Imagem: Black and violet (1923), do professor de Bauhaus, artista plástico
e introdutor da abstração nas artes visuais russa, Wassily Kandinsky (1866-1944). Veja mais aqui, aqui e aqui.
A FÚRIA DOS INOCENTES
Luiz Alberto Machado
Amália tricotava singelamente as roupinhas das crianças, franzindo
o cenho a cada mirabolante volteada que dava, caprichosamente, no traçado dos
paninhos. Suas mãos enrugadas se ocupavam nessa tarefa todas as tardes após
haver cumprido os afazeres da casa, encantando o ambiente com uma vozinha de
criança, entoando uma cançãozinha infantil de antanho, que refletia a sua
felicidade por tudo se encontrar no lugar devido e resplandecendo felicidade em
sua vida. Os meninos àquela hora se encontravam na escola. O marido no
chafariz. Todos no mundo e, por isso, uma placidez no ambiente, com o tricô
salvando a solidão, post meridiem.
Cantava baixinho um acalanto qualquer e passava horas e horas
assim no seu labor, consumindo as horas da sua existência. Às vezes recebia a
visita de uma ou outra amiga, vizinha do bairro. A mais frequente delas era
Luzia sua maneira hircina de ser e uma teimosia daquelas da mulher do piolho.
Conversavam animadamente sobre muitas coisas, assunto era o que não faltava
debulhando a vida de todo mundo do seu convívio, entretidas nas mais acaloradas
novidades.
Leutério não simpatizava muito com as conversinhas das mulheres,
pois, dizia ele, reunião de mulher só dá fuxico, motivo este evidente porque
poucas de suas amigas ali se entretinham com Amália.
O traçado do tricô restituía sua paciência e clareava as ideias
para aturar no crepúsculo uma zoada danada daquela que recebe a inestimável
colaboração da algazarra, iniciada pelos meninos que vinham por demais sebosos
do educandário escolar, até mesmo do marido sempre esbaforido e esfomeado
devido um dia estafante e cheio de complicações que só os negócios sabem levar
ao labirinto dos aborrecimentos e desgastes físicos e emocionais. Era a sua
terceira prova de fogo do dia e de todos os dias de sua vida matrimonial.
Todo bafafá era iniciado logo nas primeiras horas dia com o café
da manhã, depois na competição do almoço e, por fim, no jantar. E nisso ela era
campeã, nunca desleixando nada, sempre aplicada, tática e estrategicamente
disciplinada na sua função de retaguarda, na qual nenhum gol passava nem nada a
tirava da vigilante posição de senhora do lar, alicerce forte do laço conjugal.
No intervalo desse inferno, vez em quando uma encomenda surgia
valorizando seu entretenimento de linha e agulha no entardecer, encomendas
essas sempre acompanhadas de elogios e uma presteza na entrega, dia e hora
combinados.
A visitante mais assídua sempre trazia notícias do interesse dela
ou de outras ávidas por adquirir toalhinhas, colchinhas, biquinhos, gorros,
pulôveres, meias, sapatinhos e miudezas tão bem confeccionados e de muito bom
gosto. Amália ficava a tarde inteira entretida com a narração detalhista e
cheia de sensacionalismo de Luzia.
Numa dessas tardes mormaçadas, soaram umas palmas do lado de fora,
atrapalhando a conversadeira. Era uma senhora por nome de Gertrudes que viera
encomendar três peças. Mal chegara e já elogiava, insinuando perfeitas
engenhosidades por mãos hábeis no tear e praticamente fechara o negócio marcado
para outro dia vir apanhar. Logo partira com seu rosto acopitrino e suado,
sardenta, enervada e com muita gesticulação. Chamara a atenção das duas mais por
seu jeito atormentado que pela repentina chegada para aquisição do desejado.
- Não gosto nada da cara dessa mulher! -, asseverou Amália.
Luzia reprovou o jeitão da Gertrudes, parecia gente problemática e
de má procedência.
- Sei não -, pensou ela -, acho que essa mulher deve ser
catimbozeira ou coisa do gênero-, desconfiou Luzia deixando a pulga atrás da
orelha.
Ainda nem eram cinco horas da tarde e Luzia se despedia, se
retirando com a aparição dos meninos cheios de estardalhaços, causando a maior
zoadeira dentro de casa. Este escarcéu perduraria até a hora da ceia. Poucos
minutos depois chegara Leutério, apressado, tirando a camisa e depositando na
primeira poltrona encontrada, sapatos e meias jogadas de lado, cinturão solto
da abotoadura da calça, expondo sua pança enorme e já se sentando à mesa para
degustação do que lhe apetecia nos pratos devido variadas iguarias expostas.
Era uma fome de derrubar caminhão. Uma barulheira medonha. Após a janta os
meninos se esgueiravam para brincar na rua, as meninas colaboravam na cozinha e
Leutério se atolava na poltrona para assistir televisão. Arrotava e peidava ele
o inhame ingerido com carne de sol, além do café com dois pães à base de
manteiga de garrafa, queijo de coalho, bolacha e bolo, fazendo um BG estranho
enquanto se fixava nas notícias do jornal nacional. Antes das vinte e uma horas
se recolhiam todos ao leito e o ronco dominava a noite.
Esse era o panorama consuetudinário na vida de Amália, só tendo
exceção aos sábados, dia de feira, quando a casa era invadida por parentes de
todas as bandas. Eram compadres, afilhados, primos, tios, cunhados, aderentes e
amigos próximos que só se despediam depois do almoço. Ou aos domingos quando
todos se enfileiravam perfilados com destino à igreja, na missa dominical,
comungando na remissão dos pecados praticados durante a semana. Leutério
aproveitava a ocasião invocando preces variadas, orações ardentes e uma
promessa para Nossa Senhora da Conceição manter sua família unida, tranquila e
incólume das tentações que se dissipam na vida, trazendo os mais indesejáveis
dissabores e decepções travosas capazes de destronar o sujeito de bom senso.
Não esquecia Leutério também de rezar para outras Nossas Senhoras como a do
Desterro, de Fátima, Aparecida, das Dores, além de Santo Antônio, Padre Cícero
Romão Batista e Frei Damião Bozano. Devoção mesmo dele era para o Santo Antônio
dos Caminhantes.
Terminado o prazo acertado entre Amália e Gertrudes, a requerente
apareceu como de costume, à porta, adentrou apressadamente para buscar o
solicitado, fazendo-se o acerto ali mesmo.
- Que bonitinho, eu sabia que ia ficar uma gracinha, muito bonito,
pode embrulhar.
- Em papel de presente ?
- Sim. Que fofinho que ficou, parabéns, Amália.
- Obrigado, aqui está!
- Em quanto ficou a encomenda?
- Bem querida, dá...deixa ver... dá duzentos reais tudo!
- Quanto ?
- Duzentos, baratinho, não?
- Oxente, é de ouro é ?
- Não é disso mesmo que você está pegando...
- Então, tá muito caro!
- Não senhora, olhe só o trabalhão, veja os detalhes...
- Mas isso é um assalto, só dou cem por estes três paninhos
mixurucas, por duzentos é um roubo!
- Pode deixar, não enferruja, não! Outro compra, pode ir, fica no
prejuízo, não faço mais negócio com gente encrenqueira da sua laia, nunca mais,
destá!
Gertrudes saiu violentamente quase arrancando a porta, levando as
compras e sem pagar. Sequer agradeceu. Soube-se, então, depois, tratar-se de
umas dessas maldizentes mulheres que chiam sempre na hora do dinheiro aparecer,
achegadas a um arrego, uma cortesia, uma gentileza gratuita. Era uma dessas que
compram mundos e fundos, acham tudo maravilhoso, bancam a maior amabilidade
para comprar as coisas já que são as maiores produtoras do consumo, agradam uns
e outros, agora, quando é para pagar, oxe, é um bicho, na moleza se apropriam
do que é dos outros, enrolam, esnobam, afanam, pidonas que são angariam molezas
e só vivendo do me empresta aquilo, me ajeita isso. Pois é, é com esse tipinho
de gente mesmo, não escapole nada, nem remédio. Amália que não dava o braço a
torcer, desprezara a situação como uma esmola, uma causa perdida. Ignorava,
todavia, o que estava por vir.
- Olhe, Luzia, razão tem Leutério em não admitir coisinhas com
certo tipo de gente. Não sei onde eu estava para aceitar fazer esse negócio,
não sei mesmo.
- Não se aperreie, Amália, são coisas da vida. Se fosse eu, dava
na cara dela, dizia um bocado de desaforo para ela aprender a não fazer
engicamento com ninguém.
Nem bem passava das nove horas da noite, ouviu-se uma gritaria na
calçada e uns estalidos no telhado da casa. Leutério assustado abriu o
basculante que dava para a rua e enxergou uma mulher desgrenhada a dispensar
passes malfazejos e a jogar, conforme disseram depois, terra de cemitério sobre
o teto de sua residência.
- Vocês vão sentir a fúria de Ferrabrás nos seus domínios, lote de
gente safada! -, maldizia Gertrudes desgrenhada na calçada. Vociferava com
insinuações de maus presságios, dando gargalhadas soltas e sinistras, até se
esboroar por ai sob protestos os mais descabidos. Toda assanhada, a mulher
estava irreconhecível, conseguindo, com isso, reunir muita gente em frente da
residência de Leutério, que depois soube tratar-se de Gertrudes catimbozeira, a
maior criadora de problemas da comarca.
- Que droga que essa mulher tem, Amália?
- É uma encrenqueira safada, queria comprar umas rendas e pregou
um calote em mim.
- Eu já num disse para você não....
- Eu sei, Leutério, eu sei, ela foi que veio com desaforo dentro
da minha casa e ainda levou minhas prendas de graça.
- Ela, todo mundo sabe, é gente ruim.
- Deus nos livre!
Uma situação dessas era de dar vexame em qualquer cristão
desprotegido, deixando meio mundo de gente abismado e com os olhos arregalados,
um verdadeiro espetáculo na calçada dele, prevendo que alguma coisa mal estava
por acontecer, partindo daquela endiabrada senhora trazendo agouros que, com
certeza, estariam predestinados a ocorrer.
Trinta dias se passaram do sucedido com a malvada e já se
detectava o revide da fortuna arremedando tropeços, determinando o sortilégio
do recinto cheio de apreensões, um verdadeiro momento aziago no começo de tudo,
causando todo abalo das emoções. Sob informação sigilosa e no meio do maior
enredamento, soube Amália, em que situação nefasta estava se metendo. Logo,
logo chegou ao seu conhecimento, sob deduções de candinhagem, que Leutério
mantinha uma outra mulher, a qual, inclusive, já tivera um filho seu. A
constatação não demorou muito com as usuais maneiras de se descobrir aquilo.
Certificada da veracidade, Amália tornou-se uma heroína de adversidades,
principalmente pela pecaminosa mancebia do marido. A discórdia já havia se
instaurado apesar da insistente negativa dele, porém as evidências eram
inegáveis. A concubina achando pouco a descoberta dela ainda foi fazer
desfeita, desaforando-a com uma promessa de surra, no meio de um bate boca dos
grandes. O lar virara uma violenta tormenta. A outra atendia pelo nome de
Dulcelene e era dessas da zona do baixo meretrício, levada por um apaixonado
amante para morar numa casa própria, adquirida por ele, exclusivamente para a
manutenção do emancebamento. Também soubera que ela era dada a um catimbó e
crendices outras, meios pelos quais, diziam, prendera Leutério com seu feitiço.
O vínculo entre as duas mais se acirrava com troca de insultos, ameaças e
amaldiçoamento de ambas as partes. Ardilosa, a catimboseira passou das contas:
fez uma oração do credo às avessas, se apoderando de um gato preto sem sinal
nenhum, cortando a ponta de sua cauda e furando os olhinhos do bichano até
arrancá-los. Depois cortou três unhas do pé esquerdo do felino, ajuntando sete
pitadas de cova de cemitério, mais chique-chique, pimenta da costa, pimenta
malagueta, vinte centímetros de morim, apondo o nome de Amália num sino Salomão
além de preparar um caixão, deitar tudo dentro e enterrando numa encruzilhada
jamais descoberta. Não bastando ainda fez mais: juntou umas folhas de
comigo-ninguém-pode, mais um punhado de pólvora, cinza, mel de abelha, azeite
dendê, salva, folha de urtiga, casca de ferida perebenta, pó de chifre de boi,
misturou tudo numa panela de barro e jogou na correnteza do rio. Pronto.
- Agora ela vai ver com quantos paus se faz uma jangada. Nunca
mais vai ter sossego na vida. O sal dela está se pisando!
Amália fora cientificada por Luzia do despacho de Dulcelene e da
mandinga de Gertrudes. Elas fizeram dois trabalhos enviesadores na vida da
coitada Amália, recebendo da informante o seu sermonário para que, entrando em
contrição, pudesse amainar sua sina, resignando-se em penitências. Luzia propôs
ainda que ela fizesse um serviço numa encruzilhada com um catimbozeiro de
respeito, buscado a peso de ouro em Cachoeira ou São Félix, na Bahia, senão ela
morreria devagarinho. Amália que era descrente com relação a isso, reagiu por
não fazer alguma coisa porque Leutério, se sabedor disso, recriminaria sua
atitude, pois que ele não acreditava nessas coisas também, até abominava. Mesmo
assim, instruída pela amiga providenciou logo uns banhos de sal, pimenta e água
benta pela casa.
A essa altura do campeonato a situação estava ficando preta.
Leutério passou a discutir muito com Dulcelene e, por retaliação, se desligou
dela definitivamente. A cólera da mandingueira deu de se assanhar mais ainda
fazendo um catimbó pesado para ele: apanhou um sapo, prendeu-o pelo pé, de
cabeça para baixo numa árvore do quintal e todo dia dava uma pisa no batráquio.
Depois escreveu o nome dele no bucho do anuro, dando nele até morrer.
No dia seguinte passava pela rua principal a procissão do senhor
morto e Amália fez questão de acompanhar, preocupada com tal infausto. Ao
voltar do cerimonial ela começou a se queixar de diminuição das vistas,
enxergando muito pouco, se dizendo estar ficando cega. Tudo se embaraçara na
sua visão, foi ficando tísica, com uma cegueira gradativa. Não teve dúvidas e
passou a ingerir tisanas e unguentos, distribuindo defumadores pela casa,
defumador de espinho guandu, banhos de sal com liamba e arruda, tudo orientado
por Luzia. Leutério notando a cegueira que se agravara fez levá-la a um médico.
No hospital, esperaram hora e horas numa fila imensa que estava por ser
atendida na sua frente, várias fichas despachadas, a dele fora justamente a
última. Após muitas horas de espera, o doutor José Paz chegou para atendê-la e
quando a viu pegou-lhe logo pelo pulso, nervosamente, respirou fundo e começou
a dizer palavras incompreensíveis num dialeto desconhecido. O médico
apressou-se e fez chegar ali um copo de água, limpando o birô ligeiramente e
nele forrando uma toalha branca, sentando-se de lado e apertando a mão dela,
fazendo muxoxos, caretas, trejeitos, contorcendo-se todo, virando os olhos até
que repentinamente se acalmou.
- Está vendo alguma coisa ?
- Estou.
- Que cor é a camisa do seu marido?
- Bege.
- O que tenho na mão?
- Um isqueiro.
- Tem tomado algum remédio?
- Não.
O doutor José Paz logo prescrevera uns medicamentos acrescidos de
uns banhos, orações do testamento kardecista, passes, defumadores na casa toda,
umas pílulas para acalmar os nervos e liberou o casal. Leutério aproveitou e
consultou-se com o médico sobre um problema que estava azucrinando seu juízo.
Era que quando ia mijar, aperreava-se todo da bimba ficar doendo que só,
queimando, espremendo-se de chorar.
- Isso é sério, compadre -, disse o médico já sabendo do que se
tratava. - Tome isso! -, e deu uns cachetes sob recomendações. - Pode ir.
O homem até que saiu satisfeito do consultório, de braços dados
com Amália pela rua afora, fato que não ocorria há mais de vinte anos. Ao se
aproximarem da casa notaram que o doutor José Paz se aproximara com o seu
automóvel, parando para cumprimentá-los. Numa pabulagem solta em frente à
residência deles, quando, inexplicavelmente, se sucedeu: o veículo do médico
começou a incendiar, reduzindo-se às cinzas em poucos minutos. A cegueira dela
piorara ali, ela não via mais nada. Tendo uma vertigem, ela se escorou no
marido, alegando que ia desmaiar. O médico atormentou-se e pulava de um lado
pro outro feito louco.
- O negócio é pesado!
Doutor José Paz, meio que desconsertado, empurrou os dois para o
interior da residência deles, avexado, recorrendo à mesa da janta, exigindo um
copo d'água e um pano branco, forrou tudo, colocou o copo no centro da mesa e
foi passando uns passes espíritas. Ainda meio tresloucado, soltou uns suspiros
violentos e depois se esgueirou rua afora. Amália, desamparada, se consumia
degradantemente, ficando de juízo mole, sofrendo alucinações, definhando,
agonizando, a ponto de sentir-se a hora da morte que estava sendo aguardada com
agonia. Oxe, benditos e excelências explodiram na sala. E nem bem esperava, o
último suspiro pesava tragicamente no ambiente. Foi uma correria. Quando deram
conta já se encontravam ao lado do leito mortuário. Serenos, todos entoavam
aquelas toadas lamurientas, repetindo-se lancinantemente numa vigília de
piedade. As cantadeiras não permitiram suspender as orações por via de Nossa
Senhora poder se levantar... já extrema unção. Amália se sentiu bem, falava mas
ninguém ouvia, todos contritos e ternos na cerimônia.
- O que está havendo ?
Amália reclamava de todos, não ouviam sua inquirição, sem receber
a menor atenção dos comparecentes. Estavam, para ela, todos loucos. Ela estava
vivíssima. Teria ficado invisível? Não se sabe, apenas que mesmo sepultada
ainda hoje ronda a residência de Leutério.
Tudo isso foi o que me contaram, já quase amanhecendo, numa roda
de caçadores na varanda da casa do engenho, depois de uma noite de causos e
acontecidos. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.
Imagem: A arte do pintor Norman Engel.
Veja mais: Crônica de Amor por Ela, Juana de Ibarbourou, Otto Maria Carpeaux, Iacyr Anderson Freitas, Camille
Claudel, Johann Kaspar Füssli, Ornette Coleman & Juliette Binoche
aqui.
CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Imagem: arte do pintor Norman Engel.