TRÍPTICO DQP –
Trevas da noite no céu do dia & vice-versa... – Ao som da pianista austríaca Emma Schmidt, interpretando obras de Busoni, Alban Berg e Schoenberg no álbum 3 Piano Pieces (Naxxo, 2015). – Sempre
tive a impressão de que sou o que escapuliu do
vão de quatro paredes e pernas no meio destes atordoados dias. Desde quando
seja lá o que for dos caminhos inventados pelas palavras, atento a cada
instante, o voo. É como se todo dia fosse véspera de um cataclismo e nada desse
por conta, porque um holocausto silencioso e nada suave em sua ameaça. Minhas lembranças
são como retratantigos na fabulação livre e sei, cioso em toda parte me
espalhei pelas ruas e túmulos, entre vivos e mortos – mais mortos que vivos,
eram ou são, não sei -, corpestranhos que professam seus repúdios de nada, soterrados
pelos desmandos e complôs. Quão vão tudo se parece e não exagero nem
superestimo, muita confusão entre a tenacidade e a intolerância, ceticismo e
rancor (e o meu nome escondido na boca dum sapo qualquer, disseram e me rio). Na
verdade, mais um momento interrompido – para quem lia O elogio ao ócio (GMT, 2002), de Bertrand Russel: A ideia
de que os pobres devem ter direito ao lazer sempre chocou os ricos... O
trabalho mantinha os adultos longe da bebida e as crianças afastadas do crime...
Eu penso que o fato de se permitir que essas pessoas sejam ociosas não é nem de
longe tão nocivo quanto o fato de se exigir dos assalariados que escolham entre
o sobretrabalho e a privação... -, era um zunzunzum a tratar de Emma. Quem?
Alguém apontou um saco cheio, logo ali abandonado. Aproximei-me e eram publicações,
capas duras, brochuras. Logo deu pra ver o volume da Crônica de Lúcio Cardoso; e, ao remexer hesitante, entre outros, logo embaixo o Diário dele. De quem seria? Eram muitos.
Mexer não devia, toda precaução. Alguém havia esquecido ali num canto alguns
livros, ou jogado no lixo, parece – era prática que se tornou costumeira no
país. Curioso, procurei por quem perguntar a posse daquilo. Ao invés disso, o
que ouvi foi a respeito de Emma. De novo, quem? Saí acompanhando e constatei
que não era a idolatrada ativista
Goldman, nem a Bovary de Flaubert, era outra. Ora, quem? Era uma tal que se passava por Schmidt – só
depois soubera, na verdade Anna Ecklund
(1882-1941) -, que julgavam possuída por espírito maligno, ou coisa do gênero. Vôte!
Disseram chamar por não sei quem, enquanto repetiam que era a Banga da Besta que reapareceu e havia
endoidecido. De novo? Esse povo crédulo inventa cada coisa. Ah, como tudo anda
tão confuso, de perder o fio. Aos sons e gemidos, apareceu-me a poeta argentina,
Alicia Dujovne Ortiz: Quando
a água / ferve / é / uma chuva calma que dura toda a / tarde mas / quando / o
azeite é / frito / é / um aguaceiro violento no verão grandes / gotas quentes
beijos de lábios que arrancam / os poros resposta de beijos grossos ou / gotas
de pele e ouço / oh eu ouço a / tempestade das cebolas fritas o gemido da /
carne na grelha e às vezes das xícaras sim / das xícaras que docemente choram /
baixinho se eu as / encher de chá ai / meu Deus um ovo balança quando vou
quebrá-lo meu cotovelo na mesa esmaga / parentes e aumento da / dor / pela
minha casa pelos meus gestos uma voz conhecida / ! Devo dizer-lhe secretamente
que, / na minha infância, mal / conseguia segurar uma / maçã viva / demais com
minhas próprias mãos. Eu também, desde
criança tudo me escapa entre os dedos, ou dissolve de nem me dar conta, até o
sonho na perda da memória.
A vida não poupa
ninguém... – Imagem: Cassandra implora vingança de Minerva contra Ajax, do pintor
neoclássico francês Jerome-Martin Langlois (1779-1838)
– Não demorou muito e mais adiante, novamente
só no meio da loucura do trânsito inexorável, semáforos, frenagens, roncos de
motores, zoadas sonoras, e lá estava mesmo era envolvido na trama do Deus da carnificina (Âyiné, 2021), da
dramaturga francesa Yasmina Reza: crianças às agressões, os pais se envolvendo, incialmente,
apaziguadores, até o escandaloso irascível de nenhuma conciliação: desaforos, sangue
nas vestes, o risível e o patético, a ruína de gente e mundo. Para mim, ali a Loucura repulsiva, como se eu estivesse deveras nas cenas adaptadas por Polanski do teatro dela: aqueles que
não se refazem ou não conseguem superar suas perdas e derrotas. Tento por todos os meios poupar a mãe dos salafrários e
dos néscios, sobreviventes do genocídio como eu, quase impossível. Ou melhor, tal
como Sobre
nossa moral poética, do poeta
salvadorenho Roque Dalton: Não confundir, somos poetas que escrevem / da clandestinidade em que
vivemos / Não somos, pois, cômodos e impunes anônimos: / de frente estamos
contra o inimigo / e cavalgamos muito perto dele, na mesma trilha. / E o
sistema e os homens / que atacamos através de nossa poesia / com nossa vida
lhes damos a oportunidade de que sejam cobrados / dia após dia. Sim, no fim é tudo muito tristalegre, confusainda, para
quem já foi longalém: ainda sofro porque sei que tudo passa, nenhuma dor é
maior que a esperança. Esta cidade é a minha – um hospício bizarro a céu aberto
-, e algo me diz que ela não mais existe.
A
mulher-biblioteca... – Imagens:
Arte da artista Ana Santiago. - Desfiava
então fiapos de sonhos e afazeres por trezentas vezes tantos dias de não deu ou
deu não e extrema solidão. Porque a vida é o que vem depois de ser feliz na
grama molhada com o cheiro de coisas agradáveis, até que enfim! E soletrava o
nome de tudo que via, o mistério de cada ser e objetos. E a artista que soubera,
repentinamente emergiu vigorosa e linda, como se me convidasse pelas dependências
do seu ateliê. E fui, entrei e era tudo muito belo e ela me ofertou uma rosa e
era o poema (para Marie) do poeta
irlandês Seamus Heaney (1939-2013): Amor, aperfeiçoarei para você o menino / Que em meu cérebro com
diligência manheira / Cava com pá pesada e faz com relva arrimo / Ou patinha no
esterco de funda caleira. / Todo ano eu semeava o metro de jardim. / Com
camadas de céspede o muro eu erguia / Para ter distantes galinhas e bacorim. /
Todo ano, à entrada deles, o monte ruía. / Ou no lodo sugante eu chapinhava /
Com gosto e representava fluidez da caleira, / Mas sempre meus bastiões de
argila e vasa / Rompiam-se com a vinda da chuva-criadeira. / Amor, aperfeiçoe
para mim este menino / De estreitos e imperfeitos limites quebrando ao léu: /
Dentro em novos limites agora, ordene o domínio / E quadre o círculo: quatro
paredes e um anel. Fiquei comovido e, ao mesmo tempo, surpreso: dos olhos dela os seus quadros e cerâmicas, cores e risos,
e eu me deliciando de sua profusa arte no sorriso poético dos seios de versos e
páginas que descobriam seu ventre e coxas e pernas e livros - na minha cabeça
ela era bailarina estadunidense Trisha Brown (1936-2017)
dançando nua para dinamitar meus pensamentos e emoções. E com a oferta de suas
mãos livros emergiam e ela, a mulher-biblioteca, a me dispor do que jamais saberia
de todas as coisas e me rendia em lê-la e tudo o mais, até detectar entre os
volumes os 31 livros de poemas de Vital Corrêa de Araújo (entre eles, eu
vi Revérberos do sal sublevado e Céu – estábulo de relâmpago), os 30
livros de Admmauro Gommes (entre
eles Cláudio Veras e a alógica poesia de
Vital Corrêa de Araújo e Vate Vital:
aspectos da obra poética de Vital Corrêa de Araújo), e muitos outros que me
ensinaram ser a vida uma pausa de ondas e luto pelos devires e nada mais
restava a não ser inteiro na íntegra gratidão daquele momento. Até mais ver.
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