sábado, março 26, 2016

PRESENTE DE ANIVERSÁRIO



PRESENTE DE ANIVERSÁRIO (Imagem: sem título da pintora Carla Osório) - Era antevéspera do aniversário dele. Cinquenta anos de trabalho começado ainda menino, aos dez, vendendo brebotes na feira, acompanhando o pai artesão e a mãe verdureira. Amealhou cada centavo, moedas da muita no mealheiro do porquinho-da-índia, em bolas de meia com nós e no garrafão de vinho Padim Ciço, algumas até sem valia pelo tanto de tempo. Alimentou um sonho anos a fio: um automóvel, seminovo que fosse, pra quem só conhecia carro-de-boi, ou carroça puxada a jumento. No dia que viu pela primeira vez um jipe na rodagem fazendo poeria, correu pé-na-bunda de se esconder por dias, medroso. – Isso é um invento do cão! O medo só passou quando pegou bigu numa Rural, já homem feito, pra ir pra praia de Saraquaquema. Foi quando conheceu Dermevalda, hoje a senhora Justilino, amada e mantida pelos últimos trinta e tantos anos e lá vai teibei. Nem ele sabia direito, ela dava conta dos quase quarenta. Os filhos, dois rapagões, duas jeitosas. Dois casais, cada qual, cada qual, da mesma fôrma, cara dum, focinho de outro. E todos sonhavam passear de carro pelas estradas. Décadas resignados, andando a pé, de casa pro trabalho, da escola pro domicílio. Quando muito, pegavam o primeiro cata-corno pra capital ou prouta cidade vizinha. Ou no lotação dos bairros. Era antevéspera de sua festa. E eis que chegou o dia de tirar o pé da merda, ter um carro e rivalizar com outros metidos da cidade. Quando ele viu aquela perua, do jeito que ele sonhara, na cor ideal, usada mas bem conservada, quilometragem mínima de quem comprara e pouco usara, alinhada, original, ainda com cheiro novo nos estofados, tudo nos conformes. Oxe, contou uma por uma das moedas, juntou ao que tinha escondido no colchão, deu baixa na carteira e sacou do Fundo de Garantia, PIS/PASEP, seguro desemprego, arrastou o que tinha na poupança produto de umas caranhas, amarrou tudo no saco e foi pra loja: - Quero esse carro! E o tanto acertado foi pago na hora, mal sabia ele dirigir direito. Pediu que aprumassem o veículo para ele poder guiar. Não sabia dar marcha à ré, mas isso era de menos. Fazer a volta, dava trabalho. Ia em frente, era o que pra ele valia. Quando chegou em casa, deixou atravessado e já foi chamar todo mundo pra ver e, ao mesmo tempo, providenciar a primeira lavagem pra tirar a poeira. E lavaram. Depois de enxuto, lavaram de novo. – Ô pai, quando é que a gente vai pissiá? – Agora mermo, mô fio. E saíram dando volta na cidade. Depois que arrodearam a praça umas trocentas vezes, ele estacionou enviesado na porta de casa, bufou e relaxou. Os braços doíam da força que ele fazia no volante. O calor era grande porque ele não sabia sair da primeira pra segunda, andou o tempo todo numa marcha só. Mas como era sexta de tardezinha, a festa era uma só. Na manhã seguinte seria véspera de seu aniversário. E danaram-se a lavar de novo. – Amanhã vamo no sítio de Pai João. – Ôbaaaaaa! Maior festa. – A gente vai comemorá meu anirversáro lá! Eba! Depois que deixaram o carro limpíssimo, ali mesmo ficou e foram dormir. Não era nem cinco da manhã, Justilino acordava a mulher e os filhos. – Bora, cambada! E fez as malas e juntou os bregueços todos e sacudiram no porta-malas. – Amanhã é meu aniversáro e não se esqueçam de nada, viu? E trouxeram travesseiros, lençóis, vestimentas, toalhas, gaiolas de passarinho que não podiam passar fome, o gato Chué, o cachorro Tição, até a jabuti Jamela ía na embalagem. Uma tranqueira geral quase não deixa nem eles entrarem no carro. Atreparam todos no maior aperto da catrevagem e saíram cantando o sucesso do rádio. – Ô pai, sabe que tô filiz? – Sei, mô fio, eu tomém, todos tamo filiz. O riso às orelhas, maior euforia. Na saída da cidade, deu trabalho para entrar na rodovia estadual. Contudo, passando do acostamento pra faixa contrária, conseguiu aprumar e foi só acelerar. Alguns quilômetros adiante, o carro pifou no meio da pista. – Que droga que é isso? Alguns bons pariceiros pararam para saber o que havia. Constataram: faltou gasolina. E ajudaram até ir ao posto, compraram uns galões e abasteceram. Recomendaram que parasse no próximo posto pra completar o tanque. Assim o fez. Reabastecido, seguiu para um cruzamento entre a rodovia estadual que trafegava, passando para uma federal. Nem aí, fincou pé no acelerador e se esgueirou pelo asfalto. Nem deu tempo pro susto: era uma descida bastante acentuda, daquelas que os motoristas de auto-carga costumam descer na banguela. O sonho, o aniversário, a festa. Nem deu pra sacar um treminhão sobrecarregado que mandou ver na buzina e só deu tempo mesmo de ouvir o primeiro sinal: tudo arrastado e preso nas ferragens, enganchado na última etapa dos pneus. As duas primeiras levas de pneus do cavalinho foram o bastante para não restar mais que alguns poucos centímetros de tudo daquele automóvel, que ninguém mais sabia nem que marca era do pouco que sobrara de identificável. O sonho, só fumaça de frenagem e borracha. O aniversário, estalido de ferro quente dilatando e silêncio tumular. A festa, era uma vez. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui

 Imagem: a arte da pintora Svetlana Ziuzina.

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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
 Imagem: Art Women Nude (1950), do pintor do Surrealismo mexicano, Juan Medina.
Veja aqui e aqui.

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