões emergenciais, programas de rádio e tevê, manchetes sensacionalistas que mitificam
os Pol Pot, Leopoldo II da Bélgica, Hiroito, Hernan Cortés, Tamerlão, Stalin,
Hitler, Nurhad, Gengis Khan e todos abomináveis com os seus escusos triunfos do
presente. No bolso do morto um fragmento do Epitáfio,
de Jorge Luis Borges: Já somos o
esquecimento que seremos. / A poeira elementar que nos ignora / e o que era o
Adão vermelho, e o que é agora, / todos os homens, e isso não veremos. Não é outro lugar senão a minha cidade onde deixei a Carta ao meu pai: para quem esperança, só
esperava um amanhã diferente.
O mundo todo é aqui... – Imagens: arte da
fotógrafa estadunidense Francesca Woodman. - Ao despertar o amanhecer no lombo de um navio de deserto pela
pátria do Beduino, a Arábia deserta, suportando cargas fabulosas por mais de
duzentos quilômetros. Fui recepcionado pelo papagaio poliglota, Para, que além de me saudar em muitos
idiomas misturados, relinchou, miou, só não cantou como os pássaros. Ele havia
discursado sério e exaltadamente em uma assembleia de juízes e padres da corte,
deixando-os para me conduzir até o poeta sonhador Arnaud que me sorriu com sua barba de zuavo, seu ar sério de velas
acesas, heroísmo negligente, talento simples e encantador para a aventura. Estava
num albergue do Cairo, ao lado de seu companheiro Vayssiére, um ajudante-major
de verve característica do Languedoc. Contou-me que havia desembarcado na praia
de Hodeida, com a missão de retornar a Maarib porque lá havia encontrado
cinquenta e seis inscrições, cuja estampagem conseguiu fazer com uma escova de
sapatos e traduzido tudo com um asno hermafrodita. Apresentou-me a Parihou com sua
esposa Ati - um verdadeiro paquiderme de tão deformada pela gordura, pernas
curtas e pesadas, a exibir seus sinais de prosperidade, a me dizer que a sombra
de Arnaud iria para Hadramaut que se tornou famosa e próspera pela represa de
Maarib e que se encontrava agora no livro perdido de um certo explorador alemão
Hans Helfritz: No reino de Sabá, o país sem sombra. Depois dos elefantes e rinocerontes, ela era a mais
volumosa das criaturas vivas e trazia em cada orelha uma argola de ouro que
jorrava por todos os lados em um colar de várias voltas e correntes pelo
tornozelo. Seus seios caiam-lhe até o joelho e era desenhada pelo artista
acocorado, Deir el-Bahari. Dela recebi a notícia de Cambises que havia
desposado as duas irmãs dos comedores de peixes e que depois assassinou a mais
jovem, Roxana, e ao irmão dela Bardixa que foi vencido na prova do arco etíope,
conforme narrado por Heródoto e que logo apareceu ali e me disse: De todos os infortúnios que afligem a
humanidade, o mais amargo é que temos de ter consciência de muito e controle de
nada. É sem dúvida mais fácil enganar uma multidão do que um só homem. Pensar o
passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Foi ele quem me
levou para Belquis que estava pendurada seminua sobre a porta. Sim, a mesma
que na tradição árabe era a rainha de Sabá e que governava os abissínios. Ela tinha
vindo do Iêmen pelo Estreito de Bab-al-Mandb, acompanhada por sua fabulosa
caravana carregada de presentes para mim. Logo me confidenciou que o seu desejo
era me levar para Aksum e deu-me uma estela do deus Hórus de pé, nu sobre os
crocodilos, segurando em uma das mãos um leão, um caprídeo e os animais
ctonianos, o escorpião e a serpente, com uma madeixa lateral da infância e
dominado pela cabeça dos deus Bés – um demônio benigno que protege contra as
entidades do mal. Disse-me ela ser este presente revestido da magia protetora
doméstica. Depois ofereceu um cálice de ouro recheado de caracteres sibilinos incompreensíveis:
era para eu beber e ficar imunizado. Ao sorver o líquido, entregou-me uma pedra
de Aksum com inscrições antigas e que o rei havia conservado ao pé do leito:
Ela cura toda espécie de doenças, e se um homem souber utilizá-la, tornava-se
invulnerável. Despiu-se e se deitou ao lado de uma bacia com uma serpente,
enquanto me oferecia outras estatuetas mágicas para que eu não tivesse a mesma
sorte de Dillon que morreu de febre, do doutor Petit que foi levado por um
crocodilo, de Schaeffner que morrera de disenteria, nem a do desenhista Vignaud
que foi tragado pelo esgotamento no caminho de volta. Entre os tantas oferendas
lá estava a imagem do rei sacralizada: seu rosto é ornado pelo carneiro
tricéfalo – animal atributo do deus Amon –, usando arranjo cilíndrico na
cabeça, tendo no alto crescente lunar e um disco solar, símbolo da cultura
sabeu-etíope. Apresentou-me o pequeno Menelique, filho de sua ligação com
Salomão e que seria o fundador da dinastia dele na Abissínia. Segredou-me que
eu devia me cuidar para não ser atacado pelas serpentes aladas fêmeas que
devoram o macho logo após o acasalamento e depois é a vez da mãe ser comida
pelos filhotes que lhe devoram as entranhas para abrir caminho ao parto. Também
que eu evitasse Ghul, um djin feminino que costuma seduzir o pobre beduíno. Reiterou
confidente: São bastante perigosas, esteja de prontidão. E foi tirando minhas
vestes para me banhar: Só pode entrar no hima, o recinto sagrado,
depois de rituais de purificação com a água. Despido ela me conduziu até a sua
alcova e deitou-me de frente para um espelho que simbolizava o paredro, com o
Sol que era a deusa-Mãe, ao lado do deus-Lua e, por trás de ambos, estavam as
três deusas que protegiam as rotas: al-Lat que recebia a os que voltassem das
viagens; al-Ozza, a que habitava o bosque sagrado dos caminhos e que será
cortado pelo profeta; e Manat, a divindade da felicidade e também do acaso, era
ela que, com suas tesouras, cortava a linha do destino. Prestei atenção a tudo
que me dizia enquanto alternava poses para consultar o voo dos pássaros, a
marcha dos animais, a posição de um feixe de flechas jogadas ao chão, era o
costume dali: as mulheres liam a sorte com o auxílio de um punhado de conchas
jogadas sobre um pano velho. Foi o que fez antes de proibir terminantemente a
morte de meninas enterradas vivas ao nascerem. Depois sentou-se como se
representasse uma matrona, meio de frente, olhando nua para o céu: Lady Bar’at.
Levantou-se para encenar a Rainha Candace da Etiopia: Amanetere. Era a mesma
que vira nos muros dos templos de Naga, seguida de um eunuco etíope que ia
levá-la para uma grande e bela torre. Estava agora acompanhada de seu leão
familiar e me conduziu ao templo de Naga, onde as pregas da esteatopigia era o galardão de nobreza.
Lá estava a filha da rainha Bartare que dispunha de uma corte com enorme
séquito e bens nada negligenciáveis: veio-me com seus quadris enormes realçados
pelo vestido plissado, um bracelete troncônico etíope, coberta de joias e um
ombro nu em sinal de respeito: Venha, vou levá-lo ao templo de Isis de Philae
onde me deu o tesouro da rainha Amanishakete: uma estatueta de bronze do
Hermafrodita apontando para o seu sexo ao levantar a sua longa túnica até o
umbigo, enquanto o seu ombro esquerdo deixava a mostra o seu seio desenvolvido. Era
ela, de repente, o esqueleto de Eva para me levar por Melka Konture, a mais de dois
mil metros de altitude, próxima do Awash. Lá já recomposta para remexer as
nádegas proeminentes, participou do culto da fecundidade no eixo de um dólmen
que os indígenas chamavam de daga koliya e que encerrava grandes tesouros. Depois encostou-me às
suas costas para que desfrutasse do seu glúteo desnudo, a me levar pela Baixa Núbia e rumar pela região
selvagem e árida do Bato al-Hagar, onde os desencaminhados eram submetidos à
servidão. Chegamos em Tebas, onde ela puxou meus braços e pôs minhas mãos sobre
os seus seios para que eu ficasse colado às suas costas e me mostrar as mulheres que serviam os visitantes. Assim, agarrado em
seu dorso ouvi o aviso de Heliodoro de Êmeso: dava conta de que um camelo leopardo
provocava pânico numa cerimônia de sacrifícios. Logo vi que ali expiava um
negro colocado de joelhos debaixo do rabo do cavalo: postura bem ridícula e
humilhante. Outros escravos eram oferecidos com os braços atados, acompanhados
de suas mulheres de seios nus e bebês nas costas. Presenciei Amenófis III fazer
questão trazer sua esposa Tiyi para glória de seu reino, mandando construir
para ela um templo com seu nome. Liberado pela acompanhante, ele ofereceu-me
depois todas elas: a esposa ao lado de outras das ancas fartas para cobrir
minha nudez e se desnudarem para fartar todos os meus desejos e regalo com as
benesses da rainha nua por quantos anoiteceres incontáveis. Foram dias
primorosos, até ver-me só apreciando a civilização não só admirada por
Heródoto, como também por Diodoro, Estrabão, Plinio, entre tantos outros, lendo
o livro que me fora presenteado por Guy
Annequin – As
civilizações do mar vermelho (Ferni, 1977): nossa época agitada é mestre na arte de destruir
tudo, esses países correm um grande perigo.... perde-las-emos para sempre! Estava então só com uns versos do Gerión e a Suméria (Cepe, 1997), de Fernando Monteiro: ... Eu não
queria somente ter / esse vazio na alma, / esse vácuo que me faz contemporâneo
/ de um século de nada... E só me restava
o eco das palavras de Espinosa na
cabeça: O desejo é a própria essência
do homem, enquanto concebida como determinada a fazer algo por uma afecção
qualquer nela verificada... A alegria é a passagem do homem de uma perfeição
menor para uma maior... A tristeza é uma passagem do homem de uma perfeição
maior para uma menor. Seguir meu caminho
era trilhar para onde nasce o Sol, onde sempre estou e vivo.
Perdido no chão da casa... – Imagem: Portrait Of An Artist As A
Woman (1989), de Eric Fischl. - E se não sabia onde, logo me dei conta de que estava só numa
praça em que estava erguida uma estátua que fora jogada no lixo e era Bamba de Totó il Buono (1943- Monte Università Parma, 2003), do escritor italiano Cesare Zavattini (1902-1989): os
habitantes vivem na mendicância e ganham a vida à noite, governados pelo jovem
Totó, nascido de um repolho e aconselhado por uma pomba que fora dada pelo
espírito de sua defunta mãe. Ali imperava a hostilidade dos Mobbis, criaturas de
casacos de pele e corações de pedra. Os que conseguem se safar dos malignos,
logo se defrontam com o fantasma de Gilbert Ryle aos gritos: É de
extrema importância notar desde o início que estupidez não é a mesma coisa, ou
o mesmo tipo de coisa, que ignorância. Não há incompatibilidade entre ser bem
informado e ser bobo, e uma pessoa que tem um bom faro para discussões ou
piadas pode ter uma cabeça ruim para os fatos. Ou com Arthur Koestler pelas esquinas sentenciando: Fez o melhor que podia - não foi bom o
bastante... Nada é mais triste que a morte de uma ilusão... ou ainda com a
trupe do escritor Ignacio
Padilla, a Crack mexicana (Createspace Independent, 1996): ... profundo respeito pelo leitor inteligente, que deseja
participar ativamente da literatura, acompanhado pelo escritor Pedro
Ángel Palou: A ideia era brincar com a onomatopeia. Fazendo uma fenda
a gente fazia uma fissura, uma fenda, na tradição. Queremos reescrever a
tradição latino-americana sem romper com ela. Estamos cansados da marca
latino-americana. Abriu-se então uma brecha no tempo e pela rachadura onírica surgiu
Marie Darrieussecq
com seu jeito encantador para me dizer: A angústia, por exemplo, é uma experiência muito comum que pode alterar
profundamente a visão, a audição, até o olfato e o equilíbrio... Trata-se de
paixão. Paixão não é amor. O amor te ajuda a viver. O amor te ajuda a
trabalhar. Você está em boa companhia com o amor. A paixão o impede de viver,
trabalhar, respirar. A paixão é um desastre. É um desastre extraordinário. É tão
intenso, é fabuloso. Sua presença era um alívio e pude vê-la
sorrir enigmática enquanto permitia que eu pudesse sonhar um pouco com seu jeito
fascinante. Na real, eu fugia da dupla tragédia dagora: a peste e o desgoverno. Ela sentou-se e me
fitava firme: nos seus olhos havia a certidão de que eu estava deveras exilado a seguir na loucura hodierna dos
estranhos lugares tão familiares quanto a minha terra onde eu fosse ou
estivesse: o mundo todo é aqui. Até mais ver.
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