PASTORIL DO
RABECA - É solstício de verão, festa na praça: é hora do rancho alegre de
meninas no folguedo natalino, é hora do Pastoril, do Auto de Natal que começa
diante do presépio, com a entrada do Pastor e da Diana, pedindo licença e cantando:
Meu São José / Dai-me licença / Para o
Pastoril entrar / Viemos / Para adorar / Jesus nasceu para nos salvar. Ali os pastores visitam o estábulo, levando as suas ofertas
e seus pedidos de bênçãos. As pastorinhas, cada uma mais lindinha com suas
saínhas curtinhas mostrando a bunda-rica no vaivém do gingado, iniciam a jornada
pelas florestas, desertos, planícies – correm toda sorte de perigo, até de
serem atacadas por maldosos das cercanias -, seguem para Belém entoando seus cantos, embalando suas danças com loas ao Deus
Menino – como é lindo o bailado delas, cada lapa de perna, cada lapa de coxa,
chega dá gosto de ver aquilo tudo se movendo pra endoidar as bolas dos olhos,
um estrupício de belezura! Vixe, quanta boniteza! Elas formam cordões que disputam a atenção de todos: Viva o cordão
encarnado! Viva o cordão azul! E cada um vai ora é pro azul, depois pro
encarnado – a gente devia de levar tudinho pra casa, pronto tudo resolvido, era
não? Aí outra bonitona aparece carregada na maquiagem: eita mulher bonita
danada! Essa eu queria dona lá do meu mocambo, ora! É a Diana com suas vestes
metade azul, metade vermelha, dançando dum lado pro outro e mexendo com o
coração da gente! Ela equilibra a jornada cantando: No deserto, no prado, nos montes / Nas
montanhas, no vale: uma flor / Sou pastora aqui desta lapinha / Pelo meu trajar
conhecerão quem eu sou / Sou pastora me chamo Diana / Sou Diana dizei muito bem
/ Sou a deusa desse pastoril / Vim dos vales de Jerusalém / Em pastora riqueza
não tenho / Em pastora riqueza não há / Em pastora apenas divirto /
Principalmente noite de Natal. U-huuuuu! A
plateia vai abaixo! Aí o Velho Rabeca aparece para atiçar a plateia: Qual que é
a mais bonita? É essa? É esta? É aquela? Éééééééé! Do jeito que entrou ele
saiu, sumiu, e todos passam a ser guiados pelo Belo Anjo na
1ª Jornada: a glorificação do mistério da encarnação, seguindo o caminho de
Belém: Eu
como sou o Anjo / Por esses campos venho saindo, venho saindo / Ando à procura
de uma rosa / Que me anda perseguindo, perseguindo. / Eu vou chamar / As minhas
companheiras / Para com elas / Formar a brincadeira. Todos então cantam: Vinde, vinde moços e velhos / Venham todos apreciar / Como isto é bom /
Como isto é belo /Como isto é bom, é bom demais / Olhai, olhai e examinai /Como
isto é bom, / é bom demais. / O azul
brilha no céu /O encarnado brilha sem véu. O Velho Rabeca reaparece: É tudo
bonito ou não é? Éééééééé! Ai ele segreda: Mas parece que o Belo Anjo acende o
frosquete! Maior risadagem. Rabeca escapole e o Anjo comanda as pastorinhas, seguem a Estrela Guia, até toparem com Lusbel – arreda,
Satanás! – tentando as pastoras e falando pra Cigana do Egito: Cigana da Pérsia /
Eu vou te falar / Se queres guia / eu venho te guiar. Ele, então, cerca, futuca, atenta e tudo faz para
vergar a Cigana. Ela responde: Eu não
quero tua guia / Nem também quero te falar / Só quero ver a Jesus, / Só quero
ver a Jesus / A José e a Maria. Não obtendo êxito, Lusbel então investe
numa pastora: Ouve linda pastora / o que
tenho pra falar/ Se queres guia / Eu venho te guiar / Te darei um tesouro /
Levantarei montanhas de ouro / Se queres ser rainha / Diz-me só que és minha.
Ela fica toda encantada com as promessas, cai nas gaitadas, manhosa, ajeitada, até
que a Cigana aparece e cochicha ao seu ouvido. A Pastora responde pro Lusbel: Eu não quero teus tesouros, / Nem também tua
riqueza. / Nestes campos onde habito, / Só pertenço à Natureza. / Aquela
estrela é que nos guia / É que nos serve de guia, / Para irmos louvar /A José e
a Maria. Todos então cantam: Avante
pastora bela, pastora bela, / Avante no seu cordão, no seu cordão / Faceira no
seu pisar, no seu pisar / Firmeza no coração, no coração. E Lusbel tenta outra
formosa Pastora, o pastor intervém, ele se vira para outra agora seduzida por
todas as investidas às gargalhadas, quase já se entregando, por outra é logo
puxada. Lusbel perde a paciência e vai de um lado a outro, do azul ao
encarnado, tentando as Pastorinhas que seguem a Cigana levada por uma
borboleta, até chegarem a uma Camponesa que acolhe a todos com magia encantadora repleta de graça e muita alegria. Lusbel
está invocado e o Velho Rabeca se achega: Tu não tem sorte pra nada, né? E se
ri do Lusbel que está aperreado, já fulminando, saí muito enfesado. O Velho
Rabeca então diz: Quem não sabe agradar, nunca vai nada ganhar! A jornada segue
firme acompanhando a Mestra, chega mais
a Contra-Mestra para proteger a Libertina que está prestes a ser tomada pelas garras
de Lusbel – a Libertina, coitada, quase seminua pelas garras do safado, quase é
por ele consumida, de não restar mais nada. Aí todos acodem em seu auxílio,
enxotando o malquisto que arriba para nunca mais voltar. Todos cantam para
protegê-la e seguem rumo pra Belém, enquanto solta chistes e malícias o Velho
Rabeca no tablado da praça pública. E todos continuam cantando até o fim: Jesus nasceu para nos salvar. Quem viu, viu; quem não viu, não vai ver mais! © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com o cantor
e compositor Elomar Figueira de Mello com seus álbuns Das barrancas do
Rio Gavião & Fantasia leiga para
um rio seco; e com a premiada violinista clássica letão Baiba Skride interpretando
Violinkoncert 33 de Carl Nielsen & Concert Reine Elisabeth de Tchaikovski. Para conferir é só ligar o
som e curtir.
PENSAMENTO DO DIA – Nenhum homem pode ser um bom professor se
não tiver afeto por seus alunos e um genuíno desejo de dividir com eles o que
acredita ser de valor. Pensamento do filósofo e matemático britânico Bertrand
Russel (1872-1970). Veja mais aqui, aqui & aqui.
OS CONDENADOS DA TERRA – [...]
é necessário decidir a partir deste
momento uma mudança de rumo. A grande noite em que estivemos submersos, é
preciso sacudi-la e sair dela. O novo dia que já se descobre, deve
encontrar-nos firmes, despertos e resolutos. Devemos esquecer os sonhos,
abandonar as nossas velhas crenças e as nossas amizades anteriores. Não percamos
o tempo em estéreis litanias ou em mimetismos nauseabundos. Deixemos essa
Europa que não deixa de falar do homem ao mesmo tempo que o assassina onde quer
que o encontra, em todas as esquinas das suas próprias ruas, em todas as partes
do mundo. Há séculos que a Europa deteve o progresso dos outros homens e os
submeteu aos seus desígnios e à sua glória; há séculos que, em nome de uma
falsa «aventura espiritual» sufoca quase toda a humanidade. Olhem-na hoje a
oscilar entre a desintegração atómica e a desintegração espiritual. E, sem
dúvida, no seu interior, no plano das realizações, pode dizer-se que triunfou
em tudo. Trecho extraído da obra Os
condenados da terra (Civilização Brasileira, 1968), do psiquiatra, filósofo
e ensaísta francês da Martinica, Frantz Fanon (1925-1961), tratando
acerca da violência no contexto internacional, grandezas fraquezas da
espontaneidade, fundamentos recíprocos da cultura nacional e das lutas de
libertação, modificações afetivo~intelectuais e perturbações mentais após a
tortura, perturbações psicossomáticas e acerca da impulsividade criminal do
norte~africana à guerra de libertação nacional, entre outros assuntos.
COSMOPOLITISMO DO POBRE - [...]
Caso a educação não tivesse sido
privilégio de poucos desde oSj tempos coloniais, talvez tivéssemos podido
escrever de outra maneira o panorama da Literatura brasileira contemporânea.
Talvez o legítimo não tivesse tido necessidade de buscar o espúrio para que
este, por seu turno, se tornasse legítimo. Talvez pudéssemos nos ater apenas a
dois princípios da estética: o livro de literatura existe ut delectete ut m
oveat (para deleitar e comover). Pudéssemos nos ater a esses dois princípios, e
deixar de lado um terceiro princípio: ut doceat (para ensinar). É esta, e não
outra, a maneira como nos toca narrar-lhes neste dia primaveril o panorama da
literatura brasileira contemporânea. [...]. Trecho extraído da obra O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural (UFMG, 2004), do escritor e ensaísta Silviano Santiago.
MANIFESTO SOBRE A VIDA DO ARTISTA - Conduta
de um artista em sua vida: um artista não deve mentir para si mesmo ou aos outros, um artista não
deve roubar idéias de outros artistas, um artista não deve comprometer, para si
ou em relação ao mercado de arte, um artista não deve matar outros seres
humanos, um artista não deve se fazer de ídolo, um artista não deve se fazer de
ídolo, um artista não deve se fazer de ídolo. Relação
de um artista para sua vida amorosa: um artista deve evitar se apaixonar por um outro artista, um artista deve
evitar se apaixonar por um outro artista, um artista deve evitar se apaixonar
por um outro artista. Relação de um artista para o
erótico: um
artista deve desenvolver um ponto de vista erótico do mundo, um artista deve
ser o erótico, um artista deve ser o erótico, um artista deve ser o erótico. Relação
de um artista ao sofrimento: um artista deve sofrer desde o sofrimento vem o melhor trabalho, o
sofrimento traz transformação, através do sofrimento de um artista transcende o
seu espírito. Relação de um artista para a
depressão: um
artista não deve estar deprimido, a depressão é uma doença e deve ser curada, a
depressão não é produtivo para um artista. Relação
de um artista ao suicídio: o suicídio é um crime contra a vida, um artista não deve cometer suicídio.
Relação de um artista para
inspiração: um
artista deve olhar profundamente dentro de si em busca de inspiração, os mais
profundo que olhar para dentro de si, mais universal que se tornem, o artista é
o universo. Relação de um artista para auto-controle:
o artista
não deve ter auto-controle sobre sua vida, o artista deve ter total
auto-controle sobre seu trabalho. Relação de um artista com
transparência: o
artista deve dar e receber ao mesmo tempo transparência significa receptivo, transparência
significa dar, transparência significa receber. Relação
de um artista para símbolos: um artista cria seus próprios símbolos, os símbolos são a linguagem de
um artista, a linguagem deve então ser traduzida, às vezes é difícil encontrar
a chave. Relação de um artista para o
silêncio: um artista tem que entender o silêncio, um artista tem que criar um
espaço de silêncio para entrar no seu trabalho, o silêncio é como uma ilha no
meio de um oceano turbulento. Relação de um artista à
solidão: um
artista deve dar tempo para os longos períodos de solidão, a solidão é
extremamente importante longe de casa, fora do estúdio, longe da família, fora
de amigos, um artista deve permanecer por longos períodos de tempo em
cachoeiras, um artista deve permanecer por longos períodos de tempo em vulcões
explodindo, um artista deve permanecer por longos períodos de tempo a olhar
para os rios corrida rápida, um artista deve permanecer por longos períodos de
tempo olhando para o horizonte onde o mar e o céu se encontram, um artista deve
permanecer por longos períodos de tempo a olhar para as estrelas no céu noturno.
Conduta de um artista em relação
ao trabalho: um artista
deve evitar ir para o estúdio todos os dias, um artista não deve tratar o seu
horário de trabalho como se fosse um empregado do banco, um artista deve
explorar a vida e trabalhar apenas quando surge uma ideia para ele em um sonho
ou durante o dia como uma visão que surge como uma surpresa, um artista não
deve se repetir, um artista não deve esgotar sua produção, um artista deve
evitar a sua poluição própria arte. Posses de um artista: monges budistas recomendam que o melhor é
ter nove posses em sua vida: uma túnica para o verão, uma túnica para o inverno,
1 par de sapatos, 1 tigela implorando por comida, uma rede mosquiteira, um
livro de orações, um guarda-chuva, uma esteira para dormir, um par de óculos,
se necessário – Um artista deve decidir por si mesmo os bens pessoais mínimo
eles devem ter, um artista deve ter mais e mais cada vez menos. A
lista de amigos do artista: um artista deve ter amigos que elevam seus espíritos. A
lista de inimigos de um artista: os inimigos são muito importantes, o Dalai Lama disse que é fácil ter
compaixão com os amigos, mas muito mais difícil ter compaixão com os inimigos,
um artista tem que aprender a perdoar. Diferentes cenários de
morte: um
artista tem que ser consciente de sua própria mortalidade. Para um artista, não
só é importante como ele vive sua vida, mas também como ele morre. Um artista
deve olhar para os símbolos de seu trabalho para os sinais de diferentes
cenários de morte. Um artista deve morrer conscientemente, sem medo. Diferentes
cenários de funeral: um
artista deve dar instruções antes do funeral para que tudo seja feito da
maneira que ele quiser, o funeral é obra do artista. Sua última arte antes de
sua partida. Manifesto da artista
performativa sérvia Marina Abramović. Veja mais aqui & aqui.
TODOS OS HOMENS SÃO MENTIROSOS - [...]
Pois eu mal o conheci ou, se o conheci,
conheci-o de maneira superficial. Aliás, para ser franco, eu não quis
conhecê-lo de verdade. Quer dizer, eu o conheci bem, confesso, mas de uma forma
distraída, a contragosto. Nossa relação (por assim dizer) tinha alguma coisa de
cortesia oficial, dessa nostalgia compartilhada e convencional dos expatriados.
Não sei se você me entende. O destino nos uniu, como se diz, e se você me
obrigar a jurar, com a mão no peito, que éramos amigos, serei forçado a
confessar que não tínhamos nada em comum, a não ser as palavras República
Argentina gravadas em letras douradas no passaporte. [...] Garanto que eu não fazia nada para
incentivá-lo. Ao contrário. Mas talvez por imaginar em mim, seu concidadão, uma
solicitude inexistente, ou por ter decidido chamar de sobriedade sentimental
minha óbvia falta de afeto, o fato é que ele me aparecia em casa a todo
instante do dia e da noite, e não parecia perceber que o trabalho me
pressionava, e que eu precisava ganhar a vida, e começava a falar do passado
como se o fluxo de palavras, de suas palavras, recriasse toda uma realidade que
ele sabia ou sentia, apesar de tudo, estar irremediavelmente perdida. Em vão eu
tentava convencê-lo de que eu não era um exilado; de que com dez anos a menos
do que ele eu partira da Argentina quase adolescente e a fim de viajar; de que,
depois de lançar raízes tímidas em Poitiers, eu me instalara por um tempinho em
Madri para escrever tranquilo, apesar do inevitável ressentimento dos
argentinos contra a capital da Mãe Pátria, sem, portanto, resignar-me ao clichê
de morar em San Sebastián ou Barcelona. [...]. Trechos extraídos da obra Todos os homens são mentirosos (Compa
nhia das Letras, 2010), do escritor, tradutor e editor argentino Alberto Manguel, contado a história de
um escritor argetino que se suicidou em Madri, e um jornalista quer escrever a
respeito dele, embasado no depoimento da última mulher, de um ex-colega, de um
exilado e do autor.
LADAINHA - 47: - Do jeito que as coisas andam / áridas,
sem gelo, pra trás / não vou voltar da rua / trazendo pão / Mas pode ser que o
tempo mude / e amanhã eu acorde / com vontade / de fazer um suco / Sofro de
dores barítonas / dois dias sem abrir a boca / minha cabeça tá um baile / de
ácaros / Não sei pra onde vai aquele trem / mas meu nariz já consegue filtrar /
os segredos que as rosas / trocam no vento / É que eu estou de férias / poderia
até organizar / um batizado, fingir / que adoro camarão / Se você pensar não é
/ todo mundo que tem primos, os sisos, / conta no banco e um colchonete / de
solteiro para visitas / Por isso vou fazer o que sempre quis / comprar um
caixote fechado de uvas / e passear de caminhão / nas vias proibidas. Poema
recolhido da obra Ladainha (Record, 2017), da poeta e tradutora Bruna
Beber. Veja mais aqui.
COLETIVO PI
Coletivo Pi foi fundado em 2009, por
Pâmella Cruz e Priscilla Toscano, e realizou intervenções urbanas efêmeras utilizando
diferentes linguagens, tais como a performance, o teatro, a dança e as artes
visuais, para compor suas criações. Um dos seus objetivos era pensar e realizar
intervenções e performances em espaços urbanos reafirmando a rua e locais
utilizados cotidianamente pela população como espaços da experiência e da
criação. No início de 2014, também passaram a integrar o PI os performers Chai
Rodrigues, Jean Carlo Cunha e Mari Sanhudo. Com uma trajetória marcante no
cenário brasileiro da Intervenção Urbana, em 2016, encerrou suas atividades.
Veja mais:
O Pastoril do Doro aqui.
&
A ARTE DE THOMAS
COUTURE
A arte do pintor
e professor francês Thomas Couture
(1815-1879).