TRÍPTICO
DQP: - Amálgama do corrimão invisível... – Um passo e senti o giro descompassado da Terra. Que coisa! Não
pode ser. Tonteei um pouco, era a sensação de que o tempo parava ali naquele
instante. Não pisei em falso, mas era como se o chão derruísse numa vertigem
abissal. E se não endoideci de vez, estava mais cônscio que nunca! Logo me veio
à cabeça a notícia de que o núcleo terrestre havia diminuído e parou
repentinamente, girando então em sentido contrário. Acho que foi essa troca de
movimento que provocou a minha tontura. Pelos arredores a minha atenção, sabia
que havia apenas 90 segundos no Doomsday Clock. Tem contagem pra tudo, até pra esquecer. Sabia: o planeta estava de
cabeça pra baixo e colapsado com a falência da civilização, o fracasso da
humanidade. Já era esperado, falta de aviso não foi. Então logo ajeitei pra me segurar
no que pudesse porque não havia mais a força gravitacional e poderíamos todos ser
jogados no abismo sideral. Já pensou... Entrei quase em pânico e me precavia,
nem sei como. Sabia que todos, até o sobrevivencialismo dos
endinheirados e os misteriosos stakeholders ultrarricos estariam pendurados nos seus bunkers blindados subterrâneos. Claro, inevitável não despencar junto com
todas as moedas e cédulas amealhadas. Tudo, inclusive sonhos e pesadelos, se
perderia no vento para ser tragado por um buraco negro ou esmagado por uma
poeira meteórica, ou sei lá mais que possa nos arrebentar de vez. Logo me veio
à mente o que dissera Douglas Rushkoff no seu Survival of the Richest: Invista em pessoas
e relacionamentos... Tarde demais, o outro já pulou fora. Cada um se segure como puder, não havia mais inquietações e evasivas para
o caso, nem mais adiantaria se aperrear com o colapso ambiental ou aquecimento global,
nem fugir do vírus irrefreável com o aumento dos níveis marítimos, o fogo dos
incêndios e queimadas, a loucura das ambições, porque a sensação que findou é a
de que o resto de nós fosse deixado para trás, ao deus dará. Roberto Bolaño Ávalos ecoava: Apenas no caos somos concebíveis... Pois
é, a forma seguia o pensamento, isso enquanto eu
passava a minha quase clandestina vida a limpo. É, parece que não vai dar pra
me salvar. Algo mais ainda perturbava: uma pedra elétrica do Congo no sapato
mendicante, a ponto de claudicar na impossibilidade de romper o cerco das
agruras de viver numa província belicista. Eita! Logo agora, mais isso. Sozinho
na cidade desabitada – acho que todos escaparam, sou talvez o único a se lascar
no dédalo da minha própria insanidade. Sabia: nada é pleno, tudo se reconstrói... Vamos
nessa...
Se
não endoidou tudo de vez, está perto disso... Imagem: arte da artista visual Cibele Sarkis Carneiro, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. – Peraí! Ora, que fatalismo é esse! – teria eu me deixado levar por
teorias conspiratórias, ah não... Não, nada disso! A tragédia é bem real, mas a
gente tira por menos aliviando a barra. Sei disso. Quem sabe um milagrezinho
duma hora pra outra, vai ver. Afora o que diz Mairead Maguire: Tudo bem ter medo, mas o medo é
diferente. O medo é quando deixamos que o medo nos impeça de fazer o que o amor
exige de nós... Tá! Mas
pense comigo: tantos anos pelos degraus ladeira acima, passo a passo morro
abaixo e toda aspiração lá no final de uma longuíssima reta do asfalto, distância
quilométrica. Pense numa coisa longe, multiplique por mil, mais pra lá, acolá
mesmo, deu pra sacar, né. O que importa é que dá para quase visualizar lá no
finzinho, o que prospera uma sobrevida. Então, acelera a andada. Sim, mais
depressa e não se deve importar se uma enchente avassaladora aplacar o tiro ao
alvo. Nada demais, um dia as águas baixam e retoma a jornada. Não se deve nem
esquentar se um incêndio começar a torrar tudo, oriundo
das queimadas no canavial. Paciência, nem leve em conta a força do destino. É só
assentar a poeira e relevar se, por acaso, um caminhão desgovernado surgir do
nada levando tudo pela frente. Ufa! Foi por pouco! Ao voltar pro trajeto não
deve se irritar, porventura, um trem descarrile passando por cima, foi. Respira
fundo e não maldiga a vida se um navio fabuloso invadir o rio destruindo a
ponte. E agora, não sei nadar! Espere, um bote logo aparecerá indagando se não
sou um tipo de escorpião. Oxe, claro que não; só quero ir pra outra margem. Agora
sim, do outro lado e a andadura recomeça. Por pouco não fui esmagado: um avião dos
grandões caiu em pleno trânsito. Vôte! Nem morri, nem soltei palavrão! Tudo
removido por guindastes, bombeiros e saqueadores. Estrada livre, vambora. O
inesperado: um OVNI roubou a cena para me abduzir bem no meio do meu surto de
celebridade, o malsucedido tão destoante, o inferno dentro de mim, o imponderável
jamais experimentado e tudo tão inconcluso. Exageros à parte, todo mundo pode
passar por essas coisas ou quase. Chego a me rir com a leseira – ninguém seria
tão azarado assim, eu que o diga! Deixa pra lá, sigo adiante...
Último
parêntesis da loucura... – Imagem:
arte da pintora Marisa Lacerda de Andrade. – Não me
levo muito a sério, nem podia. É que uma hora dessas e pode aparecer coisa boa.
Nem só de nó-cego vive os desinfelizes, acho. E foi: ela apareceu como se fosse
a Bessie Coleman para aterrissar por perto com um
sorriso de Elvira Lindo: Eu sei cair. Já caí muitas vezes... Ora, sei
o que é disso. E de bom humor, antes que eu perguntasse, contou a sua história:
procurava a irmã que foi roubada ao nascimento e
nunca encontrada, promessa de extrema-unção materna, um tributo renovado quase todo dia diante da lápide lutuosa, a catatonia de se ver órfã hoje. Dei-lhe
minha solidariedade. Havia mais: a sina Butterfly de 999 anos, amaldiçoada por
ter abjurado a fé dos seus antepassados, o fracasso do amor justo na lua-de-mel,
abandonada pelo amante, renegociada ao primeiro que nem apareceu, rejeitada por
qualquer parentesco e pronta para o ritual do Seppuko. Vixe! Na horagá apareceu-lhe uma alma bondosa e me disse com a cara
mais lisa que era eu o seu anjo da guarda agora para guiá-la. Logo eu! Sorriu, disse-me
que eu salvei sua vida e, por isso, devia a mim toda sua existência. Nada,
deixe disso. Olhou-me profundamente, fez o V com os dedos e mostrou-me o ventre
nu. Uau! Mais disse Nelly Bly: Enquanto
eu viver, terei esperança...
Ah, não! Sim. Não adiantava sim ou não, ora. Seguimos
como se nada tivesse acontecido antes: misturamos nossos talhos e dissabores,
perdemos a hora e os caminhos, saudamos cada desencontro. Amanhã é outro dia, se
alguém vê-la por aí, mandei lembranças, tá! Até mais ver.
Vem aí o PGM TTTTT. Veja
mais aqui.