Eita!
Tudo se dera durante uma partida de futebol de salão no colégio. Os garotos até que se entendiam, nunca se
imaginando qualquer desavença entre eles. Pelo contrário, iam para o cinema
juntos, combinavam paqueras, vigiavam o banho da empregada pelo buraco da
fechadura, acertavam contas com outros garotos, excluíam quem não caísse na
simpatia deles, defendia um o interesse do outro em detrimento dos que
estivessem fora do vínculo, trocavam figurinhas, cavalo-mago, brincadeiras,
gozações, bronhas e sonhos; e se tratavam, reciprocamente, como sendo o melhor
amigo, entre ambos. Até já se pareciam, cara dum, cu do outro; da mesma laia. A
única diferença aparente era a de que os pais matricularam cada um em colégio
distinto. Um, cursava a quinta série no colégio das freiras; o outro, série
idem, no colégio da diocese. Afora isso, se tratavam por carne e unha.
Convém
lembrar outra coisa: também diferiam na disputa pelo coração de Delita, uma
nisseizinha do sexto andar, risonha linda e que remoía na paixão dos dois. O
bonito deles é que, inclusive ela, estavam com treze anos de idade e,
coincidência das brabas, aniversariavam no mesmo mês. Era uma festa só no
condomínio.
Clévius
e Saulus eram tão amigos a ponto de darem um talho num dos dedos da mão e
cruzarem o próprio sangue num pacto de fidelidade siamesa, juramento este
vigente até a morte deles.
Delita
até que achava linda a amizade deles. Os de fora do vínculo achavam que entre
os dois havia cu no meio, só sendo, diziam, vai andar encangados assim na casa
dum engavetamento de cuecas dos mais nojentos.
Naquele
dia, porém, os colégios se enfrentaram por partida válida pelo campeonato
interescolar. Ânimos à flor da pele, jogo empatado, clássico do certame, Clévio
fizera a diferença, driblando um, dois, três, bola entre as pernas de Saulus,
humilhante apupo explodindo da plateia, mangação de Delita, e um gol de placa
abrindo o escore em favor da escola das freiras por um tento a zero, quase no
finalzinho do jogo e com uma comemoração estapafúrdia.
Saulus
não perdoou sua própria inépcia. Inerte ali, comprovando a queda sentimental de
Delita aplaudindo ruidosamente Clévio, abraçando-o com fervor, quando a cena de
um beijo na boca da sua paixão imaculada pelo agora rival, esquentou seu
sangue, enciumando-se daquilo, uma provocação de remexer-lhe as entranhas,
tomando, então, para si, a responsabilidade de reverter aquele panorama e não
entregar Delita de bandeja e de mão dada pro então momentâneo algoz. Ele não
poderia ficar para trás, nunca. Clévio iria ver com quantos paus se fazia uma
jangada. Não podia de jeito maneira ser diminuído daquele jeito. Tinha que
conquistar Delita de qualquer forma. E foi. Apossou-se da pelota que descansava
no fundo das redes, no maior conflito entre os seus comparsas de time, levou
até o meio da quadra, bateu o centro e exigiu que a bola voltasse para si pra
sair driblando todo mundo e empatar o jogo, quando Clévio, aproveitando-se de
sua desatenção no meio dos sonhos, tomou-lhe a redonda, deu-lhe um traço da
vaca humilhante, driblou mais dois e num toque de craque, deu uma ajeitada sutil
na gorduchinha, ampliando o escore para dois a zero. Saulus colocou as mãos
sobre a cabeça não acreditando no que estava presenciando. Clévio, não, correu
para a galera, justamente para Delita e jogou-lhe um beijo muito bem
recepcionado por ela.
De
cabeça quente, traído, perdido no meio do mato, Saulus não tinha o que fazer,
seu mundo arriara assim, sem mais nem menos, enquanto toda a torcida e seu
próprio time todo em peso reprovava sua desproposital maluquice. Foi quando ele
percebeu a presença de um paralelepípedo prendendo a rede por trás das traves e
nem pestanejou, apanhou o pesado e jogou no meio da esfuziante comemoração:
lascou a cabeça do intrépido driblador. Sangueiro véio espirrando no meio da
quadra. Um corpo estendido, alvoroço, corre-corre, Delita chorando a
fatalidade, não Delita não, isso não, arrependeu-se, mas estava vingado,
satisfeito, enciumado, exigindo que Delita ficasse do seu lado, ela
indiferente, dispensando um olhar reprovador. Recebera pela atitude impensada
um cartão vermelho, fora expulso da partida e do coração de Delita. Baixou a
cabeça indignado e sob apupos reprovadores que acompanharam sua solidão e seu
desamparo.
Ora,
esta não seria a primeira vez que um garoto chegava em casa aos prantos por
trela no colégio. O fato deveu-se pelos desconcertantes traços do réu impúbere,
agora vítima desgraçada, acompanhado de indevida mangação presepeira, tão
peculiar às molecagens juvenis. Daí, afundamento craneano com entrada em
unidade de tratamento intensivo na emergência onde, dias atrás, dezoito
crianças morreram por infecção hospitalar, caso abafado e sem repercussão por
capricho das autoridades locais. Não se previa, portanto, que uma truculência
de garotos saísse do domínio da molecagem para usurpar desatinos no racional
mundo dos adultos. Um bate-boca cabeludo na saída do prédio deu o alarme das
proporções que tomaria este delito inesperado, envolvendo as mães dos desafetos
que se atracaram numa escorraçada desavença, estraçalhando maquiagens,
indumentárias e penteados, dando, assim, por começada a uma lavagem de pano
inexaurível. Horas várias de gasguitas acusações mútuas.
No
meio do maior balacobaco, uma terceira senhora de boa índole e com o intento
apaziguador, tencionando apartá-las da escandalosa situação, já que se
envolviam em puxavanques, beliscadas, puxadas e dentadas, rasgando-se uma a
outra na maior saia justa, coitada, a intervenção conciliadora vitimou a metida
de certas descomposturas, borrando o batom e estragando o permanente, findando
por chutar, também, o pau da barraca, jogando mais condimento na esparrela,
envolvendo-se num lastimável pandemônio de saias.
Foram
as duas horas mais movimentadas no condomínio, deixando no chão as marcas da
feroz pugna: catorze brincos com sinais de sangue, nove cílios postiços, cinco
rouges, três pulseiras, quatro absorventes, quinze esmaltes, duas meias-calças,
três farrapos de pano fino, sessenta e cinco tufos de cabelos arrancados, dois
saltos altos descolados, três pinças, um pó compacto, dezenove batons, quatro
alicates de unha, quatro afastadores de cutículas, quatro pedras pomos, três
lixas de pé, dois secadores de cabelo, três lápis para sobrancelha, dez frascos
de blush, três hidratantes, setenta e cinco cremes de pele, quatro
bronzeadores, dois protetores solares, dois estojos de maquiagem, um colar de
pérola, dezenas de bijuterias, quatro pés de meia, três palmilhas, duas toucas
térmicas, treze tintas para cabelo, quinze anéis, quatro embalagens com unhas
postiças, três shampoos, um montão de cremes e condicionadores capilares,
cremes para uso das mãos, creme para uso nos pés, dezenas de lentes de
contatos, duas bisnagas antirrugas, um gel capilar, cinco spray capilares,
quinze bisnagas com cremes contra estrias, oito potes de cera depilatória, uma
água oxigenada, duas bisnagas de doura-pelo, duas cintas, várias lingeries, um
piercing, dois desodorantes, cinco frascos de perfume fino, três embalagens de
base facial, dois massageadores elétricos, duas luvas, uma anágua, quatro bustiês,
dois sutiãs, meia dúzia de calcinhas, uma tornozeleira, cinco presilhas, dois
diademas, uma maria-chiquinha, uma embalagem de bigudinho, uma gargantilha,
quarenta e dois broches, duas atacas, dois retrós de linha, um enroladinho de
agulhas, uma agulha de crochê, várias apetrechos de tricô, uma peruca, um
pedaço de sinhaninha, uma liganete, duas fitas do Nosso Senhor do Bonfim, cinco
biquínis, um maiô, três adesivos tapa seio, dois invólucros de fio dental, meio
mundo de tranqueira, uma carteira de cigarros finos, uma prótese dentária, um
cachete de aspirina, dois comprimidos de tarja preta, um serrador de unha,
spray contra halitose, duas gomas de mascar, um baby-doll, um palito de
laranjeira, um gel de não sei o quê, um recipiente plástico para sumário de
urina, um cd de Roberto Carlos, dois fusíveis de nove amperes, um extrator de
grampo, um livro Minutos de Sabedoria, uma caneta esferográfica, dois santinhos
de finados, um isqueiro chique, duas caixas de fósforos, uma foto de Chico
Buarque, cinco velas, uma camisinha de vênus, um dedal, duas alianças, um nebulizador,
um galho de arruda, dois sabonetes, um chá de erva cidreira, um sabonete
líquido, um frasco de banho de cheiro, um saquinho de erva mate, um taco de
gengibre, uma raiz de ginseng, um saquinho de camomila, uma chave de fenda,
duas tiaras, três ligas, duas cintas, uma maromba pequena, oito berilos, cinco
bobes e um bambulê, afora um escorpião de estimação, uma casa de aranha, dois
formigueiros e restos de comida e sujeira, eita gota, tinha mais, mas o
avaliador inventariante resolveu deixar nisso porque era coisa demais pra três
arengueiras dessas, tudo desfazendo toda elegância feminina. Cá pra nós, mulher
carrega cada brebote, hem? Hum. Não era pra menos agora estavam parecendo
verdadeiras bruxas descabeladas.
Ôxe,
o bafafá foi tão grande que foi preciso a participação especial do corpo de
bombeiros, dos vizinhos, dos porteiros, dos transeuntes, dos condôminos, de
fofoqueiros, de intrusos, de agitadores, de maloqueiros, de eletricistas e de
zombeteiros para coibir aquela arenga devastadora. Foram mais de duas horas para
juntar tudo. E pra desapartar precisou muita energia. Desagarradas, então,
agora eram três mães indignadas e em pé de guerra, prontas para colocar pólvora
em qualquer questiúncula que se insurgisse no caso.
O
rolo entrou no liquidificador e foi pro ventilador, fedeu por locais
imensuráveis, não findando nem tão cedo. Desapontados e mais ofendidos que
brasileiro no dia que o Brasil perde no futebol, vieram os pais dos moleques, a
ponto de um deles, o marido da terceira interventora, um araque de polícia que
servia de segurança pro Secretário de Justiça do Estado, de beiço virado e alma
inflamada, armado até a sombra, partir para uma lavagem de honra com
impropérios e acerto de contas carregado de manchar reputação dos provocadores
até seus mortos da centésima geração originária das duas outras famílias. O
bicho pegou. E quando o jipe pega ribanceira abaixo, fica irrefreável. Segura o
tombo, motorista!
Ofensa
aqui, desavença dali, rixa acolá, o trio paterno achou de inflamar mais ainda o
fogaréu, no bojo de palavrões recalcitrantes, cada um mais brabo que o outro,
anunciando uma bomba que estouraria com proporções devastadoras maiores que a
radioatividade de uma atômica. A temperatura subia no termômetro, avermelhando
rostos sedentos por arenga, engrossando o motim. Pólvora era o que não faltava,
cada um alheio que se aproximasse, jogava mais comentário inflamável na lenha
com pitacos os mais descabidos.
-
Fosse meu filho, eu lascava o quengo dele também!
-
Maluvido é assim, isso é da criação de pais rudes!
-
Quem manda dar liberdade para molecote?
-
Comigo é olho por olho, dente por dente!
-
Brinque não, toco fogo em tudo!
-
Eu que vou levar recado pra casa, vou nada!
Disso
tudo, uma queixa despretensiosa repousou no gabinete do delegado do bairro que,
diligentemente, convocou todos os querelantes para pôr fim àquela pândega. Eram
reclamos vindos de todas as bandas. Uma saraivada de queixumes. A audiência que
tinha o caráter preliminar e instrutivo, extrapolou o figurino e conseguiu
ferir o brio do titular da DP, que devido seu tom conciliador e paciente na
condução das arguições, recebera na lata, assim de chapa, a insinuação escusa
de fazer vistas grossas a certas ações ilícitas praticadas pelos ditos
defensores da ordem e da segurança social, num vitupério insolente, sem papas
na língua, ferindo a parcimônia que a questão exigia. Iiiihhh! Emputecido,
recoulheu-los todos no xadrez, fazendo valer sua autoridade comprometida por
uma falácia inócua de petulantes. Pronto! Estava formado o buruçu. O inquérito
já andava solto num plantão que previa varar a noite para encerrá-lo.
-
Esse delegado é um estróina! –, gritava um dos intrépidos.
-
Eu quero justiça, sou vítima e termino preso, como pode?
-
Isso é abuso de autoridade, meu primo vai entrar com um mandado de segurança
que vai lhe foder a alma, delegado filho-da-puta!
-
Eu só quero ver onde isso vai dar.
A
situação empretara mesmo e a corda de guaiamum se esticou, mais parecendo
elástico. Com a prisão dos desafetos, apareceu nego até de um olho só, parente
dos punidos. Iam chegando e sendo recolhido tudo. Para poder caber, foram
soltos uns meliantes para dar vaga aos novos aprisionados.
Enquanto
o inquérito célere se avolumava, apareceu, primeiro, um coronel reformado do
exército brasileiro, Terênciano Barrito, apimentando a quizília, defendendo a
honra de um parente seu, um dos litigantes enclausurados, tomando para si as
dores do seu próximo que fora preso manchando e envergonhando a tradição
familiar.
-
Parente meu num fica preso!
Logo
após, enveredava pelas dependências da delegacia o advogado Belarmino
Jequitibá, que exigia do delegado a soltura imediata do seu irmão e cunhada,
defensor que era do pai do menor agressor, ameaçando um mandado de segurança
para desestabilizar sua vida e denunciar na corregedoria seu comportamento
escuso noutras situações. A audácia do advogado que alegava que os outros é que
deveriam ficar preso e não seus parentes, ferira de frente o orgulho do coronel
que, sobrepujando os ímpetos hostis, esbofeteou o bacharel, saindo tapas para
quem te quero. Pronto, estava armado o circo.
Dona
Dermevaldina Tupinambá, eminente senhora do deputado federal Tranquilino
Tupinambá, que se estava de chegada no recinto para requerer a soltura de um
irmão seu encarcerado na pendenga dos vizinhos, acoloiada por mais dois
seguranças do representante do legislativo federal, teve, bem no meio do
festival de tabefe, envolvendo o coronel e o advogado, um dos corretivos que
soar, como um catabí escabroso, justamente, no gracioso rosto dela. Não deu
outra, a panela ferveu no fogão, queimando o rabo de quem mais chegasse.
O
delegado tratou de apartar o quiproquó, terminando por se envolver até a alma
com os dois seguranças, o coronel e o advogado, em mais de hora de participação
num verdadeiro ringue coletivo. Ai entrou soldado, parente, aderente, curioso e
bofeteiro profissional que se achavam no direito de intervir e dormir com as
fuças quentes. Tei bei. E tome lenha prá queimar.
O
deputado Tranquilino com sua imagem arranhada peticionou representação criminal
por tentativa de homicídio junto ao Ministério Público, visando exonerar o
delegado incompetente, destituir a patente do coronel metido a besta, caçar o
diploma do advogado irresponsável, e reparar com indenizações pecuniárias a
afronta dos mequetrefes imbecis que protagonizaram tão lamentável incidente,
além de enjaular pro resto da vida, todos os metidos naquela camisa de onze
varas. O homem usou do prestígio e não economizou na reviravolta, botando fogo
na lenha, convocando senador correligionário, polícia federal, autoridades
nacionais e um aparato de leis e ordens em causa própria para asfixiar toda
maré que viesse contra seu intento.
O
negócio foi ficando mais feio, pronto para arrebentar qualquer suposição e
engrossando o rolo compressor da desfaçatez. E tinha mais: era nego que era
concunhado do secretário geral do governador do Maranhão; outro que tinha um
primado de quarto grau com um delegado federal de São Paulo; um que era casado
com a cunhada da mulher do presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Norte; mais um que era filho bastardo do sobrinho do almirante chefe da casa
militar do Palácio do Planalto; outro que era afilhado do cunhado que era primo
da mãe do ministro da justiça; outra que se dizia filha de criação da madrasta
do comandante da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul; e puxa e encolhe. Com
tanto condimento assim o negócio assou passando do ponto.
Foi
aí que entrou um brabo oriundo lá das brenhas do sertão nordestino e compadre
de sangue de um dos ofendidos, sem parente nem aderente, sem nome e sem
falácia, com pouca palavra e muito punho, sacou de uma pistola e matou o
deputado, aleijou o coronel, desarmou o delegado, mais vinte e oito feridos,
quatro deles que não tinham a ver com o pato, meros curiosos, botou ordem na
casa e levou os seus para casa num rancho que ninguém sabe nem onde droga que
fica. Pronto. Deu-se. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
aqui.
o pintor, escultor,
ceramista e autor fundador do movimento Cobra dinamarquês, Asger
Jorn (1814-1973).
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von Franz, Franz Hanfstaengl, Jards Macalé & Miranda Richardson aqui.
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