segunda-feira, janeiro 30, 2023

ELVIRA LINDO, ROBERTO BOLAÑO, MAIREAD MAGUIRE, DOUGLAS RUSHKOFF & NELLY BLY

 

 Ao som das obras Celebração (2006), Ciclo nº 1 para piano, Ponteio, Improviso, Dualismo II & Vales, da conceituada compositora Maria Helena Rosas Fernandes, autora das óperas Marília de Dirceu (1994) e Anita Garibaldi (2012).

 

TRÍPTICO DQP: - Amálgama do corrimão invisível... – Um passo e senti o giro descompassado da Terra. Que coisa! Não pode ser. Tonteei um pouco, era a sensação de que o tempo parava ali naquele instante. Não pisei em falso, mas era como se o chão derruísse numa vertigem abissal. E se não endoideci de vez, estava mais cônscio que nunca! Logo me veio à cabeça a notícia de que o núcleo terrestre havia diminuído e parou repentinamente, girando então em sentido contrário. Acho que foi essa troca de movimento que provocou a minha tontura. Pelos arredores a minha atenção, sabia que havia apenas 90 segundos no Doomsday Clock. Tem contagem pra tudo, até pra esquecer. Sabia: o planeta estava de cabeça pra baixo e colapsado com a falência da civilização, o fracasso da humanidade. Já era esperado, falta de aviso não foi. Então logo ajeitei pra me segurar no que pudesse porque não havia mais a força gravitacional e poderíamos todos ser jogados no abismo sideral. Já pensou... Entrei quase em pânico e me precavia, nem sei como. Sabia que todos, até o sobrevivencialismo dos endinheirados e os misteriosos stakeholders ultrarricos estariam pendurados nos seus bunkers blindados subterrâneos. Claro, inevitável não despencar junto com todas as moedas e cédulas amealhadas. Tudo, inclusive sonhos e pesadelos, se perderia no vento para ser tragado por um buraco negro ou esmagado por uma poeira meteórica, ou sei lá mais que possa nos arrebentar de vez. Logo me veio à mente o que dissera Douglas Rushkoff no seu Survival of the Richest: Invista em pessoas e relacionamentos... Tarde demais, o outro já pulou fora. Cada um se segure como puder, não havia mais inquietações e evasivas para o caso, nem mais adiantaria se aperrear com o colapso ambiental ou aquecimento global, nem fugir do vírus irrefreável com o aumento dos níveis marítimos, o fogo dos incêndios e queimadas, a loucura das ambições, porque a sensação que findou é a de que o resto de nós fosse deixado para trás, ao deus dará. Roberto Bolaño Ávalos ecoava: Apenas no caos somos concebíveis... Pois é, a forma seguia o pensamento, isso enquanto eu passava a minha quase clandestina vida a limpo. É, parece que não vai dar pra me salvar. Algo mais ainda perturbava: uma pedra elétrica do Congo no sapato mendicante, a ponto de claudicar na impossibilidade de romper o cerco das agruras de viver numa província belicista. Eita! Logo agora, mais isso. Sozinho na cidade desabitada – acho que todos escaparam, sou talvez o único a se lascar no dédalo da minha própria insanidade. Sabia: nada é pleno, tudo se reconstrói... Vamos nessa...

 


Se não endoidou tudo de vez, está perto disso... Imagem: arte da artista visual Cibele Sarkis Carneiro, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. – Peraí! Ora, que fatalismo é esse! – teria eu me deixado levar por teorias conspiratórias, ah não... Não, nada disso! A tragédia é bem real, mas a gente tira por menos aliviando a barra. Sei disso. Quem sabe um milagrezinho duma hora pra outra, vai ver. Afora o que diz Mairead Maguire: Tudo bem ter medo, mas o medo é diferente. O medo é quando deixamos que o medo nos impeça de fazer o que o amor exige de nós... Tá! Mas pense comigo: tantos anos pelos degraus ladeira acima, passo a passo morro abaixo e toda aspiração lá no final de uma longuíssima reta do asfalto, distância quilométrica. Pense numa coisa longe, multiplique por mil, mais pra lá, acolá mesmo, deu pra sacar, né. O que importa é que dá para quase visualizar lá no finzinho, o que prospera uma sobrevida. Então, acelera a andada. Sim, mais depressa e não se deve importar se uma enchente avassaladora aplacar o tiro ao alvo. Nada demais, um dia as águas baixam e retoma a jornada. Não se deve nem esquentar se um incêndio começar a torrar tudo, oriundo das queimadas no canavial. Paciência, nem leve em conta a força do destino. É só assentar a poeira e relevar se, por acaso, um caminhão desgovernado surgir do nada levando tudo pela frente. Ufa! Foi por pouco! Ao voltar pro trajeto não deve se irritar, porventura, um trem descarrile passando por cima, foi. Respira fundo e não maldiga a vida se um navio fabuloso invadir o rio destruindo a ponte. E agora, não sei nadar! Espere, um bote logo aparecerá indagando se não sou um tipo de escorpião. Oxe, claro que não; só quero ir pra outra margem. Agora sim, do outro lado e a andadura recomeça. Por pouco não fui esmagado: um avião dos grandões caiu em pleno trânsito. Vôte! Nem morri, nem soltei palavrão! Tudo removido por guindastes, bombeiros e saqueadores. Estrada livre, vambora. O inesperado: um OVNI roubou a cena para me abduzir bem no meio do meu surto de celebridade, o malsucedido tão destoante, o inferno dentro de mim, o imponderável jamais experimentado e tudo tão inconcluso. Exageros à parte, todo mundo pode passar por essas coisas ou quase. Chego a me rir com a leseira – ninguém seria tão azarado assim, eu que o diga! Deixa pra lá, sigo adiante...

 


Último parêntesis da loucura... – Imagem: arte da pintora Marisa Lacerda de Andrade. – Não me levo muito a sério, nem podia. É que uma hora dessas e pode aparecer coisa boa. Nem só de nó-cego vive os desinfelizes, acho. E foi: ela apareceu como se fosse a Bessie Coleman para aterrissar por perto com um sorriso de Elvira Lindo: Eu sei cair. Já caí muitas vezes... Ora, sei o que é disso. E de bom humor, antes que eu perguntasse, contou a sua história: procurava a irmã que foi roubada ao nascimento e nunca encontrada, promessa de extrema-unção materna, um tributo renovado quase todo dia diante da lápide lutuosa, a catatonia de se ver órfã hoje. Dei-lhe minha solidariedade. Havia mais: a sina Butterfly de 999 anos, amaldiçoada por ter abjurado a fé dos seus antepassados, o fracasso do amor justo na lua-de-mel, abandonada pelo amante, renegociada ao primeiro que nem apareceu, rejeitada por qualquer parentesco e pronta para o ritual do Seppuko. Vixe! Na horagá apareceu-lhe uma alma bondosa e me disse com a cara mais lisa que era eu o seu anjo da guarda agora para guiá-la. Logo eu! Sorriu, disse-me que eu salvei sua vida e, por isso, devia a mim toda sua existência. Nada, deixe disso. Olhou-me profundamente, fez o V com os dedos e mostrou-me o ventre nu. Uau! Mais disse Nelly Bly: Enquanto eu viver, terei esperança... Ah, não! Sim. Não adiantava sim ou não, ora. Seguimos como se nada tivesse acontecido antes: misturamos nossos talhos e dissabores, perdemos a hora e os caminhos, saudamos cada desencontro. Amanhã é outro dia, se alguém vê-la por aí, mandei lembranças, tá! Até mais ver.

Vem aí o PGM TTTTT. Veja mais aqui.

 


segunda-feira, janeiro 23, 2023

WOOLF, SRBLJANOVIĆ, DANTICAT, ARSAN, COLETTE & NAOMI WOLF

 

 Ao som dos álbuns O som e a música de João Pernambuco (Continental, 1979), João Pernambuco 100 anos (Funarte, 1983) – Antonio Adolfo & Nó em Pingo d’água, Lembrança de um carnaval (se\sd) e Baden Powell: João Pernambuco e o Sertão (Sesc, 2000), com as composições do violonista e compositor João Pernambuco (João Teixeira Guimarães – 1883-1947).

 

TRÍPTICO DQP: - A intromissão do verbo... - A cidade desperta sob a zoada do dia. A passarada faz festa para que eu viva e das profundezas vozes ecoam palavras soltas aos ventos num idioma estranho de dor e alegria. Flagro e capturo o murmúrio ao lavor, sem descurar significados e o que diz de Colette: A mão que segura a caneta é que escreve a história... O enredo paradoxal como os dias uns aos outros e cada verso é um exorcismo esgrimindo memórias. A paisagem é quase a mesma e se escrevo revelo o inaudito: existir é muito complicado - sentimentos extraviados pousam entre mal-entendidos à beira do mundo e não sou um consumidor de ilusões: sabe lá, há sempre a possibilidade de agrado ou ofensa. Quem dera não fosse assim, já dizia Edwige Danticat: Criar perigosamente, para pessoas que leem perigosamente… Escrever, sabendo em parte que não importa quão triviais suas palavras possam parecer, algum dia, em algum lugar, alguém pode arriscar sua vida para lê-las... É preciso manter a serenidade, reparar mais que o erro: a careta vira anedota. Não hesitar entre o que brota e o que se esconde, tudo é pra valer, só distinguir o bisonho e o denodado, a covardia abominada, a valentia desnecessária: o fraco nunca terá vez. É preciso ter coragem. Tudo o mais não tem a mínima importância, é só um verbo perdido sobre a cidade inventada...

 


Ironia do destino... Imagem: arte do artista visual Ricardo Bertacin Aidar, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. - Naquela manhã rompeu consigo mesmo e seu intento era autobiografar-se: não queria homenagens póstumas, pois, os outros sempre tratavam por um Zé-ninguém. Por isso negava o próprio nome, mesmo quando queria ser atleta de renome, guitarrista de banda de garagem, celebridade notória, tudo gorou, alimentava seus fracassos – o peso da família, a esposa o aguardava recolhida para o jantar, o quartinho dos fundos, as manchetes das notícias, a prima do meio sua paixão recolhida segredada, o labirinto subterrâneo e o pântano, seus longos monólogos e o réquiem por conta da desintegração familiar por fanatismos de toda ordem - a irmã que suicidou para se encontrar com o amor da sua vida, o assassinato de outra prima nua com o amante dentro do carro abandonado num matagal, a sobrinha que fora esquartejada depois que lhe arrancaram a pele, a prima Elizamar cabelereira carbonizada em Cristalina no Goiás... Esse o seu flagelo e recôndito sabia mais o que escrevera Naomi Wolf: A dor é real quando você faz as outras pessoas acreditarem nela. Se ninguém acredita nisso além de você, sua dor é loucura ou histeria... Assim, parece, fez um trato mefistofélico e sumiu sem deixar vestígios. Ninguém deu por sua falta. Desaparecido há dias, tornou-se deserdado com as graças alcançadas pela generosidade de algum algoz de sua antipatia. O que se sabe é que o veículo que dirigia findou atingido por um raio devastador. Quase desconhecido desceu ao mais completo esquecimento. Nem passava pela cabeça um dia lá depois de décadas seu nome votado na Câmara de Vereadores, o nome da rua, ironia do destino...

 


As outras das muitas dela... - Imagem: arte da artista russa Alice Tretyakova. – Para meu espanto ela apareceu no espelho como a Isabela de Virginia Woolf: os segredos de suas cartas e um diário no cadeado. Queria que eu soubesse de tudo com um poema de Cecília Meireles. Guardei a chave e comecei a desatar o laço de fita rósea dos tantos envelopes e prestes já a abrir a primeira das missivas, ela me falou da escada de Diotima. Ouvi-a atentamente sem que previsse apenas retardar minha leitura de suas confidências. Outras foram ditas: guardava na carne as dores dos mortos e a humanidade frágil de cada um dos que se foram, dizendo-me Biljana Srbljanović: Para começar, não fujo de mim mesma... Ainda construo os personagens do meu drama como inteiramente meus, inventados; eu os crio do nada, mas como pessoas de carne e osso. E procuro seguir alguma regularidade poética em que muitos motivos dramáticos sejam possíveis, lógicos e explicáveis; mesmo quando de fato não sabemos nada sobre isso. Isso é o que era importante para dizer... Os tempos são assim, conturbados; coisas tristes acontecem... Ouvi mais balbuciar: São inclementes demais para o perdão. Recompôs-se. Então, aproximou-se e senti a temperatura do seu corpo. Com um sorriso largo começou a estalar seus dedos e estrelas saíam ao sopro para longe, aos céus e constelações. Disse-me Emmanuelle Arsan: Assim que me instalar, voltarei a estudar as estrelas. Daí deu-me a mão a mostrar como ouvir a respiração das coisas, pedras e terras, o pulmão da vida; cochichou que queria ser xexéu livre aos ventos longínquos pelas nuvens de Andrômeda. Mas, tão longe, quem iria... Levou-me até sabê-la apenas pela caligrafia no meio da noite. Até mais ver.

Vem aí o PGM TTTTT. Veja mais aqui.

 


segunda-feira, janeiro 16, 2023

RAQUEL LANSEROS, HALINA POŚWIATOWSKA, ADELA CORTINA, DONA DUDA DA CIRANDA & ANA DAS CARRANCAS

 

 Ao som dos álbuns Eternity and a Day (ECM 1998), Trojan Women (ECM 2001) e Tous des Oiseaux (ECM 2019), da compositora grega Eleni Karaindrou.

 

TRÍPTICO DQP: - Um dia e a eternidade... Chovia bastante e a cidade foi engolida como se roubasse o meu almoço e sequer soubesse no que me tornei. Uma criança estranha me dizia da vida como se eu cumprisse o roteiro na pele do Alexander de Theo Angelopoulos, recitando versos de Dionýsios Solomós: ... eu tenho medo \ Dos Mortos possam despertá-lo \ Silêncio, meu filho, os mortos \ seguram firmes em suas lápides!... Deu-me uma carta dos dias felizes e eu carregando o fardo de quantos janeiros pelos caminhos de Byron e o conselho de Goethe: entregar definitivamente a alma ao demônio. E já. Lá ia eu pela itinerância sem saber qual hospital me esperava nos olhos de Sêneca: ...mostremo-nos satisfeitos por tudo o que nos foi dado gozar... Era o meu confinamento e a eternidade se esgotava em um único dia, tudo estava suspenso na minha diegese como no verso de Raquel Lanseros: Quisera ter sido o horto do poeta... Só que muitas vezes a vontade não basta... O tempo também para mesmo quando passa inadvertidamente pelo presente nebuloso de todos os passados reconectados pelos olhares, gestos e sombras, dores e angústias. Lugar algum seria, sem praia, nem praça, nem pedestre na faixa de domingo – o ermo da existência... cedo ou tarde, eu sei, tudo termina.

 


Manhã de domingo... - Hora de voltar e eu sabia que a maldição do Horla de Maupassant me esperava em casa depois que enlouqueceu generais e golpistas com a mentalidade da turba na aporofobia de Adela Cortina: Os pobres não podem aspirar à felicidade... Naquele dia um comboio passou e ninguém se deu conta ou não se quis notá-lo. A passagem era escandalosa e escondia o terror enlouquecido: a epidemia da loucura. O alarido era ensurdecedor, repetiam não serem terroristas, sonâmbulos de drogas Z, seguindo os conselhos do marido da Marcela. Acontece que depois de tudo o que aquela criatura fantasmagórica queria era só me atormentar e “... fazer com o homem o que fizemos com o cavalo e o boi: sua coisa, seu servidor e seu alimento”. Já sabia que viera apenas para domar a humanidade, bebendo a vida das pessoas que definhavam febris pela noite dos pesadelos, e agora seguiam hipnotizados, vampirizados. Eu nunca fui um cavalheiro da Normandia e li a carta de primeira porque servia pro diário inacabado. Diante do espelho não vi o meu rosto, a jarra vazia era o incêndio da minha alma com toda a minha vida nas lembranças mortas.

 


Caminho do Leste... - Como me socorrer era nada mais restar. Quando sozinho havia o ermo e tudo podia acontecer. Sim. De repente Baubo chegou de uma fábrica estalar, montada num javali alado, com ramos de murta às mãos. Fez o divertimento e levantou a saia para mostrar o caminho na sua genitália. Glória! Um brinde das taças do kykeon. Tocou sua harpa primaveril na fonte do Rheitoi para me ensinar segredos órficos e eleusinos. E me fez dormir em paz sobre seu corpo divino com sonhos pelas constelações. Ao despertar ela trouxe Iambe com sua nudez para me oferecer um gole do sagrado vinho de cevada e juntas me ensinaram a viver alegria, morrer sem medo e ser no ciclo da terra. E me ensinaram a triunfar no pó e no vento com o Hino a Deméter e acabar definitivamente com a seca do sertão. E me embalaram com Dona Duda da Ciranda e me presentearam a arte de Ana das Carrancas. Já anoitecia quando Baubo me levou ao ponto nemo como se fosse Lea Massari com gestos de solidão, enquanto me recitava os versos de Halina Poświatowska: Procuro-te no pelo macio do gato \ em pingos de chuva \ numa cerca de estacas \ e, encostado no amável poste, \ obscurecido pela luz do sol \ - uma mosca numa teia de aranha - \ espero... Chegamos ao Telesterion e lá me mostrou que tudo passará, as muitas hestórias nas estações do ano em La Rinconada, onde me deitou na fogueira da imortalidade e me deu sementes de romã para que eu pudesse um dia segui-la pela caverna Plutoniana com a tocha dos hierofantes: o juramento da jornada da alma, o segredo, libações e as coisas mostradas do deiknymena pela Nebulosa do Cone. Eu mais que sabia: a partir dali tudo poderia ser desfeito, o que aprendi da solitude e o Sol pela estrada do Leste. Até mais ver.

Vem aí o PGM TTTTT. Veja mais aqui.

 


segunda-feira, janeiro 09, 2023

RADUAN NASSAR, MARÍA FERNANDA AMPUERO, ERIN HILL & ISA PONTUAL

 

Ao som dos álbuns Frost As Desired (Gridley, 2002), Girl Inventor (Gridley, 2012) e Christmas Harp (Goldenlane, 2016), da harpista, compositora, cantora e atriz estadunidense Erin Hill.

 

TRÍPTICO DQP: - O pêndulo na roda do tempo... - O tempo passa e a cada passo o passado se refaz vivo: sou imigrante na cidade dos desumanos. Exorbito de tudo porque me refugiei no quarto escuro e era preciso que eu estivesse lá com paradeiro perdido nas paredes vivas, revelando silêncios que vazavam por meus poros no feixe das rotinas e mais vozerio difuso das visitas, os soluços e ressonâncias, como se motejassem da minha ausência. E não foi sem aviso que Raduan Nassar me advertiu: Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido... Quantas vezes nem conto fiquei sozinho neste mundo pelas alturas, insetos e degraus, na minha vida pródiga de quem perdeu colheitas e mananciais, o que sou de incorrigível nas águas inflamáveis do tempo. Se tudo me mostra almas mofadas apodrecidas entre ossuários e carcaças, errabundo a cada passo me distancio cada vez mais da cidade e me permito ao menos romper a roda das dimensões porque outros sábados virão...

 


Apesar de doído, desesperança jamais... - Imagem: arte da desenhista, gravadora e pintora Isa Pontual. - Os pássaros chilreiam no que fora manhã quase tarde e a terra girou cada vez mais rápido no meu voo multívago pelo inverno quente, verão frio afora, quase nem dá pra ver a escatológica derrocada. Não tive meu contento ainda mais misericordioso sou pela confraria dos enjeitados e tendo que enfrentar a escória da cloaca infecta dos olhos atrofiados - cenho e sobrolho dos filhos de Caim, verdadeiras estátuas andantes, manequins de gelos móveis, sentimentos de gesso, o frio de ossos sepulcrais de mármore do Paternon, a casca dos insensíveis, a carapaça anêmica pros reveses no estigma da insônia, os que tanto querem e são secos no sono da memória, enquanto tudo definha e se precipita e sou jogado no granito ao norte da Guatemala. María Fernanda Ampuero me avisa: Voltar, todos sabem, é impossível. Depois dos abraços e das lágrimas vem o verdadeiro reencontro, estar frente a frente com eles quando já somos outros, enfrentá-los quando não sabemos quem são... Onde está agora aquele sentimento para ter perdido a fé na humanidade, outra vez seria lá longe como sempre quase invisível crueldade, mas que um dia pudesse maior que o desespero de jamais alcançar. Nada comedido sei a historia de cada um encomendando as horas...

 


A lâmina da paixão... - Imagem: arte da artista finlandesa Polina Kharlamova. - Saí de mim e fui dar uma volta, deambulante iterativo, pálin! Um cometa rasgou a galáxia com a velocidade de superluminais: era noite de Onã e o trem passou fumegante, a escuridão e o silêncio. De distante e misteriosa nuvem apareceu a Lua da Loba que saiu da rota e vagava como uma luz intraglomerada pelo espaço intergaláctico. Esfreguei as vistas e era ali a estrela Polaris como se fosse a irmã do lado, que me parecia severa quando não áspera desde a minha mais tenra idade, agora reaparecida como se tivesse sido ejetada pelo arroto gigantesco de um buraco negro supermassivo. Não cruzei os braços, nem virei as costas, estava surpreso, deveras. Ela havia chegado do inverno marciano pelas ondas gravitacionais com um zumbido do fundo do universo, pois estava na constelação de Ophiuchius e de lá pra cá viera trazendo às mãos uma opala marciana, um Cystisoma - uma pulga-de-areia marítima, um cristal alaranjado kyawthuita do Mogok de Mianmar, pianitas e outros cristais hexagonais vermelh0-escuros e outros rosados. Queria me impressionar e conseguiu, não pela parafernália que mostrou, mas por dizer que a neblina fantasmagórica são almas perdidas. Insistiu no relato e concluiu: Maktub. Mais disse Henrietta Swan Leavitt: Uma vez que as variáveis estão provavelmente quase à mesma distância da Terra, seus períodos estão aparentemente associados à emissão real de luz, conforme determinado por sua massa, densidade e brilho da superfície... Não entendi nada e me tomou de assalto ao expor o escaravelho no seu ventre nu. Era como se invadisse por meus gânglios e interstícios para me levar flutuante para a copa de uma árvore frondosa. Estava nua e convidativa, brincava com meu sexo como se fosse uma estrela quark só para me dizer Cecilia Payne-Gaposchkin: Sua recompensa será a ampliação do horizonte enquanto você sobe. E se você conseguir essa recompensa, você não fará outro... O que dizia era como se raspasse a pele com a pedra esfolando a carne para sangrar com as nossas diabruras versáteis. Estava dominado e traquinamos trocando o dia pela noite e sucessivamente, ouvindo-a dizer que era Masha Amini quando um fuselo voou e me ofertou as pétalas do prazer. Depois do gozo ressuscitava Anna Laura Costa para me dizer Alessando Manzoni: As palavras fazem um efeito na boca e outro nos ouvidos... E se desfez em minhas mãos para se tornar a réplica da amada Indrani do viúvo Tapas Sandilya, a Alma de Kokoschka. Com as minhas mãos vazias queria só revê-la não mais uma vez apenas, nada mais, e no calor da hora olhares recíprocos recitar o poema do Torquato Neto na música de Edu Lobo: Adeus, vou pra não voltar... Até mais ver.

 Vem aí o PGM TTTTT. Veja mais aqui

segunda-feira, janeiro 02, 2023

SARAMAGO, SELVA ALMADA, JOSUA GREENE, OUIDA & MARIANA ENRÍQUEZ

 

Ao som do álbum Caminho de dentro (Tratore, 2012), da pianista, compositora, arranjadora e educadora Lis de Carvalho.

 

TRÍPTICO DQP: - As cores voltaram... - Quatranos, cinco, quase seis ou mais, nem sei direito, não perdi o esperançar, mesmo quando Selva Almada alertou logo no início da derrocada: Tá certo. Bem-vindos ao inferno...Ela simplesmente reiterava o que dissera Ouida: Afinal, são as ninharias da vida que são chatas... Felizmente as flores reapareceram e eu tive a chance de renascer, como se não mais tivesse que revidar 0 ódio tão recente e insistentemente apagando faces que sequer reconhecia e desaparecessem os monstros perfumados e bem-vestidos por golpes e mortes, gente da minha infância que não sabia do céu azul carregado de nuvens com outras luzes. Recolhi a primeira carta de janeiro que era nada mais que meu solilóquio matutino e que se perdera ao ser escrito na areia dos lamentos solidários. Outro era agora o mundo na janela da tarde domingueira, o que dava para esquecer por um momento do lado sombrio das memórias ou da tão repetida volta doída ao passado. Também podia reviver noutra carta, outro amanhã: pedra, ouro, coração. E mais me dava conta de quantas cartas esquecidas às reflexões de jornada à sombra da amendoeira, pois, sabia: um passo de cada vez na fogueira do mundo. Das lições da vida e ajuste de contas a gratidão de palhássaro voo nos caminhudos de fogáguas e terrares. Afinal, o Sol nasce paratodos...

 

 

Passando a limpo, mudança de pele...- Imagem da exposição Resquícios de nós, da escultora e artista visual Thina Cunha. – No meu quarto escuro tudo transitava por exoplanetas da estrela anã vermelha GJ1002, quando não mergulhava na galáxia Alcyoneus, como se fugasse dos horrores dagora, porque Josua Greene anunciava peremptório: Esse é o problema moral moderno, nós contra ele... Quando grupos discordam quanto ao que é certo, precisamos reduzir a velocidade e trocar as marchas de forma manual... Eu sabia quais algozes se arvoravam na esquina quando menos se esperava: passagens estreitas, outras intermediações de ventos e gestos. Sequer tive um pé atrás pro desconhecido, mesmo incapaz de urdir as mil e umas insônias. O que doía era a cegueira que Saramago narrara no meio de muitos: Há mil razões para que o cérebro se feche, só isto, e nada mais, como uma visita tardia que encontrasse cerrados os seus próprios umbrais... Hostilizar o que se ignorava não seria nada salutar, outras eram as desrazões: quanta agnosia propositalmente redibitória, amauroses de permeio pelas indiferenças e ruindades. Outra seria se soubesse o que virá. Na verdade, não teria graça alguma porque nunca fui de pisar em chão alheio, mesmo tido por estrangeiro em meu próprio solo. Jamais hostilizei dessemelhantes, sempre um sorriso em qualquer recepção. De nada adiantava por quantas vezes aprendi ao relento em minha própria casa. A vida & a sorte por dois tostões, apenas a solidão vespertina que perorava quase suicida entre caras e máscaras de perdidas fisionomias...

 


Desiderato... – Imagem da artista russa Sasha Robinson - O amor de passagem não morreu ontem, quase foi sepultado vivo e uma estrela foi totalmente devorada por um buraco negro nas proximidades do coração da Via Láctea. Foi nesta hora que ela apareceu como se fosse a sucuri gigante de Lagoa da Prata e nem deu tempo de atentar sobre o que dissera Paul Bourget: Há sempre, nas mais sinceras confissões das mulheres, um cantinho de silêncio... Um homem nunca fica curado de uma mulher senão quando chega o dia em que nem mesmo tem a curiosidade de saber com quem ela o esquece... Logo surpreendeu com suas feições transformadas de exuberante dama e a lua desceu aos seus pés de Afrodite que desfilava com o eflúvio de brugmansias – a flor-trompete – e trazia um molho de nogueira-do-Japão aos braços, porque as horas dançavam sobre as flores tenras de Creta. Eu queimava de amor enquanto ela me dizia que era uma das duas filhas de Loth, sobrevivente da tragédia de Sodoma e Gomorra... Fez-se amante com o passar do tempo e deitou-se comigo com um verso de Safo: O homem belo só o é quando o contemplam, mas o homem sábio é belo mesmo quando ninguém o vê... Em meu corpo se fez Hilda Furacão para motejar na alcova Mariana Enríquez: Às vezes penso que os malucos não são pessoas, não são reais. São como encarnações da loucura da cidade, como válvulas de escape. Se eles não estivessem aqui, todos nós nos mataríamos ou morreríamos de estresse... E gargalhamos entre lençóis de sonhos até retomar compenetrada seus olhos sobre mim e se aproximar confidente para ler a carta prelúdio - epílogo, a me dizer somente da esperança de amanhã diferente e que no fim do túnel visualizava: luz, vida e amor... Folguei em tê-la inteira noitedias desnudos aos abraços e chamegos, como se fizéssemos deste um país melhor paratodos&todas. Até mais ver.

 

Vem aí o PGM TTTTT. Veja mais aqui.

 

KARIMA ZIALI, ANA JAKA, AMIN MAALOUF & JOÃO PERNAMBUCO

  Poemagem – Acervo ArtLAM . Veja mais abaixo & aqui . Ao som de Sonho de magia (1930), do compositor João Pernambuco (1883-1947), ...