terça-feira, dezembro 26, 2017

HARVEY, BOURDIEU, AMADO NERVO, BANCQUART, RAMEAU, PARMÊNIDES, LOUI JOVER, PI-HSIEN CHEN, SCHNEEMANN & XIMÊNIA

SONHOS & SEGREDOS DE XIMÊNIA - Imagem: Arcadia, Loui Jover. - Ximênia sonhou estranho sonho: meninos e meninas clamavam chorosas pela mãe e era ela, a mãe de todos aqueles órfãos. Os abortos doeram pesados, o padre no púlpito condenou as mães que negaram seus filhos, agora o pastor aos berros pelos altofalantes, como pode, ela se via culpada por tudo que rejeitara das escapulidas acossadas pela volúpia, dos indevidos prazeres incendiários, não podia engravidar, todos reprovariam, não tinha ninguém para apoiá-la, até mesmo a quem amava zarpara ao saber da prenhez, e ela sozinha, como agora, culpada pelas perdas, por não ter pensado direito, por se entregar fácil ao primeiro carinho e tesão embaixo da saia, via-se culpada por todos os erros, os seus e os da humanidade, culpada pelas doidices do sexo, pelas bombas explosivas ceifando inocentes, pelas misérias de filhos que perderam seus pais, pelas guerras matando os convocados e pela queda do homem, tudo culpa dela pela costela tomada, o que foi que eu fiz, meu Deus, o choro irrompia feito uma tempestade avassaladora. Desfaleceu de sentir uma agonia medonha por dentro, menstruou de repente e o sangue revelava sua nojeira e culpa, por isso sangrava e muito, todo mês, ah, que fazer, e passou uma noite e um dia, sangreiro entre as pernas e caminhos, dois dias assim, três, quatro, derramava profusamente, quinto dia e vertia sangue cálido, enegrecido, quando isso vai parar, sexto dia e já se acostumava vazar de suas entranhas aquela sina de mulher. Foi então se arrumar, vestiu-se como nunca, escolhendo a dedo a roupa com odor de naftalina tirada do baú nunca mais vasculhado, quase não cabia dentro do vestido de tão apertado, anos guardado, meia-calça, bijouterias, maquiagem e o espelho, não, não era ela, nunca seria, tudo fora do lugar, reprovável, indevido, desvestiu-se de ficar nua por horas encostada ao canto do quarto, pele, unhas e desprezo. O que fazer da vida? Seus sonhos, seus segredos guardados jamais reveláveis, segredos dela, só dela mais ninguém. Segredos que regorgitavam, vinham à tona desavisadamente e até chegavam vivos na ponta da língua de quase vomitá-los todos duma vez, mas não, seria demais, nada disso, e falava sozinha, falava por falar sem querer dizer o que realmente estava pronta pra dizer, não era nada do que dizia, nada disso que eu queria ter dito, era outra coisa, até me esqueci do quê, ah, vou me arrumar e pegou o primeiro vestido e saiu descalça jogando tudo pra cima, seios e ventre aos ventos, não sei o por quê de ainda estar aqui, ora, ora, já devia ter dado cabo da minha vida, pegado o rumo, sumido, ah, se eu pudesse, por que não posso? Claro que posso ir além do portão, e sentiu a chuva e corpo molhar-se de deixar às vistas sua nudez incontrolável, tateando sua carne reviu o passado, quantas e tantas coisas que vivera, melhor pensar no futuro, mas como? O futuro não existe, ou é agora ou nunca. Como era linda a infância, as bonecas cuidadas, os presentes que ganhava e a mãe mandando prender os cabelos a colecionar diademas, tiaras, só dispunha de berilos e bobes, queria a liberdade dos cabelos soltos, esvoaçantes, ah, quem dera cabelo bonito como o da tia Meraldinha, aquilo sim é que era cabelo bonito, aliás, ela era toda bonita, parecia uma daquelas princesas encantadas, queria ser ela, ser como ela, viver a vida dela, isso sim, ah, queria era voltar a ser menina, ah se encontrasse os grãos de feijão da promessa de João e Maria, e enquanto devaneava batia uma tristeza enorme, um filme passava na sua cabeça, o quintal, as pisas, reprimendas, fugidas, até lembrar da morte de ontem da amiga por engano, carta que errou de endereço, era pra vizinha aquela depravada, não pra ela, o marido nem viu quem o destinatário, ligou-se no conteúdo mencionado pelo remetente anônimo, a fúria cegou-lhe, não precisava matá-la daquele jeito, brutalidade sem precedentes, agora, ela morta, enterrada inocentemente; ele, preso, condenado ao opróbrio público, pela mão pesada da lei, inocentemente, tudo por engano, como pode? Chorou e saiu do quintal à varanda às lágrimas, vai e volta casa adentro pranto recorrente, para no portão enxugando os olhos que estão na rua, estala os dedos, dissimula, ronrona, se recompõe, vê-se sozinha desde sempre, quase morre afogada na sua pungente constatação. Até viu seu rosto na poça d’água, correu apressada pro espelho, está na cara: o espelho me condena, não ignora a causa, apenas disfarça, faz que não sabe. Bem que podia ser mais bonita, não era; bem que podia ser atriz de televisão com aqueles galãs das novelas, glamour, felicidade. Ah, não, minha vida é nada, reduzida a isso, só preparar café da manhã, almoço, janta, servia mais pra quê mesmo, hem? Servia apenas para servir, levar beliscão ou tapinha na bunda avisando que mais tarde seria abatida pela violência do seu dono e feitor, mais nada, só queria seus favores de Amélia, casa limpa, roupa lavada, disposição de abrir as pernas e escancarar todo corpo nu pra satisfazer as vontades explosivas dele imprevisível e desconfortável, só quando ele queria e pronto, sempre só quando queria e depois, feito, servido, saciado, virar de costa, ufa!, e livrava-se da obrigação de ter que abrir as pernas, facilitar as coisas, deixar que faça o que quiser, como quiser, não importa o que sinta ou possa, morto de fome e sem saber da sua nem de seus desejos e sonhos, é ele assim que chega esbaforido, fedendo, se cagando ou se mijando ou de pau duro remexendo suas entranhas, aos puxavanques, aos empurrões, a lei é dele, a vontade é dele, tem de tapar o nariz para ver se morre, cerra as pálpebras, como pode tudo isso, ah, essa a minha vida, por acaso isso é vida, e o vuque-vuque, imagina o príncipe a raptá-la e às sacudidas inevitáveis o trote do garanhão e ela estuprada deliciosamente por quem ela sonha, investidas às pressas pela fuga, o sexo dilatado e o futuro da felicidade, caindo na real e tudo despenca com o gozo dele, nem deu tempo pro prazer dela, ele vira as costas e ronca como quem não deve nada e ela sonhando com o noivado engalanado que nunca tivera, a cerimônia na igreja, o véu e grinalda, nada disso, sonhos que se espatifam como vidro espalhado no assoalho da imaginação, ah, isso é que é vida, apenas uma bobabem, sonhava coisa com coisa, via-se a si própria voando nos sonhos e acenando sorrindo pra ela mesma, que coisa! Ah, como queria voar e sorrir entre as nuvens, até via os urubus na festa das carniças zoando pra ela, que bom, aqui sou notada, o voo o seu refúgio, sonhando de voar a memória da infância em que podia de tudo, era só fechar os olhos e tudo acontecia sem pé nem cabeças e onde quisesse e como, era bom sonhar de olhos abertos, isso podia, ninguém nem nada que não quisesse, só o que queria e era bom sonhar, cônscia do sonho, e aprendeu a sonhar o que queria e sonhava todo dia, acordada ou dormindo, sua vida era um sonho que ela inventava e reinventava ao sonhar e vivia. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a ópera e héroique ballet Les Indes Galantes (O Amorous Índias, 1735), do compositor do período Barroco-Rococó e maior expressão do Classicismo musical francês Jean-Philippe Rameau (1683-1764), com libreto de Louis Fuzelier, original harpsichord transcritions performed by Kenneth Gilbert & Variations Goldberg Bach, Bethoven op. 26 e Sonata KV 279 de Mozart com a pianista taiwanesa Pi-Hsien Chen. Para conferir é só ligar o som e curtir.

PENSAMENTO DO DIA – [...] concedei-me apenas uma certeza! E que ela seja uma tábua no mar da incerteza, apenas larga o suficiente para permanecer sobre ela. Tomai para vós tudo o que vem a ser, o que é exuberante, multicolorido, florescente, enganador, excitante e vivo; e dai-me apenas a única, pobre e vazia certeza. Oração do filósofo pré-socrático, matemático e poeta grego, Parmênides de Eleia (530-460aC.). Veja mais aqui, aqui e aqui.

A PRODUÇÃO CAPTTALISTA DO ESPAÇO – [...] não podemos perder de vista os insights marxistas essenciais. De um modo ou de outro, o Estado capitalista precisa desempenhar suas funções básicas. Se não conseguir fazer isso, então esse Estado deve ser reformado, ou então o capitalismo deve dar lugar a algum outro método de organizar a produção material e a vida cotidiana [...] investigar o papel que o processo urbano talvez esteja desempenhando na reestruturação radical em andamento nas distribuições geográficas da atividade humana e na dinâmica político-econômica do desenvolvimento geográfico desigual dos tempos mais recentes [...]. Trechos da obra A produção capitalista do espaço Annablume, 2005), do professor e geógrafo britânico marxista David Harvey, tratando sobre a reinvenção da geografia, a geografia da acumulação capitalista, a teoria marxista do Estado, o ajuste espacial, a geopolítica do capitalismo, do administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo tardio, a geografia do poder de classe e a A arte da renda: a globalização e transformação da cultura em commodities. Veja mais aqui.

MEDITAÇÕES - [...] Aprendemos pelo corpo. A ordem social se inscreve nos corpos por meio dessa confrontação permanente, mais ou menos dramática, mas que sempre confere lugar importante à efetividade e, mais ainda, às transações afetivas com o ambiente social [...] é preciso deixar de subestimar a pressão ou a opressão, coninuas e por vezes desapercebidas, da ordem ordinária das coisas, os condicionamentos impostos pelas condições materiais de existência, pelas surdas injunções, e a “violência inerte” (como diz Sartre) das estruturas econômicas e sociais e dos mecanismos por meio dos quais elas se reproduzem [...] Os agentes sociais, bem como as coisas por eles apropriadas, logo constituidas como propriedades, encontram-se situados em um lugar do espaço social, lugar distinto e distintivo que pode ser caracterizado pela posição relativa que ocupa em relação a outros lugares (acima, abaixo, entre, etc) e pelas distância (por vezes dita “respeitosa”: e longínquo reverentia) que o separa deles. Por conta disso, são passíveis de uma analysis situs, de uma topologia social. [...]. Trechos de Meditações pascalianas (Bertrand Brasil, 2001), do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). Veja mais aqui.

O FORMIGÃO – [...] Mais longe, na falda de umas colinas, sob o bosque de jericos, uns arrieiros sesteavam com suas mulas, cantando em coro apimentadas coplas, que os ouvidos do rapaz distinguiam claramente: Você diz que me quer muito; / não me ponha tão em cima, / que as folhas desta árvore / não durarão toda vida. [...] Caíra de joelhos, com seus agasalhos, o caderno que estava lendo, e a palvra Orígenes, título do capítulo citado, tornou-se o alvo do seu olhar. Uma ideia espantosa surgiu então em sua mente. Era a única tábua de salvação... A moça estreitava mais e mais o amoroso laço e deitava a alma pela boca, em beijos. O formigão segurou com punho crispado a espátula e a agitou durante alguns momentos, exalando um gemido... Assunção viu correr uma torrente de sangue, soltou um grito e afrouxou os braços, deu um salto para trás, ficando em pé a dois passos do ferido, com os olhos imensamente abertos e fixos, naquele rosto que, contraído pela dor, mostrava, no entanto, um sorriso de triunfo... [...] Trechos do conto do escritor mexicano Amado Nervo (1870-1919). Veja mais aqui.

POR UM ESTÁGIOSonho que moro / com um esquilo, lá na sua toca / no aconchego do seu pelo quente / o cavalo da noite / não me atropela / nenhuma fronteira / entre mim e a casca / quando acordo / lembro da minha carte de menor durante a guerra / com um passaporte para ir / de uma metade da França à outra, a casa do meu avô / pensonas cercas de arame farpado sobre toda a terra, hoje / gostaria de voltar / à toca do esquilo / e também abolir / dentro de mim as fronteiras / fazer um estágio de organismo simples. Poema da escritora, ensaísta e critica literária francesa Marie-Claire Bancquart.

A ARTE DE CAROLEE SCHNEEMANN
A arte da artista visual estadunidense Carolee Schneemann, caracterizada pela pesquisa sobre tradições visuais, tabus e o corpo humano nas relações sociais, autora de obras como Cézanne, She Was a Great Painter (1976) e More than Meat Joy: Performance Works e Selected Writings (1997), entre outras.

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A ARTE DE LOUI JOVER
A arte do pintor, ilustrador e fotógrafo australiano Loui Jover.
 

MARIA RAKHMANINOVA, ELENA DE ROO, TATIANA LEVY, ABELARDO DA HORA & ABYA YALA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Triphase (2008), Empreintes (2010), Yôkaï (2012), Circles (2016), Fables of Shwedagon (2018)...