domingo, novembro 21, 2021

ALASDAIR GRAY, ELSE LASKER-SCHULER, EDWARD ELGAR &TONY ANTUNES.

 

 

TRÍPTICO DQP – Mameluquices mulatíndias... - Ao som do Concerto para Cello e orquestra em Si menor, Op. 85 (1919 – CBS, 1976), do compositor inglês Edward Elgar (1857-1934), na interpretação da violoncelista Jacqueline du Pre com a Orquestra Sinfônica de Londres, regência de Daniel Barenboim. – Videncruzilhada, tomei a direção da venta, como sempre. Andejo e só dei fé duma hestória: a ameaça nas imediações de uma certa bonitona, a mais bela de todas quanto já tivesse. Hem? Todos os homens, não tinha um só que a visse e não endoidasse de paixão. Mesmo? Disseram chegada das bandas da Paraíba e tinha lá um feitiço que era segredo só dela. Oi? Aos cochichos: ela vira a onça que matou a menina que foi criada pela velha. É? Ninguém escapa. Como assim? Era uma vez uma menina que cresceu e queria ganhar o mundo, mas não tinha nada. Pediu a velha que lhe desse e, a coitada, só tinha um carvão: eu quero. Com a posse, pé na estrada. Depois de muito andar ela encontrou um ferreiro que do carvão precisava e ela deu. Depois pediu de volta, era tarde, gastou-se e não mais havia. O ferreiro então deu um machado e ela ganhou o mundo. Adiante estava um cancão e precisava do machado para bater pau e ela deu pra ele tirar mel. Foi pá e pei, nisso o machado se quebrou e ela queria de volta: só tenho mel. Então, me dê. Picou a mula e, noutra volta, se deparou com a lavadeira com a trouxa no rio comendo feijão. Ao ver-lhe o mel às mãos dela, pediu e ela deu. Acabou-se o que era doce e ela queria de volta: deu-lhe um pão de milho e picou a mula. Lá na curva da rodagem, um velho pediu-lhe esmola e ela deu o pão de milho, logo devorado. E agora? Só tenho esse ferrão de acuar gado. Ora, quero. E na beira dum cercado, um vaqueiro aperreado para juntar a boiada, ele pediu pra ela e, sem cerimônia, deu: cutucou daqui, dali, e o ferrão partiu-se. E agora, quer uma vaca? Quero. Para lá e para cá com sua vaquinha, a onça apareceu e devorou: Onça, eu quero minha novilha de vaca, novilha que o vaqueiro me deu. Vaqueiro quebrou ferrão, o ferrão que o velho me deu. O velho comeu o pão de milho, o milho que a lavadeira me deu. Lavadeira comeu o mel, o mel que o cancão me deu. Cancão quebrou machado, machado que ferreiro me deu. O ferreiro gastou meu carvão, carvão que minha madrinha me deu. A onça nem pestanejou, lambeu os beiços e a menina no bucho, palitando os dentes, ancha. Foi aí que a fera, sem sabe como, virou uma moça bonita que vive por ai zanzando e seduzindo todos aqueles de juízo, só para endoidecê-los... Ouvia eu atento o relato, enquanto alguém desconhecido mencionou o poeta italiano Arturo Graf (1848-1913): A sabedoria e a razão, falam; a ignorância, ladra. Estranhei, desconfiado. Logo outro do meio deles sapecou Goethe: Não há nada mais terrível que a ignorância. Não falto algum injuriado, até quem invocasse Confúcio: A ignorância é a escuridão da mente! Outro mais desabusado cuspiu Pitágoras: Se me perguntar o que é a morte, respondo: a verdadeira morte é a Ignorância. Quantos mortos entre os vivos! Lá estava eu no meio de uma saraivada discordante de gente pia e incrédula, nem sabiam o que diziam, nem nada, só jogavam conversa fora, repetiam o que ouviram desde infância, apenas... Reproduziam do jeito deles, segundo eles... Foi aí que me apareceu o escritor escocês Alasdair Gray (1934-2019) que me puxou do lado: Não quero enfrentar este mundo, vamos voltar ao inferno que estou imaginando... Eu deveria ter mais amor antes de morrer. Eu não tive o suficiente... Depois de me conduzir para uma esquina na saída da localidade, ele me disse em tom confidencial: Trabalhe como se estivesse nos primeiros dias de uma nação melhor. E se despediu me livrando de zunzunzum tão discordante. Aproveitei a deixa, segui meu caminho...


 

O reencontro na ruína... – Imagem: arte do fotógrafo francês Lucien Clergue (1934-2014). – Andanças noitedia e se era ou não onça, na vera, não sei. O que sei de mesmo é que ao depará-la deu-se o reencontro: era a Vênus do Quintal. Lembra? Ora, se. E logo me disse toda cantatriz mexicana María Félix (1914-2002): Minha lenda começou a ganhar forma sem mover um dedo. A imaginação do público fez tudo por mim... E sorriu sedutoramente como se me revelasse seus segredos, abraçando-me para cochichar ao meu ouvido: Quando eu quiser, será pela porta grande. Não entendi a última frase sussurrada, sei apenas que levou por insólitas paisagens que mais pareciam as cenas do The Black Crown (1951) do Luis Saslavsky: era o milagre, disse-me e confessou: havia perdido a memória há muito tempo e só agora tomou ciência da razão disso: havia matado o marido. Ao me reconhecer tomara ciência de tudo. Para ela parecia que eu a havia curado, não sei, fato inexplicável. Logo fez-se em mim a La Doña – María Bonita. E me narrou detalhadamente sua turbulenta vida amorosa, casamentos desfeitos, de como se tornou a María de Todas las Marías e o motivo de todos cantarem para ela Je l'aime à mourir de Cabrel. Nada disso jamais poderia eu saber, há muito tempo ela havia se tornado apenas uma deliciosa lembrança que eu guardara para que a vida valesse a pena. Não sei se estava ali condenado ou absolvido, sabia apenas que estava agora enredado nos braços da Inés Rojas do La fièvre monte à El Pao, de Buñuel. De fato, em mim a febre aumentava mesmo porque a República do Pecado misturava histórias que me puxavam e, depois de tudo, era como se não mais confiássemos um no outro, enquanto fugíamos da ilha do ditador à beira de uma guerra civil, até chegarmos a uma praia deserta para me dizer que ela era a Diana do Safo’63 de Alcoriza e nos refugiamos ali. Sabia lá o que seria de nós ali isolados de tudo e de todos, só sei que ela me contou que lera a emocionante carta de Kierkegaard para Regine e se emocionou o panegírico apaixonado de Charlotte e Adam. Uma lágrima desceu e a enxuguei com o polegar. Fitou-me, chorosa e desabafou: havia detestado a leitura do Geschlecht und Charakter (Losada, 2004), do misógino filósofo austríaco Otto Weininger (1880-1903), repetindo o que ele escrevera: Nenhum homem que pense profundamente sobre as mulheres mantém uma opinião elevada sobre elas. Ou os homens desprezam as mulheres ou nunca pensarão seriamente a respeito delas. Nossa! E prosseguiu protestando o fato de como ele se dedicara à entrega total aos imperativos da genialidade, suicidou-se aos 23 anos. Que tragédia! Para ela, a única coisa de relevante que ele deixara, tão somente foi o impacto que exerceu sobre Wittgenstein: Ver o mundo corretamente em silêncio. Quase sorrindo mencionou o silêncio dos versos do The Second Coming de Yeats: Falta convicção aos melhores / enquanto os piores estão cheios de apaixonada intensidade. Abraçamo-nos com a paradisíaca paisagem. Com o passar dos dias aquele lugar era o espetáculo dela nua e tive que veemente discordar do filósofo suicida que sentenciara: Uma figura feminina absolutamente nua deixa uma impressão de algo deficiente, uma coisa incompleta que é incompatível com a beleza. Ah, não! Prefiro o feitiço dela, mesmo que seja uma completa desconhecida, monstro disfarçado ou anátema indesvencilhável.

 


Prexelândio absoluto.... - Despertei atordoado com a barulheira de uma multidão. Que será? Ao tomar pé da situação, entre os desencontros de ontem, reencontros de amanhã, reconheci uma voz de antanho: do poeta e radialista Tony Antunes (que também se assina professor Gleidistone) e recitava no palco Prexelândios de uma vida. Aplaudi ao final e foi quando percebi que estava sozinho e entre gente que nunca antes tivera sequer visto. Havia um certo desconforto só quebrado que, depois, ele encostou-se com a surpresa e um exemplar do seu Digitais absolutas: poemas escolhidos, para recitar-me o seu poema As letras: As letras que fazem nascer / minhas palavras / são portadoras / de criação infinita. / Nos calcanhares letrados da mente / surgem idiomas / com asas de fênix / reluzindo luz e conhecimento. / Abrindo os olhos à leitura, podemos então / ser descobridores de mágicas metáforas / em semânticas de vida / de luz e / de amor. Aplaudi com um firme aperto de mão de frater e um abraço caloroso com os versos do seu poema Meus quirodáctilos: ... sei do meu passado / não sei do meu porvir. / Sou viajante do cosmo / nos planetas mentais / do tico e do teco / do tosco e do taco / de tudo e de todos. Foi aí que conversamos animadamente por um bom espaço de tempo, até ela reaparecer e nos despedimos com a promessa de revermos em breve. Ela me levou de volta para o seu aconchego que sequer sabia onde que poderia ser, enquanto dizia-me de um poema O fim do mundo, da poeta alemã Else Lasker-Schuler (1869-1945): Há um lamento no mundo, / Como se não mais houvesse o bom Deus, / E a sombra que cai, cortina de chumbo, / Pesa mausoléus. / Vem, escondamo-nos mais de perto... / A vida jaz nos corações / Como nos féretros. / Ei, beijemo-nos até não mais poder / — Pulsa uma saudade no mundo, / E é disso que temos de morrer. Ao final do poema, estávamos no meio do mundo e eu não sabia onde era nem queria saber. Então, abraçou-me com o fervor de sempre, sem que eu soubesse jamais se onça ou benfeitora, apenas: precisamos viver, enquanto podemos respirar. Até mais ver.

 

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MARIA RAKHMANINOVA, ELENA DE ROO, TATIANA LEVY, ABELARDO DA HORA & ABYA YALA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Triphase (2008), Empreintes (2010), Yôkaï (2012), Circles (2016), Fables of Shwedagon (2018)...