PEDAÇO DE HISTÓRIA
– Para quem não sabe Alagoinhanduba não
está no mapa porque não entrou na história. Qual a razão? Seguinte: em 1535, o
capitão-donatário Duarte Coelho assumiu a Capitania de Pernambuco, tratada por
ele por Nova Lusitânia. Tudo recebeu do rei de Portugal, de mão beijada, por
seus serviços prestados. Todo engalanado ele chegou acompanhado de sua fidalga
esposa, Brites de Albuquerque, do seu cunhado Jerônimo e de uma parentela que
não tinha mais fim, todos tentando a sorte, imagine. Dessa vez era diferente de
outra viagem que ele mesmo fez em 1503, quando aqui esteve, então filho
bastardo de membro duma antiquíssima família da nobreza agrária do Entre-Douros
e Minho, criado por uma tia materna que era prioresa do Mosteiro de Vila Nova
de Gaia. Veio, então, na companhia do pai que era escrivão da Fazenda Real e
que se tornou comandante da expedição, juntamente com a plebeia Catarina Anes,
sua mãe. Logo retornara. Passaram-se os anos e, agora sim, como um nobre que
conseguira apagar as máculas do passado, ele desembarcava de nariz empinado e
senhor de todas as ordens, manda-chuva da administração geral e do cultivo da
cana-de-açúcar, instalando engenhos de açúcar, tabaco e algodão, botando ordem
e pintando o sete, tendo por financiamento a garantia do capital judeu e
protestante, oriundo do tráfico de escravos da Guiné. Mas, tinha uma bronca: a
arenga entre ele, índios e colonos só veio mesmo amainar, com a união do seu
cunhado Jerônimo com Maria, a filha do cacique Arcoverde dos tabajaras. Uma dor-de-cabeça
a menos, pois ainda restavam caetés e franceses, o que já era uma barra pra lá
de braba. Pois bem, contando com a ajuda dos céus, foi isentado de prestar
contas ao governador geral da Bahia, Tomé de Sousa, o que quase mata o maioral
do coração. Por conta disso, mandou ver na capitania e tome trupé. Foi por esse
tempo que teve um confronto com um grupo de aguerridos caetés, e disso foi atingido
por uma flecha. Que coisa! Porém, ao se recuperar recebeu o chefe tabajara,
Tabira, que trouxe os prisioneiros com pedido para sacrificá-los. Aproveitando-se
da captura deles, sua intenção era outra, vez que, entre eles, estava ela, Iangaí,
Ó linda. Apenas ela foi poupada, os demais foram pros quintos dos infernos ou
sabe-se lá pra onde. A prisioneira passou a ser o centro das suas atenções, estava,
deveras, perdidamente apaixonado. Ela, nada, virada na capota choca, revoltada,
era só desprezo porque seu coração estava destinado a Camura, o seu amado caeté.
O donatário usou de seus poderes e, como não poderia ser diferente, partiu pra
cima dela, incontrolável, vuque-vuque e a estupra, mesmo com os protestos e
rejeições dela. Ó linda, assim seviciada todas as noites, até o dia em que a índia
Maria de Jerônimo confidenciou: Ela vai matá-lo. Ele ignorou, estava apaixonado
demais para ser tocado pela repulsa da amada, mas precaveu-se. Passou-se o
tempo e após muitas fungadas e teitei, ela pariu seu filho que é tomado por
Maria para o donatário. Aí, ela foge e se mata, encontrada morta dias depois e envolta
em folhas de timbó. Oh não! Em sua homenagem ele funda Olinda da Nova
Lusitânia, que até então não tinha esse nome não, era local onde se instalava a
aldeia Marim dos Caetés. A criança desapareceu e ninguém sabia nada do
paradeiro dela. Como é que pode isso? Babau. Tome anos. A povoação é promovida
a vila em 1537, em uma grande festa para o poderoso. E tudo correu normalmente
até ele bater as botas em 1554, lá em Portugal, sem saber notícias do filho
perdido. D. Brites que assumiu tudo por aqui, não queria ouvir falar nem de
longe do bastardinho sumido, apenas dos dois filhos, Duarte e Jorge, que
estavam estudando na metrópole e logo retornariam para o seu seio. Pois foi.
Sem que ninguém desse por nada, o adulterino cresceu ninguém sabe como e
tornou-se o destemido mameluco que arrasou sesmarias e fortunas, dizimou
índios, brancos e negros que encontrasse pela frente, adultos, meninos e velhos,
tudo sacrificado; apenas por cativeiro as mulheres, senhoras e filhas dos
subjugados. Formou um verdadeiro harém, formado por um plantel de brancas,
negras e índias para suas orgias por noites e dias. Mais tivesse ou desse. Desconhecia
da honra, ignorava sentimentos e apenas matava só por prazer e festa, pois pegava
bicho que fosse de mão – jacaré, tubarão, coisa ruim, o que fosse -, enfrentava
cruzeta na caixa dos peitos, e tinha por café pequeno quebrar o pescoço alheio.
Vôte! Diziam: Esse tem parte partes com o tinhoso! Se não for o próprio, gente!
Muitas diziam dele de corpo fechado, pactuado com o demo, espírito ruim, coisas
e tais. Parentes, para ele, não tinha, nem se identificava com branco ou índio,
muito menos com qualquer semelhante na face da terra, passasse, matava. Teve
por alvo a vida toda, afora abusar das mulheres que emprenhavam bruguelos aos
montes, sacrificar quem atrapalhasse seu passeio, desbancar qualquer pé de
gente metido a besta, principalmente, o de retomar todas as sesmarias doadas
pelo pai, assumindo para si toda a capitania e até terras outras mais para as
bandas do norte e de outras capitanias. Isso nem contava vitimar-se numa noite
invenosa de priaprisma, no meio de um coito ineivado em cima de uma índia
tarada, morrendo a bem da salvação dos que conseguiram escapar de seu poder e fúria.
Todos os seus domínios foram resgastados um por um pelo primeiro que chegasse,
restando, coitada, à Alagoinhanduba, simplesmente, aquele que ninguém queria
por ser amaldiçoado e que ainda hoje é demarcado como seu espaço territorial, tão
ínfimo, chão esse esconjurado secularmente por ter sido a sede do poderio desse
insano. Por conta disso, a cidade sequer figura no mapa, justo porque foi
ignorada pela história. E vamos aprumar a conversa, meu! © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS
O amor, não a guerra. [...] O amor, não a
guerra, isso requer talento demais. Um poder que se acha no povo, uma relação
positiva com a vida que falta aos intelectuais, burgueses, militares e
políticos. Àqueles que impuseram uma cultura da sexualidade torta, sadismo,
masoquismo e não sei mais que outras máquinas de evitar os exauridos; àqueles
que ensinam às crianças a patologia do erotismo para esconder as delícias
delicadas da normalidade. É preciso aí uma forma tranquila, quieta, sem
vontade, estável e serena como uma árvore. A ternura. É preciso um saber, esta
felicidade vital que dá tudo num sorriso, a gentileza, esta alta genialidade de
grandeza dentro da relação corporal. [...] A filosofia se faz precisa por completo, a verdadeira, aquela que temos
pés na terra e que se decifra como sabedoria do amor, uma percepção atual da
onitude do cosmos, todo o saber humano, mesmo se o ignoramos e o ensinamos,
mais o incêndio ardente do patético. [...] Ela não tem nem mesmo necessidade de reprimir a sexualidade, isso
acontece espontaneamente. Como se, ao contrário, a maioria não fosse levada a
isso, poucos terão tido a primeira ideia de fazê-lo. Vamos, vós não pensais
nisso; se os poderosos do Eros chegassem amanhã ao poder, a humanidade
padeceria de vergonha. Uma tal transvaloração, hoje em dia salvadora, obrigaria
todos os dominadores da história a se esconderem nos canaviais.
Trechos de Traição: a tanatocracia, extraídos da obra Hermes, uma filosofia das ciências
(Graal, 1990), do filósofo francês Michel
Serres, evocando a figura do deus grego Hermes,
o mensageiro, intérprete da vontade dos deuses, deus dos viajantes. Ressalta o
autor que dois aspectos de Hermes são essenciais simbolicamente na filosofia: a
sua mobilidade em viajar pelos mais diversos lugares e o seu dom de invenção,
representando assim as relações ou redes ou passagens que os diversos ramos do
conhecimento, das ciências às artes, devem ter, chamando atenção para a
filosofia da invenção que se encontra nas intersecções, nos caminhos terceiros,
nos terceiros lugares, lugares de contato entre ciência e poesia, lugares
mestiços. Veja mais aqui e aqui.
O DIÁRIO DAS FRUTAS DA CAIS CIA DE DANÇA
O espetáculo
O diário das frutas (2017), da Cais Companhia de Dança, foi inspirado no
conjunto de crônicas do jornalista, escritor e antropólogo Bruno Albertim e que deram origem a uma série de pinturas de Tereza Costa Rêgo. Este espetáculo marcou
a estreia do conceituado e premiado bailarino e coreógrafo Dielson Pessoa como diretor da nova companhia em Campina Grande. O
coreógrafo pernambucano já participou da Companhia de Dança Deborah Colker e Balé
da Cidade de São Paulo, apresentando-se em grandes palcos do cenário
internacional, tais como Uruguai, Chile, Argentina, EUA, Itália, Áustria,
França, Inglaterra, Alemanha, Singapura, ao mesmo tempo em que interpretou trabalhos
de célebres coreógrafos, como Ohad Naharin (Israel), Mauro Bigonzzetti
(Italia), Itzik Galili (Holanda), Luiz Arrieta (Argentina), Cayetano Soto
(Espanha), Jorge Garcia e Deborah Colker (Brasil). Veja mais aqui e aqui.
O ENTERRO DA PERNA, DE RUBEM ALVES
[...] Aos olhares dos
pranteadores, cujo pranto era interrompido pelo espanto, explicava com voz
pausada e grave, própria de alguém que conhece os segredos da morte: “Uma
perna, para o sepultamento cristão...” Com mãos firmes e palavras claras de
alguém que sabe o que está fazendo, abriu seu livro de ofícios fúnebres, e
começou: “O Senhor a deu; o Senhor a tirou. Bendito seja o nome do Senhor. Queridos irmãos: estamos aqui reunidos para
devolver à terra a perna de um nosso irmão ausente...” O coveiro, solene,
escutava em silêncio as palavras sagradas que saíam da boca do reverendo e
enchiam o espaço crepuscular do cemitério. Já as havia ouvido vezes incontáveis
e quase as conhecia de cor. “E agora devolvemos esta perna à terra, até a
ressurreição do último dia, enquanto a sua alma retorna a Deus, que a criou,
para o descanso reservado aos justos”. Com tais palavras, fez o gesto
sobejamente conhecido de todos os coveiros. Chegara a hora para o morto fosse
baixado á sepultura. Finalmente, estava tudo terminado. “Eu podia jurar que
enterro protestante era mais comprido. Este acabou depressa...”, disse o
coveiro ao se despedir do reverendo. “De fato é mais comprido”, confessou o
reverendo. E explicou: “Mas enterro de uma perna só pode ser um quatro do
oficio inteiro. Quando vier o resto do corpo vou ler os outros três quartos do
oficio que eu pulei...”.
Extraído da obra O sapo
que queria ser príncipe - adolescência e juventude (Planeta, 2009), do psicanalista, educador, teólogo e escritor Rubem
Alves (1933-2014). Veja mais aqui e aqui.
&
&
Mais acontecencias
em Alagoinhanduba aqui
&
A lenda
de Iangaí, ó linda aqui.
&
muito
mais na Agenda aqui.