quinta-feira, março 03, 2016

LOUCURA REPULSIVA


LOUCURA REPULSIVA

Luiz Alberto Machado

Eita! Tudo se dera durante uma partida de futebol de salão no colégio.  Os garotos até que se entendiam, nunca se imaginando qualquer desavença entre eles. Pelo contrário, iam para o cinema juntos, combinavam paqueras, vigiavam o banho da empregada pelo buraco da fechadura, acertavam contas com outros garotos, excluíam quem não caísse na simpatia deles, defendia um o interesse do outro em detrimento dos que estivessem fora do vínculo, trocavam figurinhas, cavalo-mago, brincadeiras, gozações, bronhas e sonhos; e se tratavam, reciprocamente, como sendo o melhor amigo, entre ambos. Até já se pareciam, cara dum, cu do outro; da mesma laia. A única diferença aparente era a de que os pais matricularam cada um em colégio distinto. Um, cursava a quinta série no colégio das freiras; o outro, série idem, no colégio da diocese. Afora isso, se tratavam por carne e unha.

Convém lembrar outra coisa: também diferiam na disputa pelo coração de Delita, uma nisseizinha do sexto andar, risonha linda e que remoía na paixão dos dois. O bonito deles é que, inclusive ela, estavam com treze anos de idade e, coincidência das brabas, aniversariavam no mesmo mês. Era uma festa só no condomínio.

Clévius e Saulus eram tão amigos a ponto de darem um talho num dos dedos da mão e cruzarem o próprio sangue num pacto de fidelidade siamesa, juramento este vigente até a morte deles.

Delita até que achava linda a amizade deles. Os de fora do vínculo achavam que entre os dois havia cu no meio, só sendo, diziam, vai andar encangados assim na casa dum engavetamento de cuecas dos mais nojentos.

Naquele dia, porém, os colégios se enfrentaram por partida válida pelo campeonato interescolar. Ânimos à flor da pele, jogo empatado, clássico do certame, Clévio fizera a diferença, driblando um, dois, três, bola entre as pernas de Saulus, humilhante apupo explodindo da plateia, mangação de Delita, e um gol de placa abrindo o escore em favor da escola das freiras por um tento a zero, quase no finalzinho do jogo e com uma comemoração estapafúrdia.

Saulus não perdoou sua própria inépcia. Inerte ali, comprovando a queda sentimental de Delita aplaudindo ruidosamente Clévio, abraçando-o com fervor, quando a cena de um beijo na boca da sua paixão imaculada pelo agora rival, esquentou seu sangue, enciumando-se daquilo, uma provocação de remexer-lhe as entranhas, tomando, então, para si, a responsabilidade de reverter aquele panorama e não entregar Delita de bandeja e de mão dada pro então momentâneo algoz. Ele não poderia ficar para trás, nunca. Clévio iria ver com quantos paus se fazia uma jangada. Não podia de jeito maneira ser diminuído daquele jeito. Tinha que conquistar Delita de qualquer forma. E foi. Apossou-se da pelota que descansava no fundo das redes, no maior conflito entre os seus comparsas de time, levou até o meio da quadra, bateu o centro e exigiu que a bola voltasse para si pra sair driblando todo mundo e empatar o jogo, quando Clévio, aproveitando-se de sua desatenção no meio dos sonhos, tomou-lhe a redonda, deu-lhe um traço da vaca humilhante, driblou mais dois e num toque de craque, deu uma ajeitada sutil na gorduchinha, ampliando o escore para dois a zero. Saulus colocou as mãos sobre a cabeça não acreditando no que estava presenciando. Clévio, não, correu para a galera, justamente para Delita e jogou-lhe um beijo muito bem recepcionado por ela.

De cabeça quente, traído, perdido no meio do mato, Saulus não tinha o que fazer, seu mundo arriara assim, sem mais nem menos, enquanto toda a torcida e seu próprio time todo em peso reprovava sua desproposital maluquice. Foi quando ele percebeu a presença de um paralelepípedo prendendo a rede por trás das traves e nem pestanejou, apanhou o pesado e jogou no meio da esfuziante comemoração: lascou a cabeça do intrépido driblador. Sangueiro véio espirrando no meio da quadra. Um corpo estendido, alvoroço, corre-corre, Delita chorando a fatalidade, não Delita não, isso não, arrependeu-se, mas estava vingado, satisfeito, enciumado, exigindo que Delita ficasse do seu lado, ela indiferente, dispensando um olhar reprovador. Recebera pela atitude impensada um cartão vermelho, fora expulso da partida e do coração de Delita. Baixou a cabeça indignado e sob apupos reprovadores que acompanharam sua solidão e seu desamparo.

Ora, esta não seria a primeira vez que um garoto chegava em casa aos prantos por trela no colégio. O fato deveu-se pelos desconcertantes traços do réu impúbere, agora vítima desgraçada, acompanhado de indevida mangação presepeira, tão peculiar às molecagens juvenis. Daí, afundamento craneano com entrada em unidade de tratamento intensivo na emergência onde, dias atrás, dezoito crianças morreram por infecção hospitalar, caso abafado e sem repercussão por capricho das autoridades locais. Não se previa, portanto, que uma truculência de garotos saísse do domínio da molecagem para usurpar desatinos no racional mundo dos adultos. Um bate-boca cabeludo na saída do prédio deu o alarme das proporções que tomaria este delito inesperado, envolvendo as mães dos desafetos que se atracaram numa escorraçada desavença, estraçalhando maquiagens, indumentárias e penteados, dando, assim, por começada a uma lavagem de pano inexaurível. Horas várias de gasguitas acusações mútuas.

No meio do maior balacobaco, uma terceira senhora de boa índole e com o intento apaziguador, tencionando apartá-las da escandalosa situação, já que se envolviam em puxavanques, beliscadas, puxadas e dentadas, rasgando-se uma a outra na maior saia justa, coitada, a intervenção conciliadora vitimou a metida de certas descomposturas, borrando o batom e estragando o permanente, findando por chutar, também, o pau da barraca, jogando mais condimento na esparrela, envolvendo-se num lastimável pandemônio de saias.

Foram as duas horas mais movimentadas no condomínio, deixando no chão as marcas da feroz pugna: catorze brincos com sinais de sangue, nove cílios postiços, cinco rouges, três pulseiras, quatro absorventes, quinze esmaltes, duas meias-calças, três farrapos de pano fino, sessenta e cinco tufos de cabelos arrancados, dois saltos altos descolados, três pinças, um pó compacto, dezenove batons, quatro alicates de unha, quatro afastadores de cutículas, quatro pedras pomos, três lixas de pé, dois secadores de cabelo, três lápis para sobrancelha, dez frascos de blush, três hidratantes, setenta e cinco cremes de pele, quatro bronzeadores, dois protetores solares, dois estojos de maquiagem, um colar de pérola, dezenas de bijuterias, quatro pés de meia, três palmilhas, duas toucas térmicas, treze tintas para cabelo, quinze anéis, quatro embalagens com unhas postiças, três shampoos, um montão de cremes e condicionadores capilares, cremes para uso das mãos, creme para uso nos pés, dezenas de lentes de contatos, duas bisnagas antirrugas, um gel capilar, cinco spray capilares, quinze bisnagas com cremes contra estrias, oito potes de cera depilatória, uma água oxigenada, duas bisnagas de doura-pelo, duas cintas, várias lingeries, um piercing, dois desodorantes, cinco frascos de perfume fino, três embalagens de base facial, dois massageadores elétricos, duas luvas, uma anágua, quatro bustiês, dois sutiãs, meia dúzia de calcinhas, uma tornozeleira, cinco presilhas, dois diademas, uma maria-chiquinha, uma embalagem de bigudinho, uma gargantilha, quarenta e dois broches, duas atacas, dois retrós de linha, um enroladinho de agulhas, uma agulha de crochê, várias apetrechos de tricô, uma peruca, um pedaço de sinhaninha, uma liganete, duas fitas do Nosso Senhor do Bonfim, cinco biquínis, um maiô, três adesivos tapa seio, dois invólucros de fio dental, meio mundo de tranqueira, uma carteira de cigarros finos, uma prótese dentária, um cachete de aspirina, dois comprimidos de tarja preta, um serrador de unha, spray contra halitose, duas gomas de mascar, um baby-doll, um palito de laranjeira, um gel de não sei o quê, um recipiente plástico para sumário de urina, um cd de Roberto Carlos, dois fusíveis de nove amperes, um extrator de grampo, um livro Minutos de Sabedoria, uma caneta esferográfica, dois santinhos de finados, um isqueiro chique, duas caixas de fósforos, uma foto de Chico Buarque, cinco velas, uma camisinha de vênus, um dedal, duas alianças, um nebulizador, um galho de arruda, dois sabonetes, um chá de erva cidreira, um sabonete líquido, um frasco de banho de cheiro, um saquinho de erva mate, um taco de gengibre, uma raiz de ginseng, um saquinho de camomila, uma chave de fenda, duas tiaras, três ligas, duas cintas, uma maromba pequena, oito berilos, cinco bobes e um bambulê, afora um escorpião de estimação, uma casa de aranha, dois formigueiros e restos de comida e sujeira, eita gota, tinha mais, mas o avaliador inventariante resolveu deixar nisso porque era coisa demais pra três arengueiras dessas, tudo desfazendo toda elegância feminina. Cá pra nós, mulher carrega cada brebote, hem? Hum. Não era pra menos agora estavam parecendo verdadeiras bruxas descabeladas. 


Ôxe, o bafafá foi tão grande que foi preciso a participação especial do corpo de bombeiros, dos vizinhos, dos porteiros, dos transeuntes, dos condôminos, de fofoqueiros, de intrusos, de agitadores, de maloqueiros, de eletricistas e de zombeteiros para coibir aquela arenga devastadora. Foram mais de duas horas para juntar tudo. E pra desapartar precisou muita energia. Desagarradas, então, agora eram três mães indignadas e em pé de guerra, prontas para colocar pólvora em qualquer questiúncula que se insurgisse no caso.

O rolo entrou no liquidificador e foi pro ventilador, fedeu por locais imensuráveis, não findando nem tão cedo. Desapontados e mais ofendidos que brasileiro no dia que o Brasil perde no futebol, vieram os pais dos moleques, a ponto de um deles, o marido da terceira interventora, um araque de polícia que servia de segurança pro Secretário de Justiça do Estado, de beiço virado e alma inflamada, armado até a sombra, partir para uma lavagem de honra com impropérios e acerto de contas carregado de manchar reputação dos provocadores até seus mortos da centésima geração originária das duas outras famílias. O bicho pegou. E quando o jipe pega ribanceira abaixo, fica irrefreável. Segura o tombo, motorista!

Ofensa aqui, desavença dali, rixa acolá, o trio paterno achou de inflamar mais ainda o fogaréu, no bojo de palavrões recalcitrantes, cada um mais brabo que o outro, anunciando uma bomba que estouraria com proporções devastadoras maiores que a radioatividade de uma atômica. A temperatura subia no termômetro, avermelhando rostos sedentos por arenga, engrossando o motim. Pólvora era o que não faltava, cada um alheio que se aproximasse, jogava mais comentário inflamável na lenha com pitacos os mais descabidos.

- Fosse meu filho, eu lascava o quengo dele também!

- Maluvido é assim, isso é da criação de pais rudes!

- Quem manda dar liberdade para molecote?

- Comigo é olho por olho, dente por dente!

- Brinque não, toco fogo em tudo!

- Eu que vou levar recado pra casa, vou nada!

Disso tudo, uma queixa despretensiosa repousou no gabinete do delegado do bairro que, diligentemente, convocou todos os querelantes para pôr fim àquela pândega. Eram reclamos vindos de todas as bandas. Uma saraivada de queixumes. A audiência que tinha o caráter preliminar e instrutivo, extrapolou o figurino e conseguiu ferir o brio do titular da DP, que devido seu tom conciliador e paciente na condução das arguições, recebera na lata, assim de chapa, a insinuação escusa de fazer vistas grossas a certas ações ilícitas praticadas pelos ditos defensores da ordem e da segurança social, num vitupério insolente, sem papas na língua, ferindo a parcimônia que a questão exigia. Iiiihhh! Emputecido, recoulheu-los todos no xadrez, fazendo valer sua autoridade comprometida por uma falácia inócua de petulantes. Pronto! Estava formado o buruçu. O inquérito já andava solto num plantão que previa varar a noite para encerrá-lo.

- Esse delegado é um estróina! –, gritava um dos intrépidos.

- Eu quero justiça, sou vítima e termino preso, como pode?

- Isso é abuso de autoridade, meu primo vai entrar com um mandado de segurança que vai lhe foder a alma, delegado filho-da-puta!

- Eu só quero ver onde isso vai dar.

A situação empretara mesmo e a corda de guaiamum se esticou, mais parecendo elástico. Com a prisão dos desafetos, apareceu nego até de um olho só, parente dos punidos. Iam chegando e sendo recolhido tudo. Para poder caber, foram soltos uns meliantes para dar vaga aos novos aprisionados.

Enquanto o inquérito célere se avolumava, apareceu, primeiro, um coronel reformado do exército brasileiro, Terênciano Barrito, apimentando a quizília, defendendo a honra de um parente seu, um dos litigantes enclausurados, tomando para si as dores do seu próximo que fora preso manchando e envergonhando a tradição familiar.

- Parente meu num fica preso!

Logo após, enveredava pelas dependências da delegacia o advogado Belarmino Jequitibá, que exigia do delegado a soltura imediata do seu irmão e cunhada, defensor que era do pai do menor agressor, ameaçando um mandado de segurança para desestabilizar sua vida e denunciar na corregedoria seu comportamento escuso noutras situações. A audácia do advogado que alegava que os outros é que deveriam ficar preso e não seus parentes, ferira de frente o orgulho do coronel que, sobrepujando os ímpetos hostis, esbofeteou o bacharel, saindo tapas para quem te quero. Pronto, estava armado o circo.

Dona Dermevaldina Tupinambá, eminente senhora do deputado federal Tranquilino Tupinambá, que se estava de chegada no recinto para requerer a soltura de um irmão seu encarcerado na pendenga dos vizinhos, acoloiada por mais dois seguranças do representante do legislativo federal, teve, bem no meio do festival de tabefe, envolvendo o coronel e o advogado, um dos corretivos que soar, como um catabí escabroso, justamente, no gracioso rosto dela. Não deu outra, a panela ferveu no fogão, queimando o rabo de quem mais chegasse.

O delegado tratou de apartar o quiproquó, terminando por se envolver até a alma com os dois seguranças, o coronel e o advogado, em mais de hora de participação num verdadeiro ringue coletivo. Ai entrou soldado, parente, aderente, curioso e bofeteiro profissional que se achavam no direito de intervir e dormir com as fuças quentes. Tei bei. E tome lenha prá queimar.

O deputado Tranquilino com sua imagem arranhada peticionou representação criminal por tentativa de homicídio junto ao Ministério Público, visando exonerar o delegado incompetente, destituir a patente do coronel metido a besta, caçar o diploma do advogado irresponsável, e reparar com indenizações pecuniárias a afronta dos mequetrefes imbecis que protagonizaram tão lamentável incidente, além de enjaular pro resto da vida, todos os metidos naquela camisa de onze varas. O homem usou do prestígio e não economizou na reviravolta, botando fogo na lenha, convocando senador correligionário, polícia federal, autoridades nacionais e um aparato de leis e ordens em causa própria para asfixiar toda maré que viesse contra seu intento.

O negócio foi ficando mais feio, pronto para arrebentar qualquer suposição e engrossando o rolo compressor da desfaçatez. E tinha mais: era nego que era concunhado do secretário geral do governador do Maranhão; outro que tinha um primado de quarto grau com um delegado federal de São Paulo; um que era casado com a cunhada da mulher do presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte; mais um que era filho bastardo do sobrinho do almirante chefe da casa militar do Palácio do Planalto; outro que era afilhado do cunhado que era primo da mãe do ministro da justiça; outra que se dizia filha de criação da madrasta do comandante da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul; e puxa e encolhe. Com tanto condimento assim o negócio assou passando do ponto.

Foi aí que entrou um brabo oriundo lá das brenhas do sertão nordestino e compadre de sangue de um dos ofendidos, sem parente nem aderente, sem nome e sem falácia, com pouca palavra e muito punho, sacou de uma pistola e matou o deputado, aleijou o coronel, desarmou o delegado, mais vinte e oito feridos, quatro deles que não tinham a ver com o pato, meros curiosos, botou ordem na casa e levou os seus para casa num rancho que ninguém sabe nem onde droga que fica. Pronto. Deu-se. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

 Imagens: a arte do pintor, escultor, ceramista e autor fundador do movimento Cobra dinamarquês, Asger Jorn (1814-1973).

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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
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NADYA TOLOKONNIKOVA, ANNA KATHARINE GREEN, EMMA GONZALEZ & THALYTA MONTEIRO

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