domingo, janeiro 30, 2022

V. ALEIXANDRE, AUGUSTINA BESSA-LUÍS, ARMANDO LÔBO & JULIA BONDAR

 

 

TRÍPTICO DQP – Veneno Bento... – Inspirado ao som do recém-lançado álbum homônimo (Projeto Mucambo/CO.MO, 2022), de Armando Lôbo. - Nenhuma pegada e a rodagem sou eu na pisada de quem se perdeu pelas paragens do Catimbau dum sonho de Samico e não sei onde mais as curvas dos ventos. É só a poeira no vestido da mulher com seu manto vermelho, e se eu não sei quem é, segue ao meu lado e meus passos por onde houver caminho. Não sei se a Fera do Sol na seca da minha cabeça de voo matagreste pro litoral, e é para lá talvez o galope porque foi um sonho de Luiza na miragem de Marcela que dançava branca com Isaac no que restou de açude ali e acolá. Ouço o poeta aboiar lá longe para animar o gibão do fantasma vaqueiro que comigo perseguia o regaço no chão batido, como se o lengotengo fosse Romero altivo no que foi Raimundo de Lua&Barbalho e o lamento das horas, porque apagaram as lendas que as nuvens choraram noutro lugar. É só o abismo no dedilhado das violas e se disparo veloz é a voz de Surama que carpe incelenças porque vou subir até satori, onde Sue solfeja com se fosse um coral de fêmeas. Levo aboiado no peito e a disparada segura para driblar tocaias & hybris, morena ou cabocla, a salvação na alquimia da zabumba. Preciso já a garganta seca, se não há veneno bento não há vida, fica tudo incolor até que o diabo apareça no fundo da garrafa com episódios da vida de Block e sirva de unguento para salvar a noite de todos os dias e as coisas tais como são. O gole de nenhum castigo ou recompensa, à custa do que sou, sem engano ou tédio, ouvindo Luís Jardim: O que há de bom em nós é herança da criança que fomos. E as cores são muitas na festa do amanhecer.

 


Todo ápice cambaleia... – Inspirado no livro homônimo e inédito de Vital Corrêa de Araújo. - A beira do abismo é redonda e a poesia em queda livre no que não sabia de Heisenberg: O Universo não é apenas mais estranho do que pensamos, é mais estranho do que podemos pensar. A eternidade é inútil, o infinito é pequeno, quem não desmoronou, quem não soterrado pelas circunstâncias imprevistas. Quando eu vi a equação de Torricelli era a minha maçã de Newton e eu só queria o pomo da imortalidade de Idun, ledo engano. Nem adiantou ter feito o décimo primeiro trabalho de Hércules, as maçãs douradas do Jardim das Hespérides foram escondidas por Afrodite porque sou Sísifo e fadado à queda de Camus. Não sabia que a banana era a musa paradisíaca de Lineu, tudo porque desci ao inferno de Rimbaud como se fosse Galileu no alto da Torre de Pisa. Quanto equívoco e era eu a árvore envenenada de Blake, sonhando com as da Ilha de Avalon onde foi forjada Excalibur. Para quem perdido, só restava a estrofe final da Felicidade do poeta Nobel italiano V. Aleixandre (1898-1984): Canto o céu feliz, o azul que se desponta, / canto a felicidade de amar doces criaturas, / De amar o que nasce sobre as pedras limpas, / agua, flor, folha, sede, lâmina, rio ou vento, / amorosa presença de um dia que sei existe. Precisava desse dia, acaso existisse e talvez o que não sabia, porque me perdi por quantos parágrafos e tantos se opuseram ao que fiz ou deixei de fazer, feitos que nem lembro e imputam o que nada elucida, ah, chutei as evidências centrípetas e os segredos suspensos nos livros, aliás, pus tudo de lado para depois, era só do que me servia, a esperança nos tendões do amanhã.

 


A salvação de Pítia... - Imagem: arte da artista visual ucraniana Julia Bondar. - O que fiz ou deixei de fazer? Mandei meu ego dar uma volta no quarteirão e fui trocar de alma. Sim. A primeira que encontrei foi a dela: a camponesa consagrada pitonisa de Apolo na dança das chamas e eu mais que dionisíaco como se buscasse a árvore Bo entre o nascimento e a morte. Era uma jovem delgada que aspirava um fumo aromático das folhas de louro e da farinha de cevada queimada num altar jamais visto e me fez passar pelo oikis até o adyton que ficava no subsolo, para se agachar na frente de um túmulo no que se podia saber da fonte de Cassotis. Depois do ritual explicou-me que tudo foi feito para oficiar como se eu fosse um deus insular. Logo se entusiasmou só porque fui sorteado pela promancia e consagrou a mim a sua virgindade sob o império de Piton. Era bom para quem errou demais da conta e  me serviu purificada depois dos ritos preparatórios na fonte de Castália que brotou ao pé das Fedríades. Nem deu para piscar o olho e ela logo se arranchou nua com seu sexo no meu a dançar com tremores e convulsões agitadas, enquanto no êxtase dos lábios frases desconexas aravam meu coração e aliviavam o jugo da fatalidade, e temperavam de piedade o frio rigor das velhas leis e ensinavam a não desesperar. Depois do gozo extraordinário, ela me deu o talismã de ônfalo – a pedra sagrada encerrada em uma rede fita de lã branca, o umbigo do mundo. Fiquei maravilhado e lá para as tantas, já saciada de mim, disse-me Augustina Bessa-Luís: Só se pode sentir a evidência das coisas até um certo ponto: além disso, ou nos rebaixamos ou nos aproximamos do sentimento superior que nos liberta. De fato, o verdadeiro estado de liberdade é o de ultrapassar a imaginação. Era a cantiga da nova hora e o universo dentro de mim. E lá fui eu além do tempespaço sem ter que me valer da angústia do amanhã. Até mais ver.

 

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domingo, janeiro 23, 2022

ELLA WILCOX, NOAM GORDON, KELLY VERDANA, TARIK ALI, MORGAN LLYWELYN, JOUBERT & ÁLVARO LINS

 

 

TRÍPTICO DQP – Só a poesia torna a vida suportável...- Ao som do Klavierkonzert nº 20 in d-moll KV 466 - 1. Allegro 2. Romance 3. Rondo: Allegro assai (1785), de Wolfgang Amadeus Mozart, na interpretação da pianista austríaca Ingrid Haebler, com a Klavier London Symphony Orchestra Dirigent: Alceo Galliera – Tempoutros, naveganamnese... Jovem impúbere e o teatro à flor da pele. Andava às tontas até ser encaminhado por Enock Queiroz, Gildásio Santana e Maurício Melo, afora o amável casal Dudu e Léa – esta atriz de muitos palcos -, pra conversar com seu Odyllo da banca de jornal - que era Costa para todos e Ferreira como ator. Sim, dos palcos de Fenelon Barreto e que protagonizou, entre outras peças, o Náufrago do Mafalda. Dele as instruções para melhor conduzir a Adoração que eu queria montar com o Luizinho Barreto. A paciente e dedicada ilustração dele para mim era de suma importância, ouvia-o atentamente, experiência que contava. Tantas vezes a ele recorri para esclarecer esta ou aquela cena, sempre saindo do encontro mais pujante quanto invencível. Depois do malogro da empresa, todos os dias eu pegava o jornal diário e indagava de dona Maria: Cadê seu Odyllo? E de lá de dentro ele se aproximava com um bom dia e troca de algumas ideias: Este o sobrevivente das tragédias! Ele com um meio sorriso, reiterava: Nas peças de Felelon só quem escapava mesmo era Enock que era o ponto e fugia antes do final, senão nem ele saía vivo! Ressuscitado depois de tantas apresentações, guardava ele as boas lembranças de quantas vezes não enlouqueceu em cena, quantos naufrágios, quanto enlutamento e desespero. E a gente se ria contando do sucesso que explodia quando fechava o pano. Era a glória! Os olhos dele chega marejavam. Pois bem, o tempo passou e, dia deste, do inesperado me aparece a conterrânea Odyla Gorette Fronrath em vídeo e fotos. Sim, com o seu Vida aos 50 – Teste os seus limites, enfrente os seus medos e não deixe que nada impeça você de pelo menos tentar. Conversa vai e vem, seu Odyllo? Sim. Nossa, que maravilha! E conversamos um bocado e com ela outra lembrança, um dia que o pai dela me falou do jornalista, advogado e crítico literário da Academia Brasileira de Letras, Álvaro Lins (1912-1970): Durante algum tempo – e ainda hoje em certos meios – a história nada mais significava do que um peso morto, isto é: luxo de erudição, para uns; amontoado de fatos e datas, para outros. Tudo mais ou menos frio e inerte como se o passado fora um outro mundo, uma região estrangeira. Pois há quem não compreenda a verdadeira significação do tempo; neste caso, o que está para trás sendo uma paisagem distante e indiferente. Sim, foi dele que ouvi pela primeira vez o nome do imortal acadêmico caruaruense. E o que dissera me soava como um alerta para os que têm olhos e não veem, ouvidos e não ouvem, só se arrastam e se debatem espíritos rasos e fúteis do ódio e do egoísmo na tagarelice da insipidez do proselitismo, nas tolices de endeusamentos conservadores das religiões e superstições ou dos preconceitos das convicções e das disparatadas panaceias carregadas de recalques e com todo o tipo de restrição disso ou daquilo. Sim, uma advertência para quem bebeu as águas nos infernos de Lete para olvidar do passado inglório da história, como real pusilanimidade, pois se prestar atenção a um detalhe irrecorrível, saberá que, por maior que seja a indiferença, as ninfas das nove noites amantes de Mnemósine estarão sempre em riste. Por isso só a poesia, viva.

 


Menoscabo aos pávidos... Imagens da artista canadense Claire Wilks (1933-2017). - Lá estava eu no meio do Trilema de Epicuro e exumado pelo bombardeio estúpido daqueles do Efeito Dunning-Kruger. Ninguém merece. É como se eu esquecesse o que repetia o escritor estadunidense Noam Gordon (1926-2021): A vida é gloriosa, mas pode ser considerada cruel. Sim, mais do que nunca é preciso sobreviver às bravatas dos insensatos com seus dislates e platitudes! Ouço bem Tarik Ali: Como vivemos nossas vidas não depende, infelizmente, apenas de nós. Circunstâncias, boas ou ruins, intervêm constantemente. Uma pessoa próxima a nós morre. Uma pessoa não tão próxima de nós continua vivendo. Todas essas coisas afetam a forma como vivemos... Afinal, vivemos em um mundo onde as ilusões são sagradas e a verdade, profana. Ah, não! Se os desmiolados esdrúxulos pintam de azul o horror e querem por que querem impor sua bizarrice sobre os telhados e peitos abertos nas calçadas e ruas para contaminar a miséria tenebrosa como se fossem ofertas faustosas, estou careca de saber daquela do moralista francês Joseph Joubert (1754-1824): O medo depende da imaginação; a covardia, do caráter. E muito mais do que fez a poeta estadunidense Ella Wheeler Wilcox (1850-1919): Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes. Para quem acha que não há quem salve a dor da traição, sigo adiante.

 


Truz era o meu verbo... - Imagem da artista visual alemã Silke Host - Quantas quedas, tombos e topadoutras, não herdei sozinho as múltiplas maldições terceiromundistas. Se este é o meu pecado, mantenho-me desobediente! Ao procurar identificar qual o meu verbo, ouvi algo mais ameno e afetivo da enfermeira e professora Kelly Graziani Giacchero Vedana: Se perdoe. Perdoe pela falta de tempo consigo; pelas vezes que disse sim quando deveria ter dito não; perdoe seu passado, você não sabia das coisas que sabe hoje. Não seja severa assim. Você não merece carregar todo esse peso nas costas. Olhe no espelho e diga: eu te perdoo, tudo vai ficar bem daqui para frente. E lá estava eu na InspirAção para melhor ouvir e entender o que me dizia Morgan Llywelyn: A intuição é a voz do espírito dentro de você. O único poder que um homem tem que não pode ser tirado dele é o poder de não fazer nada. Nós nascemos sozinhos e morremos sozinhos, eu aceito isso. Mas por que, Deus, temos que ficar sozinhos no meio? Os corpos se desgastam para nos lembrar que são temporários e nos forçam a pensar mais em nossos espíritos. Sim e se hoje tudo anda em marcha à ré pelas trevas da ignorância maldita, não se pode ficar com um pé atrás: um passo a mais e outro adiante, não há por que nem como se calar. Até mais ver.

 

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domingo, janeiro 16, 2022

LUCIA ETXEBARRIA, IAN MCEWAN, ELVIRA NAVARRO PONFERRADA, JAVIER CERCAS & PELÓPIDAS SOARES

 

 

TRÍPTICO DQP – É de lástima a pele dos pusilânimes... – Imagem inspirada no livro homônimo de Vital Corrêa de Araújo, ao som do Piano Pieces for Children - Japanese Festival (1955), do compositor japonês Nakata Yoshinao (1923-2000). - Diacaso, entrechos... Nenhumoutra escolha. Olhalgaravias... Encontroutros no pasto dos infames com metano cru, insanos que duram mortes. Se dialvorecia tal noitescura não era apenas jogoxímoros: era vidagora, feito garotórfão & escolabandonado, trabalhexcessivo, mortesforço pra fortunaventura, inocentinsensato... Um futurilusório: empregrana poucurtíssima, flordidade degenerazões. E o cineastiraniano Jafar Panâhi em riste: Isto não é um filme. Não era mesmo! E eu aos homoteleutos de idos ados udos edos e odos. Tudo. Para onde foram todos? A resposta com o escritorespanhol Javier Cercas: O que as mentiras e calúnias têm de pior é que quase sempre acabam nos contaminando, porque é muito difícil não ceder à tentação de nos defendermos delas tornando-nos mentirosos e caluniadores. E não era só a sindemia e o desgoverno coisonário: era o reinado da estupidez e da morte. Não fosse a jornalistescritora espanhola Lucia Etxebarria: A ignorância é uma traidora que se aliou à imaginação... Eu me tornaria um quase talvez grego desesquecido de tudo e teimando posteridade.

 


A tragédia nossa de cada dia... - Imagem: a arte do artista bengalês Javed Jalil - E daí? Era o dilúvio. Os deuses lamentavam a criação da humanidade, levados pela resolução de exterminá-la definitivamente. Um deles, Ea, apiedou-se da raça humana e revelou a Umnapishtim o projeto, aconselhando-o confeccionar uma barca com medidas exatas e nela subisse com todos os seus, só assim escaparia da inundação do mundo: Tudo quanto tinha embarquei, toda semente de vida subiu, toda minha família e parentela, porque o senhor das trevas fará chover impurezas, entrei na embarcação e fechei a porta. Mesmo assim, a desordem. Eu e eles. E o predito se fez violento por seis dias e seis noites, os deuses se arrependeram; os nossos, não. Quase quatranos e a impunidade verdadeira, quantos aproveitadores, coniventes todos. E as águas romperam as margens, subestimaram as Pedreiras, inundaram a praça da matriz e os que haviam subido o Matadouro não foram poupados. Só me restou ouvir de Ian McEwan em Amsterdam: Sabemos tão pouco uns dos outros. Jazemos quase que submersos, como blocos de gelo, mostrando apenas a parte branca e fria de nossos eus sociais. Ali estava uma rara visão, por baixo das ondas, do tumulto e da privacidade de um homem, da sua dignidade posta de cabeça pra baixo pela necessidade avassaladora de fantasia pura, de pensamento puro, por aquele elemento humano irredutível – a mente. Não podia ser, não, jamais. Nem havia razão alguma de ser justamente eu o escolhido para assistir todessa aluvião.

 


Se tarde passou a hora... - Imagem: arte da artista argentina Helena Wierzbicki. - Prondecêfoi? Mundoco, imagemalogrou. Como foi mesmo, hem? Ela nua me levou para uma solenidade hierogâmica. Estava perdido e nada sabia. Era um simples mortal com o talismã da morada, ora diante do leão, ora da pomba. Ela havia chorado a desgraça como se sentisse as dores do parto e vociferou soberana, com sua bela voz para Ninlil sem Enlil, Ereshkigal sem Nergal, Babu sem Ningirsu, mais Nana, Ininni, Ninharsag, todas e as tríades delas: Acaso dei a luz ao meu povo para que seja dizimado entre si? Os deuses inexoráveis: todos fraquejaram e tentaram contra eles. Irritados com a ignominia, infligiram o golpe desditoso, torturando infortunados. Ela protestou: Estamos cercados de demônios para fazer os meus sua presa, são os sete da montanha do ocidente, crescidos na montanha do levante, habitantes dos buracos da terra, cobertos de brilho! Nadadiantou. A deusa-grão Nidaba braçabertos para me proteger e contou da Criação: Prepara-te. Que tu e eu combatamos. Perdi a razão e fiquei fora de mim, quase chorei. Ela recitou um encantamento da fórmula mágica que o Georges Conteneau escreveu sobre as mulheres de Assur e Babilônia. E depois me fez fugir para salvar nossas vidas. Em fuga cruzei com saudoso centenário Pelópidas Soares: Outro sol se levanta... E eu não via porque havia pressa em tudo, o mundo enlouquecido. E foi preciso que a escritorespanhola Elvira Navarro Ponferrada me avisasse: Não quero dizer que estou fazendo algo super novo, mas para mim é, estou passando por territórios que não tinha explorado antes, e isso é o que é divertido, o que é estimulante. É isso que me interessa como criadora, não concebo que a criação possa ser diferente. Tenho a impressão de que muitas coisas chamamos de periferia. Mas nossas próprias regiões de sombra também estão na periferia, tentamos não vê-las e encurralá-las. E me apontou para a Vitória Régia como se eu fosse o deus do seu panteão e não era: um desvalido a mais no pesadelo da existência. Até mais ver.

 

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domingo, janeiro 09, 2022

MAURICIO ROSENCOF, MONIKA LUNIAK, MICHAEL PALMER & GENINHA ROSA BORGES

 

 

TRÍPTICO DQP – Diário da memória... - Ao som dos álbuns Open Source (2020), Fullblast (2009) e No Gravity (2005), do compositor e multi-instrumentista Kiko Loureiro. – Um dia noutro como se o futuro fosse o presente que insistia no passado. Não mais ontem, chega! Agora arrombava inclemente com o que os alienômanos insistem em manter de suas platitudes, mimetizam o que ouso, emulam o que detesto. Se o tom distópico é mais que sinfonia inaudível, meus olhos sabem o que não viram. De resto um voo sem águia por companhia, pés nas folhas e o aroma da infância era eu menino da beira do rio, rompendo o que restava de ínvia mata feito aquela pequenina Maelys que se deparou com a nudez pálida de Brune Renault, dada pelo Cadavre exquis (2012) da Léa Mysius. Ali fiquei a vê-la desacordada entre juncos, como se fosse esperança de quem se realiza no destaque pros olhos do paraíso. Cuidei dela por horas, na verdade fui mais buliçoso que providente, até arrastá-la ao abrigo inventado da minha solidão de nunca mais voltar para casa. Estendida na cama improvisada cultuei como se morta não estivesse. Sim, aquela pele era tudo dos seus despojos acaso eu pudesse renascê-la do meu íntimo de sonhos pouco prováveis. Foram dois dias até mexer as pálpebras e me achar mais desamparado, como se espantasse com minha companhia jamais vista. Aos poucos recobrou os sentidos e revitalizada disse-me buscar os faróis da alma de RuPaul que nunca soubera e que vicejou porque podia ser Béatrice Lourmel, a tenente da Transferts (2017). Viu-me os olhos perdidos e me disse John Green reticente: Meus pensamentos são estrelas que eu não consigo arrumar em constelações... A verdade resiste à simplicidade. O que fazer diante daquilo era o que mais me chamava atenção e adormeci entre seus braços e seios, não previa reencontro nem quando.

 


A viúva inominada... - Imagem: arte da pintora polonesa Monika Luniak. - Não, era outra e sequer sabia a razão pela qual revia depois de décadas insones e anos perdidos, aquela viúva cujo nome não poderia ser dito nem lembrado. Estava coberta por um véu que recaía da cabeça ao peito, deixando à mostra apenas os lábios aliciadores e parte da face desmaiada. Enviou uma mensagem distante por um pombo-correio porque se aproximava o Carnaval do Arlequim de Miró e eu era o seu convidado. Nem bem o abraço ardente, alisou minhas faces, deu-me as costas e saiu com um aviso de espera. Logo revia Bagoas a me saudar com a notícia da blitzkrieg no Império Bizantino: Ah, apronte-se que vamos pro Cabaré Voltaire! Hem? Era tudo muito desconexo, aliás, como a vida sempre foi em mim: um quarto escuro. A lembrança era a voz dela ao meu ouvido. Vi-a chegar do inopinado: o Violino d’Ingres: ela como se fosse a minha Kiki do eu Ray. Levou-me nua a passear pelo adro do grande pátio das Murtas, na arquitetura de sonhos do palácio Jenna el-Arif que nunca vira antes, e percorremos o estreito onde jorram jatos de água até atravessar a sala da Bênção, a das Duas Irmãs, para chegar na dos Segredos com suas alcovas e banheiras de mármore. Levou-me até o gineceu onde escravas aguardavam-na para o hammam. Dispensou todas, exceto o eunuco que a encaminhou à terma privada. Sentou-se sobre um banco de mármore para sauna e o serviçal untou seu corpo com ocra esfregada para depois enxaguá-la com massagem. Encerrando o ritual enrolou-a numa toalha de esponja cor de romã e a fez repousar. Tudo assistia. O emasculado piscou um olho: Aprenda. Deu-lhe hidromel e depois poliu seus dentes com pedra-pome, com a oferta de uma mistura de nácar, casca de ovos e carvão moído. Mascava bételes e viu-me ali desconfortável. Sorriu-me enquanto cochichava algo ao ouvido do escravo e saiu com um adeusinho na ponta dos dedos. Ele atravessou comigo corredores que deram num amplo salão. Lá estavam várias pessoas estranhas. O poeta Abu Nuwas que disse cheio de graça: Menos de cinco é a solidão; mais de cinco, é o bazar! Todos riram. E fui convocado à festança enquanto o semíviro me confidenciava ser ele o seu amante, advertindo que seria jamais de bom tom servir juntar duas iguarias que não combinassem, demonstrando ser um excelente conhecedor tanto da exegese corânica como da arte culinária, lançando-se em uma longa e brilhante dissertação gastronômica. Apenas foi interrompido pela muito simpática poeta Zamab que falava doutro, o Al-Shereshi: A morte apodera-se de todos. O luto é mais triste que a brancura dos cabelos. Viu-me e sorriu. Depois ela recitou poemas sobre sexo e vinho, e contou de uma sessão do hammam que foi a mais dura prova de sua vida: Se eu soubesse antes o que me iriam fazer passar, eu teria sem dúvida renunciado ao casamento. E contou sua desdita. Todos riram e ela recitou O colar da pomba e a triste sina de Ibn Hazm. Houve quem mencionasse sobre a caminhada aviltante, e ouviu por resposta que só se salva da Lei de Talião nos Lupanares de Andaluzia. Gargalhadas de todos quando apareceu alguém que soou como interdito. Apenas sei que era abstêmio e ofereceram-lhe uma bebida com a indicação no rótulo: Suco de frutas, Lojas de Ishaq al-Wasoto. Serviu-se e sentou-se com empolgação, agarrando a garrafa e virando copos, um atrás do outro, alegando sede dumas três garrafas. Assim dispuseram e dali a pouco o estranho desmoronou completamente embriagado. Quem? Silêncio total. Arrastaram-no não sei para onde. Fiquei só, avalie.

 


Lição de sobrevivente – Imagem: gravura do artista visual sul-africano William Kentridge.Que dia era, se sexta ou sábado, só sei que revi aquela sonhada com seus cabelos acobreados e unhas brilhantes, como se chegasse na liteira para me surpreender alta madrugada, tal Giselle Beiguelman a me falar do egoscópio e sua poétrica, como das retóricas visuais e biopolíticas do mundo covídico. Não tinha eu mais que o horror de saber qual seria o meu verso se a formiga sequer precisava do viés moral nem nunca distinguiu o carvão do diamante, nem decifrou o círculo de Giotto, ou do Ensō, muito menos da autobiografia dos versos de Michael Palmer: Às vezes temos que bater no fundo antes de descobrir a vida. Nunca compare o seu interior com outra pessoa do lado de fora. A presença dela era magnífica em todos os sentidos, meus órgãos festejavam e nem cabia em mim mesmo, já dela e para ela. Foi preciso que uma semana ou mais dias, não sei, para ter a dimensão da posse dela sobre mim. Se ouvisse Douglas Adams saberia: Não acredite em nada que você lê na rede. Exceto isto. Bem, incluindo isso, suponho. Resumindo: É um fato bem conhecido que todos que querem governar as outras pessoas são, por isso mesmo, os menos indicados para isso. E não discernia de nada, se tivesse saída ou reconhecesse um novo renascimento, nada impossível. Só que ela chegou como se fosse Geninha da Rosa Borges: nascedouro e permanência. Era nela que eu revivia o que mais desejava, não fosse a ausência quase suicida. Onde? Deu-me uns versos de Mauricio Rosencof: se este fosse meu último / poema, / insubmisso e triste, / roído mas inteiro, / uma única palavra escreveria: / companheiro. E tal como ele diria: Eu sou os que foram. E se nos perdemos mais de uma vez, a festa não era só o reencontro: era dela a alma. Foi aí que enfrentei meus monstros e o abismo outra vez na ampulheta do peito vazio, legado de xexéu escasso porque a flurona roubou a eudaimonia e o diploma – o pergaminho da superstição popular de Lima Barreto, que deu para mim o mesmo triste fim de Policarpo: Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após. E essa mudança, não começa, não se sente quando começa e quase nunca acaba. Cada um agora está mais vivo que antes, apesar de tudo. Nada mais. Vidaviva, vivavida. Até mais ver.

 

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domingo, janeiro 02, 2022

HÉCTOR ABAD, DARRIEUSSECQ, IGNACIO PADILLA & FRANCESCA WOODMAN

 

 

TRÍPTICO DQP – Esperança, amanhã diferente - Ao som do álbum Les Voix Humaines (Alia Vox, 1998), do gambista, regente e compositor catalão Jordi Savall. – Era primeiro de janeiro, o Ano Novo, enquanto do outro lado do planeta só se comemorará lá pra depois de meados do mês de março e outro ano diverso do daqui. Não consigo entender direito a razão disso. Saber eu sei, vale mesmo que O Sol nasce para todos e aqui os que vivem na escuridão se alimentam para a tragédia da violência monstruosa. Sigo pela rua sombria abandonada pelas estrelas daquele dia, terra de mortes e nascimentos. É como se estivesse na cidade da eterna primavera e eu visse ali tombar assassinado o médico sanitarista colombiano n’A ausência que seremos (Companhia das Letras; 2011), do escritor Héctor Abad Faciolince: ... Os anos, as palavras, as brincadeiras, as carícias se apagaram, e no entanto, de repente, rememorando o passado, alguma coisa volta a se iluminar na sombria região do esquecimento. Quase sempre é um misto de vergonha e alegria, e quase sempre aparece o rosto do meu pai, colado ao meu como a sombra que arrastamos ou que nos arrasta... Depois de mortos, ainda sobrevivemos por alguns frágeis anos na memória de outros, mas também essa memória pessoal, a cada instante que passa, está sempre mais perto de desaparecer... Diante de mim as cenas do drama Forgotten We Be (2020), do cineasta espanhol Fernando Trueba. Lá estava eu envolvido com a trama e cônscio entre milhares de outros mortos doutros rincões que não foram apenas sequestrados, desaparecidos ou imobilizados, como as Filhas da Dor e os tantos crimes sem solução engordando as estatísticas da impunidade. Não sei por onde voo nas periferias e favelas sem Estado nem futuro algum, locais em que grupos fardados, paramilitares e narcoterroristas cultuam o fascismo de sicários no espetáculo do terror: são os inimigos do povo, polícia, exército, facções criminosas, facínoras que pregam o medo das represálias com palavras de ordem, notícias falsas, contragolpes, plantões emergenciais, programas de rádio e tevê, manchetes sensacionalistas que mitificam os Pol Pot, Leopoldo II da Bélgica, Hiroito, Hernan Cortés, Tamerlão, Stalin, Hitler, Nurhad, Gengis Khan e todos abomináveis com os seus escusos triunfos do presente. No bolso do morto um fragmento do Epitáfio, de Jorge Luis Borges: Já somos o esquecimento que seremos. / A poeira elementar que nos ignora / e o que era o Adão vermelho, e o que é agora, / todos os homens, e isso não veremos. Não é outro lugar senão a minha cidade onde deixei a Carta ao meu pai: para quem esperança, só esperava um amanhã diferente.

 


O mundo todo é aqui... – Imagens: arte da fotógrafa estadunidense Francesca Woodman. - Ao despertar o amanhecer no lombo de um navio de deserto pela pátria do Beduino, a Arábia deserta, suportando cargas fabulosas por mais de duzentos quilômetros. Fui recepcionado pelo papagaio poliglota, Para, que além de me saudar em muitos idiomas misturados, relinchou, miou, só não cantou como os pássaros. Ele havia discursado sério e exaltadamente em uma assembleia de juízes e padres da corte, deixando-os para me conduzir até o poeta sonhador Arnaud que me sorriu com sua barba de zuavo, seu ar sério de velas acesas, heroísmo negligente, talento simples e encantador para a aventura. Estava num albergue do Cairo, ao lado de seu companheiro Vayssiére, um ajudante-major de verve característica do Languedoc. Contou-me que havia desembarcado na praia de Hodeida, com a missão de retornar a Maarib porque lá havia encontrado cinquenta e seis inscrições, cuja estampagem conseguiu fazer com uma escova de sapatos e traduzido tudo com um asno hermafrodita. Apresentou-me a Parihou com sua esposa Ati - um verdadeiro paquiderme de tão deformada pela gordura, pernas curtas e pesadas, a exibir seus sinais de prosperidade, a me dizer que a sombra de Arnaud iria para Hadramaut que se tornou famosa e próspera pela represa de Maarib e que se encontrava agora no livro perdido de um certo explorador alemão Hans Helfritz: No reino de Sabá, o país sem sombra. Depois dos elefantes e rinocerontes, ela era a mais volumosa das criaturas vivas e trazia em cada orelha uma argola de ouro que jorrava por todos os lados em um colar de várias voltas e correntes pelo tornozelo. Seus seios caiam-lhe até o joelho e era desenhada pelo artista acocorado, Deir el-Bahari. Dela recebi a notícia de Cambises que havia desposado as duas irmãs dos comedores de peixes e que depois assassinou a mais jovem, Roxana, e ao irmão dela Bardixa que foi vencido na prova do arco etíope, conforme narrado por Heródoto e que logo apareceu ali e me disse: De todos os infortúnios que afligem a humanidade, o mais amargo é que temos de ter consciência de muito e controle de nada. É sem dúvida mais fácil enganar uma multidão do que um só homem. Pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Foi ele quem me levou para Belquis que estava pendurada seminua sobre a porta. Sim, a mesma que na tradição árabe era a rainha de Sabá e que governava os abissínios. Ela tinha vindo do Iêmen pelo Estreito de Bab-al-Mandb, acompanhada por sua fabulosa caravana carregada de presentes para mim. Logo me confidenciou que o seu desejo era me levar para Aksum e deu-me uma estela do deus Hórus de pé, nu sobre os crocodilos, segurando em uma das mãos um leão, um caprídeo e os animais ctonianos, o escorpião e a serpente, com uma madeixa lateral da infância e dominado pela cabeça dos deus Bés – um demônio benigno que protege contra as entidades do mal. Disse-me ela ser este presente revestido da magia protetora doméstica. Depois ofereceu um cálice de ouro recheado de caracteres sibilinos incompreensíveis: era para eu beber e ficar imunizado. Ao sorver o líquido, entregou-me uma pedra de Aksum com inscrições antigas e que o rei havia conservado ao pé do leito: Ela cura toda espécie de doenças, e se um homem souber utilizá-la, tornava-se invulnerável. Despiu-se e se deitou ao lado de uma bacia com uma serpente, enquanto me oferecia outras estatuetas mágicas para que eu não tivesse a mesma sorte de Dillon que morreu de febre, do doutor Petit que foi levado por um crocodilo, de Schaeffner que morrera de disenteria, nem a do desenhista Vignaud que foi tragado pelo esgotamento no caminho de volta. Entre os tantas oferendas lá estava a imagem do rei sacralizada: seu rosto é ornado pelo carneiro tricéfalo – animal atributo do deus Amon –, usando arranjo cilíndrico na cabeça, tendo no alto crescente lunar e um disco solar, símbolo da cultura sabeu-etíope. Apresentou-me o pequeno Menelique, filho de sua ligação com Salomão e que seria o fundador da dinastia dele na Abissínia. Segredou-me que eu devia me cuidar para não ser atacado pelas serpentes aladas fêmeas que devoram o macho logo após o acasalamento e depois é a vez da mãe ser comida pelos filhotes que lhe devoram as entranhas para abrir caminho ao parto. Também que eu evitasse Ghul, um djin feminino que costuma seduzir o pobre beduíno. Reiterou confidente: São bastante perigosas, esteja de prontidão. E foi tirando minhas vestes para me banhar: Só pode entrar no hima, o recinto sagrado, depois de rituais de purificação com a água. Despido ela me conduziu até a sua alcova e deitou-me de frente para um espelho que simbolizava o paredro, com o Sol que era a deusa-Mãe, ao lado do deus-Lua e, por trás de ambos, estavam as três deusas que protegiam as rotas: al-Lat que recebia a os que voltassem das viagens; al-Ozza, a que habitava o bosque sagrado dos caminhos e que será cortado pelo profeta; e Manat, a divindade da felicidade e também do acaso, era ela que, com suas tesouras, cortava a linha do destino. Prestei atenção a tudo que me dizia enquanto alternava poses para consultar o voo dos pássaros, a marcha dos animais, a posição de um feixe de flechas jogadas ao chão, era o costume dali: as mulheres liam a sorte com o auxílio de um punhado de conchas jogadas sobre um pano velho. Foi o que fez antes de proibir terminantemente a morte de meninas enterradas vivas ao nascerem. Depois sentou-se como se representasse uma matrona, meio de frente, olhando nua para o céu: Lady Bar’at. Levantou-se para encenar a Rainha Candace da Etiopia: Amanetere. Era a mesma que vira nos muros dos templos de Naga, seguida de um eunuco etíope que ia levá-la para uma grande e bela torre. Estava agora acompanhada de seu leão familiar e me conduziu ao templo de Naga, onde as pregas da esteatopigia era o galardão de nobreza. Lá estava a filha da rainha Bartare que dispunha de uma corte com enorme séquito e bens nada negligenciáveis: veio-me com seus quadris enormes realçados pelo vestido plissado, um bracelete troncônico etíope, coberta de joias e um ombro nu em sinal de respeito: Venha, vou levá-lo ao templo de Isis de Philae onde me deu o tesouro da rainha Amanishakete: uma estatueta de bronze do Hermafrodita apontando para o seu sexo ao levantar a sua longa túnica até o umbigo, enquanto o seu ombro esquerdo deixava a mostra o seu seio desenvolvido. Era ela, de repente, o esqueleto de Eva para me levar por Melka Konture, a mais de dois mil metros de altitude, próxima do Awash. Lá já recomposta para remexer as nádegas proeminentes, participou do culto da fecundidade no eixo de um dólmen que os indígenas chamavam de daga koliya e que encerrava grandes tesouros. Depois encostou-me às suas costas para que desfrutasse do seu glúteo desnudo, a me levar pela Baixa Núbia e rumar pela região selvagem e árida do Bato al-Hagar, onde os desencaminhados eram submetidos à servidão. Chegamos em Tebas, onde ela puxou meus braços e pôs minhas mãos sobre os seus seios para que eu ficasse colado às suas costas e me mostrar as mulheres que serviam os visitantes. Assim, agarrado em seu dorso ouvi o aviso de Heliodoro de Êmeso: dava conta de que um camelo leopardo provocava pânico numa cerimônia de sacrifícios. Logo vi que ali expiava um negro colocado de joelhos debaixo do rabo do cavalo: postura bem ridícula e humilhante. Outros escravos eram oferecidos com os braços atados, acompanhados de suas mulheres de seios nus e bebês nas costas. Presenciei Amenófis III fazer questão trazer sua esposa Tiyi para glória de seu reino, mandando construir para ela um templo com seu nome. Liberado pela acompanhante, ele ofereceu-me depois todas elas: a esposa ao lado de outras das ancas fartas para cobrir minha nudez e se desnudarem para fartar todos os meus desejos e regalo com as benesses da rainha nua por quantos anoiteceres incontáveis. Foram dias primorosos, até ver-me só apreciando a civilização não só admirada por Heródoto, como também por Diodoro, Estrabão, Plinio, entre tantos outros, lendo o livro que me fora presenteado por Guy AnnequinAs civilizações do mar vermelho (Ferni, 1977): nossa época agitada é mestre na arte de destruir tudo, esses países correm um grande perigo.... perde-las-emos para sempre! Estava então só com uns versos do Gerión e a Suméria (Cepe, 1997), de Fernando Monteiro: ... Eu não queria somente ter / esse vazio na alma, / esse vácuo que me faz contemporâneo / de um século de nada... E só me restava o eco das palavras de Espinosa na cabeça: O desejo é a própria essência do homem, enquanto concebida como determinada a fazer algo por uma afecção qualquer nela verificada... A alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior... A tristeza é uma passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor. Seguir meu caminho era trilhar para onde nasce o Sol, onde sempre estou e vivo.

 


Perdido no chão da casa... – Imagem: Portrait Of An Artist As A Woman (1989), de Eric Fischl. - E se não sabia onde, logo me dei conta de que estava só numa praça em que estava erguida uma estátua que fora jogada no lixo e era Bamba de Totó il Buono (1943- Monte Università Parma, 2003), do escritor italiano Cesare Zavattini (1902-1989): os habitantes vivem na mendicância e ganham a vida à noite, governados pelo jovem Totó, nascido de um repolho e aconselhado por uma pomba que fora dada pelo espírito de sua defunta mãe. Ali imperava a hostilidade dos Mobbis, criaturas de casacos de pele e corações de pedra. Os que conseguem se safar dos malignos, logo se defrontam com o fantasma de Gilbert Ryle aos gritos: É de extrema importância notar desde o início que estupidez não é a mesma coisa, ou o mesmo tipo de coisa, que ignorância. Não há incompatibilidade entre ser bem informado e ser bobo, e uma pessoa que tem um bom faro para discussões ou piadas pode ter uma cabeça ruim para os fatos. Ou com Arthur Koestler pelas esquinas sentenciando: Fez o melhor que podia - não foi bom o bastante... Nada é mais triste que a morte de uma ilusão... ou ainda com a trupe do escritor Ignacio Padilla, a Crack mexicana (Createspace Independent, 1996): ... profundo respeito pelo leitor inteligente, que deseja participar ativamente da literatura, acompanhado pelo escritor Pedro Ángel Palou: A ideia era brincar com a onomatopeia. Fazendo uma fenda a gente fazia uma fissura, uma fenda, na tradição. Queremos reescrever a tradição latino-americana sem romper com ela. Estamos cansados da marca latino-americana. Abriu-se então uma brecha no tempo e pela rachadura onírica surgiu Marie Darrieussecq com seu jeito encantador para me dizer: A angústia, por exemplo, é uma experiência muito comum que pode alterar profundamente a visão, a audição, até o olfato e o equilíbrio... Trata-se de paixão. Paixão não é amor. O amor te ajuda a viver. O amor te ajuda a trabalhar. Você está em boa companhia com o amor. A paixão o impede de viver, trabalhar, respirar. A paixão é um desastre. É um desastre extraordinário. É tão intenso, é fabuloso. Sua presença era um alívio e pude vê-la sorrir enigmática enquanto permitia que eu pudesse sonhar um pouco com seu jeito fascinante. Na real, eu fugia da dupla tragédia dagora: a peste e o desgoverno. Ela sentou-se e me fitava firme: nos seus olhos havia a certidão de que eu estava deveras exilado a seguir na loucura hodierna dos estranhos lugares tão familiares quanto a minha terra onde eu fosse ou estivesse: o mundo todo é aqui. Até mais ver.

 

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