SOLILÓQUIO
SUICIDA - Em minhas mãos espalmadas, sei, linhas e arranhuras, cicatrizes outras e muitas de arame farpado: todos
os dias morri um pouco no desamparo da solidão. Nada deu certo e, quando valeu,
passou que nem vi. Sei lá quantas malas arrastei, fui e voltei, perdi a viagem de mãos abanando,
a face no chão. De mim, aos pedaços, tudo espalhado no chão. Nem preciso catar,
não mais desespero por escombros. Bem-aventurado os que choram, meus olhos
estão secos, mesmo que deplore. Já não durmo, nem sei que dia é hoje. Acaso somos
isso, desastrado, coagido, errâncias. Sinto nos meus ossos a carnificina da
minha própria carne emaciada. As coisas começam assim do nada, vai ver, aos
sobressaltos, tapetes puxados, lugar de injustiças, o ressentimento de tudo
pela humilhante inatividade forçada que estagna e frustra, açoitado pelas
adversidades, aniquilado, cronicamente deprimido, como se o ordálio o revide
por sobreviver inconformista. Nada mais há. Ao longe quase nem vida mais, só o
barco de Caronte com o assombro de Bocklin diante do rastro medonho da monstruosa
inimiga. Não mais, aprendi com a Ars moriendi, e sei que ela vem, como disse
Horácio, com suas asas negras e a rede para me caçar. Estou aqui, inerme e só
pelo vale da sombra, pronto para minha última destruição, perdi o cocheiro
real. O rei está morto. Já sei e lá vem ela, a filha da noite e irmã do sonho que
me deixou entre estercos, sem saída, mergulhado no lodo, pendurado pelos
calcanhares, de cabeça degradada para baixo como castigo dos traidores no
pelourinho, as mãos amarradas às costas entre os galhos que sangram e o abismo.
A mim nada mais que o tempo e a espera por força vencida de quem não sabe de
onde, a minha crucificação. Ela vem como o quarto cavaleiro do apocalipse
galopando furiosa de um lado a outro com sua espada empunhada. Vem de não sei
mesmo onde com o dedo apontado para mim, a desgraça de Hopkins para a qual eu
nasci. Nada mais resta, dou-me o pescoço ao cepo. Sirva-se, satânica tentadora,
agora minha única amiga e companheira, essa fatal conviva pavorosa, esteja eu
pronto ou não, ela vem para o encontro em Samarra, para se banquetear de mim. A
quem recorrer, ninguém de plantão, só ao ridículo público. Minha mão cheira a
mortalidade e à mercê do precipício. Saberei quando lá chegar sem bagagem,
nenhum pertence, tudo o mais ficou para trás, abri mão de tudo, a coragem pro
sacrifício: meu esqueleto rodopiando feito um dervixe, brandindo a segadeira ao
próprio prescoço na frenética dança da morte. A minha mão, todas as culpas, o
fio de alta tensão. Quase nenhuma hora, todos os remorsos, a dor de não saber
vencer, perdas por demais. A minha mão e o fio de alta tensão, rente. Quem
sabe, o crime máximo, a fuga covarde, ato inútil que apagará uma existência sem
sentido e desprenderá das amaras, a suprema libertação. Não há por que esperar,
será agora ou nunca, vou antes que seja tarde ou me arrependa. Não é preciso
dizer adeus, ninguém à despedida. Vou. Eu também gostaria de outra morte,
Eliot. E a mão aperta o fio de alta tensão. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS
[...] Estudar
é, realmente, um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica, sistemática.
Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a. Isto
é, precisamente, o que a “educação bancária” não estimula. Pelo contrário, sua
tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito
investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a
ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade. Este
procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores,
pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna
puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações.
O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização.
Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização
do mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio. Numa
visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente
desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua
significação profunda. Esta postura crítica, fundamental, indispensável ao ato
de estudar, requer de quem a ele se dedica: a) Que assuma o papel de sujeito
deste ato. Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe
face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse
uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticadamente”, procurando
apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma o autor.
Se se transforma numa vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele
retira do texto para pôr dentro de si mesmo. Estudar seriamente um texto é
estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento
histórico-sociológico do conhecimento. É buscar relações entre o conteúdo em
estudo e outras dimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de
reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto.
Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se
ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica em face dele. A atitude
crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade,
da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão
de ser dos fatos cada vez mais ludicamente. Um texto estará tão melhor estudado
quanto, na medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte,
delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara
a significação de sua globalidade. Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos
centrais do texto que, em interação, constituem sua unidade, o leitor crítico
irá surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice
da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao quadro referencial de
interesse do sujeito leitor. [...]
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer
a necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em condições de
entendê-lo. Não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi
alcançada. Impõe-se, pelo contrário, a insistência na busca de seu
desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente.
Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado. Não se mede o
estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros
lidos num semestre. Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e
recriá-las. [...].Trechos de Considerações
em torno do ato de estudar, extraído da obra Ação Cultural para a Liberdade (Paz e Terra, 1981), do educador, pedagogista e
filósofo Paulo Freire (1921-1997). Veja mais aqui,
aqui e aqui.
HOMENS & CARANGUEJOS
O espetáculo teatral Homens e
caranguejos, baseado na obra homônima do médico, sociólogo,
antropólogo e geógrafo Josué de Castro,
pela companhia Cia Duas de Criação,
dirigida pela recifense Luciana Lyra
em parceria com sua conterrânea Viviane
Madu, e o Coletivo Cênico Joanas
Incendeiam (SP). Na trama, Josué apresenta aspectos presentes na realidade
cotidiana do homem sertanejo dos dias de hoje: deslocamentos forçados pela
seca, a fuga do árido (climático, econômico e social) para o centro e a busca
por uma condição social mais digna. A trama gira em torno de um menino de onze
anos, que chegou aos mangues de Recife (PE), com sua família, fugindo da seca
de Cabaceiras após a morte do irmão mais velho. Sua vida se divide entre ser um
catador de caranguejos, a vontade de brincar e a amizade com um ex-seringueiro,
que vive no seu mocambo com suas pernas imóveis. Referências de autores como
Hélio Oiticica, Glauber Rocha, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior,
Gilberto Freire e Darcy Ribeiro estão presentes na montagem. No campo musical,
espaço aberto para o côco e o cavalo-marinho, ritmos tradicionais nordestinos.
Veja mais aqui.
A FOTOGRAFIA DE BOB CARLOS CLARKE
A arte
do fotógrafo e documentarista britânico-irlandês Bob Carlos Clarke (1950-2006). Veja mais aqui.
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