sábado, dezembro 25, 2021

JOAN DIDION, LATIF PEDRAM, NÚRIA AÑÓ & WALTHER MOREIRA SANTOS

 

 

TRÍPTICO DQP – Labirinto Verbo... – Ao som do álbum Dance: Piano Collection (Chandos, 2008), da pianista britânica Kathryn Stott. – A vida era um salto no quintal, não mais, hoje será de mim no mapa da jornada pelas cartas de tarô: um louco de pedra na porta como se eu fosse o carro da desgraça ladeira abaixo, justiça alguma e a roda da fortuna nas garras do carcará com seu ataque para roubar o vigor dos fracos. Francamente era nada mais que o enforcado suspenso no tempo com o golpe na torre da destruição. Logo apareceu o poeta Virgilio para meu espanto a me mostrar sobre a porta da caverna da sibila de Cumas o desenho da mulher que logo se tornou viva e era a papisa que chegava com o cometa Leonard – ou melhor, como quem esculpida sobre as lajes da catedral para me levar no passo de Yu com a dança de Teseu pelas pedras brancas e azuis escuras da catedral de Amiens, enquanto me purificava para que eu tivesse acesso ao seu lar na The Lotus Eaters. Hem? Lá fez a revelação de tesouro incalculável oculto no seu ventre – o tosão de ouro de Cólquida, as maçãs de ouro do jardim das Hespérides, o machado de dois gumes, mais e mais. E não demorou muito para ser a puta com toda solenidade da cama na viagem iniciatória ao centro escondido de seu clitóris. Muito foi o prazer a percorrer de mãos dadas pelas espiras em degraus do zigurate, alegando me salvar do papa demoníaco, do anjo negro, do mago sobrecarregado de embuste, do imperador corrupto. Eu mais que gostando, como poderia, não sei, era nada mais que a imperatriz a me levar pro seu palco de Madonna sussurrando Celebration ao meu ouvido: I think you wanna' come over… and if it makes you feel good then I say do it, / I don't know what you're waiting for…Feel my temperature rising / There's too much heat I'm gonna' lose control / Do you want to go higher, get closer to the fire, / I don't know what you're waiting for… E deitou-se no chão frio e me fez tirar suas botas, para agarrar-me loucamente e depois me arrastar até ficar nua na cama do palácio cretense de Minos. Era ali Pasifae como se eu fosse o seu touro priápico indomável para todos os orgasmos. E nem bem o primeiro gozo emergiu e ela me deu o fio de Ariadne para enfrentar o minotauro que sou no meu próprio labirinto, a me fazer o enamorado tolo que ia pelos duzentos metros de Chatres, seguindo as suas pegadas que deram num templo de Khajuraho com o aviso de que eu devia encontrar o eremita cego em Angkor. Não era isso que eu queria e ela era uma vairocana no centro da mandala dupla, feito uma japonesa budista de Shingon para me dar o lótus de oito pétalas dos confins tibetanos e ao comê-las logo me apareceu a virgem lua que me deu da sua vagina linda o círculo mágico do labirinto de Leonardo da Vinci. Ao me dar nasceu uma estrela esperança pelas três dimensões de dédalo helicoidal, a me embriagar com a dança em círculos concêntricos do inextrincável segredo de Salomão e as doutrinas ascético-místicas e cabalísticas do ato. Quando olhei direito era ela a alquimista temperante a me oferecer a mandala escondida na caverna do seu sexo para eu poder encarar a morte no templo de Borobudur, onde o Homem de Java me esperava para que ela se tornasse a montanha de Hsinhsien, sim, aquela de Wuchang esperando sentada o seu marido que foi pra guerra e nunca mais voltou. Não deu para ver que o Sol raiava e o julgamento seguia célere na janela do mundo. Ao me ver sem saber o que fazer, ela me confidenciou como se fosse Joan Didion: Eu já perdi contato com algumas pessoas que eu costumava ser. Para libertar-nos das expectativas dos outros, devolver-nos a nós mesmos - aí está o grande e singular poder do respeito próprio. Você precisa escolher os lugares dos quais não irá se afastar. Era para eu saber que, na vida, o que se faz, apenas é cavar o próprio buraco.

 


A tertúlia no Deserto Feliz... - Imagem da cenógrafa, ilustradora, performer e artista multimídia Dora Longo Bahia. - Dali a minha cidade era a mesma tal e qual aquele Deserto feliz (2007) do Paulo Caldas: mesmices, vidas bestas, tráfico de animais e de vidas, exploração sexual e o marasmo das doentias pensagens dos que acham que vivem. Estava só e segui meu caminho. Ao dobrar a esquina apareceu-me Jéssica como tantas outras, a me oferecer seu corpo púbere. Estava faminta, dei-lhe um prato de comida e me contou de sua fuga de estupro do padrasto, em busca de um alemão Mark em Berlim. Quando menos esperei, ela não estava mais ali de não mais sabê-la por meses e anos. Apareceu-me, então, Bernardo Soares à procura dela. Não era alemão, pelo sotaque lusitano... Apresentou-se e insistiu para saber onde ela estava, eu não sabia e perguntei por Fernando e ele me disse que o ortônimo estava em tertúlia ébria com seus muitos heterônimos, da qual ele se vira excluído e reduzido à leitura apenas do seu desassossego, mais nada. Não sabia ele que eu sabia dos mares de Admmauro. Quando mencionei, puxou-me pelo braço e no bar mais próximo pediu uma bebida. Ingeriu e pediu outra e mais outra como se aprontasse para um pugilato. Logo se sentou numa mesa armado de copo e garrafa para lamentar o seu desespero – a paixão por ela. Disse-me ser um trivial ajudante de guarda-livros, simples empregado, solitário alfacinha e autor de um único livro inútil e que, para ele, nada valia por ser uma autobiografia sem fatos de quem nunca existiu, tediosa, trágica e indiferente à estética, próprio dos visitantes das casas de pasto. Se um jogo de máscaras, logo entendi, pareceu ter entrado num paroxismo inquisidor: Você conheceu o poeta sul-africano Alexender Search? Soube do filósofo neopagão António Mora que morreu doido num hospício de Caiscais? Já leu o Tratado da Negação e os Princípios da Metafísica Esotérica de Raphael Baldaia? E falou sem parar sobre uns tais Charles, o James Search e o Anon, um certo Jean Seul, o Pacheco, o Pêro Botelho, o Thomas Crosse, nomes e outros nomes que sequer antes ouvira, tão loquazes quanto a sua eloquência. Quase nem entendia direito o que questionava e contava deste ou daquele, ora. Por fim, o olissiponense, quase adernando com sofreguidão de enrolar a língua baça da Baixa pro Tejo, me disse: Se um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto... Abruptamente saiu gritando: fogo!

 


O fogaréu de Sheila... - Imagens: a arte da escultora, fotógrafa e artista visual Keila Alaver. - As labaredas eram reais naquela onírica situação. Era como se tudo ardesse com os ventos agourentos de Poi-i-Komri. E não era Gengis Khan pisoteando as páginas arrancadas dos livros da mesquita de Bukara, nem Augusto mantendo suas ideias políticas na Roma antiga contra as obras oraculares e proféticas, ou o cumprimento da ordem do sultão para os que eram contrários ao Alcorão. Não, não era. Também não era a biblioteca do Quixote benzida pelo escrutínio da fúria inexorável e incendiária do padre, do barbeiro e da sobrinha do autor, nem o final do Nome da Rosa de Umberto Eco com o incêndio da biblioteca do mosteiro e o bibliotecário cego Burgo se desesperando com as chamas da fogueira de livros. Não, não era. Muito menos estudantes levados por Goebbels depurando mais de 25 mil livros na limpeza do Ato contra o Espírito Não Germânico, nem aquela triste queima dos 55 mil livros do centro cultural Hakim Nasser Kosrow Balki. Não. Nem o incêndio da biblioteca de Alagoinhanduba, nem aquela diária da Fenelon Biblioteca. Logo ouvi para minha surpresa: Olheu! Era Sheila toda frochosa carregando o anátema dos seus enciumados oitocentos mil maridos. Era ela toda piromaníaca nas minhas ideias a me deixar a par da ocorrência: uma diretora Savonarola do colégio grifado, queria por que queria repetir o incêndio de Persépolis e conseguiu chamar atenção para se eleger prefeita da cidade. Queimou todos os livros da biblioteca e não foi a primeira vez naquela escola. Eu que me inquietava com seu útero imanizante e abrasado, subitamente fui surpreendido por um poetaguado intrometido que imediatamente recitou pra ela: Essa moça é cangaceira / bota o rifle na cintura / enfrenta a feroz criatura / na maior das desgraceiras / se brincar é cachaceira / de tomar o que vier / quem pensa que é mulher / logo vê que é bronqueira. / Essa moça é bandoleira / de endoidar qualquer um / bota amante no jejum / solta vai pela buraqueira / de deixar o cabra apaixonado / com os pneus tudo arriado / amalucado na maior leseira. Ela então fitou o impetuoso dos pés à cabeça, deu-lhe as costas e me entregou um saco contendo as obras do premiado escritor e ilustrador Walther Moreira Santos: O doce blues da salamandra (MXM, 2000), Um certo rumor de asas (Nova Prova, 2003), Helena Gold (Geração, 2003), Dentro da chuva amarela (Geração, 2006), O Ciclista (Autêntica, 2008), O metal de que somos feitos (Cepe, 2014), Todas as coisas sem nome (Cepe, 2017) e Arquiteturas de vento frio (cepe, 2017). Enquanto conferia atordoado pela presença dela, apareceu-me Latif Pedram que jamais conhecera e na hora pensei ser mais um dos apaixonados dela: Nós, os poetas e os escritores afegãos, somos cativos desta encarnação da estupidez que se abateu sobre nós como um manto de chumbo. Quem era? Aquele mesmo que foi o fundador e líder do Partido do Congresso Nacional do Afeganistão e do Conselho do Afeganistão do Tajiquistão! Até ele? Parecia mais mangando da desgraça do nosso genocídio Fecamepa do Coisonário. Ela que me disse quem era e aproveitou para me recitar um poema de Alex Polari: Nossa geração teve pouco tempo / começou pelo fim / mas foi bela a nossa procura / ah! Moça, como foi bela a nossa procura / mesmo com tanta ilusão perdida / quebrada, / mesmo com tanto caco de sonho / onde até hoje / a gente se corta. Era como se ouvisse os trechos do The Dead Writer (Babelcube, 2018), da escritora espanhola Núria Añó: Prefiro estar do lado dos perdedores, das pessoas incompreendidas ou solitárias, em vez de escrever sobre os fortes e poderosos. Uma espera sem fim que aceita como outra parte do que eles chamam de amor. Era ela e esta a minha cidade, Valuna, porque não há mais Bacuna, mulher amada. Até mais ver.

 

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segunda-feira, dezembro 20, 2021

JENNIFER EGAN, NÂZIM HIKMET, SLOTERDIJK, KAREN FINLEY, ASCESE & COISAS DE PERNAMBUCO

 

 

TRÍPTICO DQP – Vidadiante... - Ao som de Violin Concerto in D minor – Allegro Moderato, Adagio di molto, Allegro, ma non tanto (1903), de Jean Sibelius, na interpretação da violinista estadunidense Sarah Chang com a Radio Filharmonisch Orkest (RFO), conducting Jaap van Zweden. – Sexta-feira, 6 de abril de 1936. Um dia marcado para quem nasceu a 9 de outubro, em Belém, na virada do século 20. A notícia me chegara como O grito de Munch! Ouvi de viva voz Vontade de quem? (era um réquiem para o poeta MM): O enterro do menino rico / Encontrou o enterro do menino pobre. / Na porta do cemitério / O pai do menino pobre / Pensa que o filho morreu por falta de recursos. / O pai do menino rico / Não sabe a que atribuir a morte do seu filho. Era como se do velório Ismael Nery se levantasse vestido num hábito dos franciscanos, um ar de beatitude para me dizer da Arte e artista: O fato de haver homens inicialmente propensos a certas emoções apenas serve para provar que as deformidades morais, tanto como as físicas, também são hereditárias, coisa aliás sabidíssima. O seu jeito amável e saiu saudando um a um dos convidados. A belíssima viúva Adalgisa: a vida dissipada nos olhos que se fecharam diante de mim e mais parecia que ela não mais possuía quase nenhuma força para abri-los. Deitou sua cabeça ao meu ombro, quem diria, aquela beleza exaltada, parecia se despedir e caí dentro dos seus sonhos que me levou para tantos outros intermináveis. Neles ouvi Eu: Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas / Eu sou o que não existe entre o que existe, / eu sou o amor entre os esposos. / Eu sou o marido e a mulher. / Eu sou a unidade infinita. / Eu sou um deus com princípio. / Eu sou poeta! Era a filosofia Essencialista dele ali como se nem tivesse morrido explicando a abstração do tempo e do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à existência neotomista e extremamente católica que eu sequer queria saber, apenas da sua arte. Na cabeça do caixão estava prostrado Murilo Mendes - o vasculhador do lixo para as coleções de arte e que Pedro Nava me dizia do Círio perfeito - Memórias (Nova Fronteira, 1983): o poeta teve um verdadeiro êxtase místico, um anarquista que se fez, dali por diante, cristão. E o vi como se tivesse acometido de um desmaio de não sei quantos dias. Ao lado dele o inseparável amigo Jorge de Lima, produzia as fotomontagens de A pintura em pânico (1943) e das trocas epistolares para recriação da voz na Restauração da poesia em Cristo (1935). Eram as brancas nuvens já quase centenárias: Aos vivos que restam dos mortos. De repente me apareceu agitadíssima a escritorestadunidense Jennifer Egan, como se repetisse inconsolável as palavras impressas do seu premiado A Visit from the Goon Squad (Anchor, 2011): Eu não quero desaparecer, eu quero queimar - eu quero que minha morte seja uma atração, um espetáculo, um mistério. Um trabalho de arte... Existem tantas maneiras de dar errado. Tudo o que temos são metáforas, e elas nunca estão exatamente certas. Você nunca pode simplesmente dizer. O. Coisa... Insatisfação estrutural: Voltar às circunstâncias que antes lhe agradavam, depois de ter experimentado um estilo de vida mais emocionante ou opulento, e descobrir que não pode mais tolerá-las... Abracei-a completamente descontrolada e a consolei na tentativa inútil de aceitar o seu paroxismo. Eu sabia. Está tudo certo, não há como escapar: foi assim que construímos nossa história.

 


Outrascese... - Imagens: arte da performática artista, musicista e poeta estadunidense Karen Finley. - O que sabia eu daquilo tudo, impossível decifrar: só o eco - askesis. E era uma voz de mulher com os versos do Cântico dos Cânticos em duo comigo: O gosto da última vez... E era como se o amor ali assumisse o cuidado do outro e pelo outro. O que sei dos cínicos? Apenas Antístenes isolado para a virtude e contra as horríveis sensações constantes em luta na vida sobrecarregada de dor, sofrimento, ódio e violência, e ter de tomar o duro caminho da continência e da virtude. E agonizante diante do punhal de Diógenes, diz apenas: Quero me livrar dos meus tormentos e de minhas dores, e não de minha vida. Ambos viviam entre a austeridade e o confronto com os costumes da sociedade à época. Dos estoicos? Tanto Zenão, quanto Sêneca ou Epicteto, anacoretas que recusavam o prazer escapando ao domínio dos sentidos. Dava pra ver Epicuro aboletado em seu jardim com os seus discípulos, rejeitando toda e qualquer participação pública: Nunca é tarde para se filosofar. Não queremos um corpo que viva eternamente, mas também não queremos morrer jovens. Não vamos para a guerra e não queremos morrer tão cedo porque nossa batalha é outra. Conta-me da Vida de Macrina: elogio de Basílio (Ciudad Nueva, 1995), do escritor turco cristão Gregório de Nissa (335-394) - também autor da obra A criação do homem: a alma e a ressurreição – a grande catequese (Paulus, 2011) -, contando a história de sua irmã que era de uma família rica e, ao abdicar da vida material e abastada, progrediu na vida ascética, para viver minimamente e em conjunto com os criados em igualdade. Foi daí que os cristão passaram a tratar do método perseverante no desapego das coisas do mundo para aproximarem-se de Deus, advindo daí práticas como jejuns, penitências e abstinências. Acho tudo isso nada agradável, até repudio. E logo Kierkegaard renunciou ao amor da mulher amada e aos prazeres do mundo. Atrás dele Schopenhauer me propunha ascese radical: mortificação e aniquilação do ser como um todo. Não, calma. E lá veio Wittgenstein prisioneiro ao se tornar voluntário de guerra, preferia a doutrina do silêncio para renunciar à fortuna familiar e se tornar apenas bibliotecário e jardineiro apenas em troca de comida. Foi aí que Max Weber trouxe o espírito capitalista: uma atitude permanente de calcular e administrar que pode ir além dos negócios, passando pela vida na ausência de pecado para a acumulação, pela separação da economia doméstica. Nada daquilo me interessava. Foi Leminski que trouxe o seu ensaio Ascese e escassez (Diário do Paraná, 1977), com seus questionamentos diante da iminente catástrofe ambiental pelo esgotamento dos recursos naturais e hecatombe nuclear dos anos de 1970: Nunca o desenvolvimento tecnológico (quantitativo, progressivo, inexorável, tomado como um Absoluto Onipotente) vai poder estender a todos os homens de todas as raças aquele nível de vida hollywoodiana (carros na garagem, um aposento para cada filho, geladeira cheia): os recursos naturais vão acabar bem antes. E aproveitou para me falar de Pierre Hadot e das suas obras: La Citadelle Intérieure (Arthème Fayard, 1997) e Apprendre à philosopher dans l’Antiquité (LGF, 2004), só para que eu compreendesse os exercícios espirituais. Sim, claro, prometi lê-los. E trouxe A hermenêutica do sujeito (Martins Fontes, 2004), de Foucault, relacionando ao cuidado de si e da prática de si que não tinham por princípio a submissão do indivíduo à lei, mas ligar o indivíduo à verdade. Tudo isso me parecia muito Karl Jaspers com a sua atenção a si, não fosse a intromissão da antropotécnica do Du musst Dein Leben ändern. Über Antropotechnik (Suhrkamp, 2009), de Peter Sloterdijk: Como exercício defino qualquer operação que conserva ou melhora a qualificação do ator para realizar a mesma operação da próxima vez, seja ela declarada como exercício ou não. E já era noite no ventre da espera e a esfinge do jardim desaparecera. Não sabia se seria lá o demônio do primeiro dia que estava por vir ou se o rio dormia e ninguém ousaria acordá-lo para inventar mais um dia na semana e como se chamaria, porque a Selenita da Lua logo apareceu para me lembrar do que havia esquecido.

 


A sopa & nunca mais... - Já era sábado, divagações à parte. Senti que estava prestes a testemunhar algo de muita importância, precavido como se daqui a pouco: teibei! Sempre de véspera, atento. Sim e era a criança Priscilla, ah, menina linda que apadrinhei, meus compadres: o artista plástico Javanci Bispo e a poeta Sandra Lustosa. Eu havia musicado um poema dela: Espera. Já nem lembro mais. Mas a cena do banquete, isso não esqueci. Boquinha da noite, lá fui eu, mulher e filhos, para a Torre: chegada e abraços, cervejas e bom papo, a hora da janta regada a camarões, lagostas, pratos finos, tudo degustado com o luxo do ar refrigerado da sala enorme do apartamento. Altas horas e nos despedimos com o acerto de que no outro sábado, seria comigo lá em casa. Sequer imaginava que a semana seria difícil. Ao chegar sexta, nenhum tostão catado no bolso. Nem dava mais tempo remarcar, deixei correr. Consegui umas cervejas com um pendura num boteco vizinho. E a janta? À hora marcada, lá estavam os três. Tudo corria bem com a expectativa, era chegado o momento de nos conduzir à improvisada saleta de jantar apertada pelas estantes amontoadas de livros. Nem deu direito ouvi-lo: Sopa, compadre? Não sei como administrei o desastre daquilo tudo. Sei que a partir de então nunca mais vi-los. Décadas se passaram e deles apenas a fisionomia da poeta na face da atriz dinamarquesa Anna Karina (1940-2019) das cenas de Godard, zanzando linda na imaginação das emoções extraviadas. Dos meus pedaços os fragmentos de deslizes fatais que ficaram como grito da mata, em comum desacordo, em suspensão, a ponto de sequer saber se eu era o Júnior da Tarde de Domingo de Gilvan Lemos, aquele mesmo que Deus tapeava e tudo fazia para prejudicá-lo; ou se era o Vitório da Reunião de ternuras e afetos do Raimundo Carrero, ou mesmo que me dissesse aquele trecho sintomático da Travessia de Sônia van Dijck: Vidinha besta! Depois de tanto tempo, teria um final de semana... ainda pode dar certo... não custa nada tentar... quem precisa de camisola, meias pretas, liga, na hora? Não custa nada tentar... ainda “nosso poeta”?... Não, havia apenas um poema do dramaturgo turco Nâzım Hikmet (1901-1963), o 7 de outubro de 1945: Atravessaram o mar aberto os gritos dos homens à noite / com os ventos. / Passear ainda é perigoso / no mar aberto à noite... / Faz seis anos que este campo não é arado, / estão lá os rastros dos tanques como sempre estiveram. / Os rastros dos tanques estarão cobertos / de neve neste inverno. / Ó luz dos meus olhos, luz dos meus olhos, / os noticiários estão mentindo de novo: / para que o balanço dos exploradores feche com cem por cento de lucro. / Mas quem voltou do banquete do Anjo da Morte / voltou com a sentença... E o domingo passou de um jeito que nem vi no meio das leituras e de um sono infinito. Já na madrugada da segunda, o meu abrigo. Como terminou? Não tem fim, tudo segue, a vida passa, outro amanhã. Até mais ver.

 

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domingo, dezembro 12, 2021

GAO XINGJIAN, SUBIRATS, GOMBROWICZ, JULIANA PRZYBYSZ & FÁTIMA QUINTAS

 

 

TRÍPTICO DQP – Nós e as próprias arapucas... - Ao som de And Suddenly It's Evening, Op. 66, (Argo ZRG 2008), da compositora inglesa Elisabeth Lutyens (1906-1983), Herbert Handt, BBC Symphony Orchestra. – E de repente é noite. Agoraté, das máscaras, nenhumencontrei. Perdi todas, inclusive os traços fisionômicos e me tornado um prosopagnósico; ou, talvez, melhor dizendo: acometido de uma fuga dissociativa, acho. Por aí. Nenhuma memória, nem de mim mesmo, nem de nada. Noite sem lua, inclemente breu; e se caminhos havia, não se saberia: às ruas, se esta é minha cidade, passantes estrangeiros de feição nenhuma nem pareciam dali com a cabeça noutro mundo, ou universo paralelo. Tanto perguntei sobre a localidade onde estava e, de um solícito e menos apressado, ouvi por resposta: Ignorance do The phantom tollbooth (Random House, 1988), descoberta pelo escritor estadunidense Norton Juster (1929-2021). Quem? Logo tomei ciência: aqui ninguém fala porque o Eterno Rouba-Palavras toma tudo que sai da boca das pessoas. Além do mais, somos todos atacados pelo ogro dos esforços inúteis e monstro do hábito, o Terrível Trivium; e o Demônio da Insinceridade prende todos os estrangeiros num buraco profundo e nunca diz a verdade nem é o que parece ser. Então, fuja! Como assim? E logo percebi que o meu atencioso interlocutor estava ficando informe, assumindo as proporções de pedra que mais se avolumava formando um pico que emergiu repentinamente. Alguém gritou para que eu corresse, pois se tratava do feroz gigante Gelatinoso. Segui às pressas aquele que me avisou e ao inquiri-lo a respeito insistiu que eu corresse. Por quê? Os três Demônios do Compromisso vinham em círculos e que eu me salvasse do arrogante Sabe-Tudo que é apenas uma boca que só dá informações erradas. Na correria percebi que o meu companheiro ficara mudo e desaparecia a olhos vistos. Como não adiantava perguntalguma, parei e era uma encruzilhada: para onde, não sei. Ouvi pisada e outro pedestre açodado se avizinhou procurando então saber dele: Atvatabar! O quê? The Goddess of Atvatabar: being the history of the discovery of the interior world, and conquest of Atvatabar (Leonaur, 2010) e só depois de longo tempo que ele sumiu foi que entendi tratar-se do lugar das narrativas do escritor irlandês William Richard Bradshaw (1851–1927). Nossa! Lembro que li a respeito de um imenso país subterrâneo que se estende do Canadá ao Equador, e para entrar só se pode se chegar diante de uma enorme caverna cuja entrada é no pólo norte. Parecia mesmo, deu para visualizar lá longe um sol interior que parecia mesmo nunca se pôr e foi quando dei pela presença de transeuntes distantes, bem apessoados em tons amarelo-dourado e carregando máquinas de fazer chover em bicicletas sem rodas. Averiguei bem a paisagem e havia também um ar de aparência com a minha cidade. Aguçando melhor, logo constatei e fiquei impressionado com a aproximação de uma linda mulher que logo se mostrou poeta e me disse trechos que já lera com sotaque conterrâneo: Um desejo incontrolável de transformar a palavra em círios de eterno, de diluir-se em letras como se a marca da escrita representasse o ponto original da existência... A vida latejando nas veias, a fazer-se múltipla, fragmentada, uma; ora uma coisa, ora outra, invariavelmente paradoxal, nunca a mesma... Vulcânica, inquieta, revolta. E em paz... Não, não era louca. E sim, tais palavras já foram por mim lidas, lembro bem, e a certidão delas me ocorreu quando vi entre suas mãos o livro A mulher e a família no final do século XX (Fundaj/Massangana, 2005), da escritorantropóloga Fátima Quintas, autora de uma obra vastíssima e de relevo. Isso mesmo. É você? Ela me sorriu lindamente. Onde estamos? Nem deu tempo para qualquer resposta: Vem! E saímos às pressas por um longo caminho, enquanto eu divagava noutras pensagens entre a mundanidade e o efêmero, a escassez e a aniquilação da coisa, pudibunda situação, lúgubre e decadente, e nada havia para mitigar o iminente, nada mais a fazer porque era tarde demais e o que seria de mim até tombar desacordado não sei onde.

 


A passagem, à noite... - Imagem: Le difficile équilibre de la Justice, da artista francesa Brigitte Nahon. - Restou-me, apenas, solitalteregoutro. Quem? Sequer identifiquei, ser vagantapenas. Sabia-me rejeiçassombro de coisas bem ou malsucedidas no zoohumano – retroexposições etnológicas degradantes, equívocos desdantes, dagora e sempre, no bojalerta dinclusão humanatureza. Valha-me não sei quem! Preferi relaxar, meditabundo: lá fora o barulho da cidade, vozerio, passos. Tive que imprimir a vontade para conseguir meu intento: fechei os olhos, coluna ereta, mãos sobre as coxas, pés equidistantes, respiração profunda. Nada ouvia, não antes aparecer repentinamente lindesconecida: O que sucedia, só por vaga resposta pareceu-me coisa do tipo One Man's Bible: a novel (HarperCollins, 2009), do premiado escritor chinês Gao Xingjian. Não se lembra de mim? Sim, aliás, não. Foi preciso durar o tempo: era Elisabeth, uma judia germana que, em nome do presente, rememorava todas as dores e péssimas lembranças vividas - era a forma que encontrara para ocultar a ausência de liberdade. E depois de muitas coisas contadas, narrou detalhada e veemente o deplorável caso em que fora vítima tantas e muitas vezes: o recorrentestupro sofrido enquanto modelo de um artista. Como pode? Baixou os olhos e afastou-se. Foi até a janela e ali se demorou. Voltou-se outra, era como se fosse o reencontro com Lin que sequer sabia quem, mas revelou-me ter sido o primeiro amor e que hoje casada e muito bem, por sinal, mesmo assim, disse jamais ter-me esquecido e ainda queria desfrutar dos nossos momentos íntimos na sua alma chinesa. Não poderia escapar, jurou-me, enquanto se despia e já se transformava noutra: logo veio de nem saber quem Sylvie – a francesa de espírito livre e nenhuma convicção política, a desabafar suas experiências emotivas. Desnuda, deitou-se ao meu lado, passou o braço sobre o meu peito e, o outro, sobre o meu sexo, enquanto me contava da morte da mãe e de uma amiga, e de como tudo isso afetou sua vida profundamente. Por consolo, mencionei que da minha família também poucos ou quase ninguém mais restava. Levantou-se de repente e comiserada, abriu uma bolsa sobre o divã e me entregou dois livros: A Montanha da Alma (Dom Quixote, 2002) e Uma Cana de Pesca para o Meu Avô (Dom Quixote, 2001). Recostei-me na poltrona e comecei a ler o primeiro. Enquanto lia, ela acomodou-se apoiada entre as minhas coxas. Foi aí que ela me falou do escritor e dramaturgo polaco Witold Gombrowicz (1904-1969): A normalidade é um equilibrista no abismo da anormalidade. Quantas loucuras escondidas a ordem diária contém! Quem entre nós saberia admirar grandes gênios, se na escola não lhe tivesse ensinado que são grandes gênios? Não se deixe enganar pela sua própria sabedoria... O que tinha a ver com os livros, nada. Ué? Fitei-a profunda e demoradamente. Logo ela se levantou para complementar: Excelente! Escrevi algo estúpido, mas não assinei contrato com ninguém para produzir obras apenas sábias e perfeitas. Eu dei vazão à minha estupidez... e aqui estou eu, renascida... Indaguei se havia algum problema atormentando-a. E a resposta seca, usando das palavras do filósofo espanhol itinerante, Eduardo Subirats: Depende de quem está olhando. Se você é uma alma sensível, uma inteligência desperta e uma consciência resplandecente de sua própria existência, ou seja, um espírito romântico, encontrará um livro para navegar nas águas profundas do coração poético do Brasil e da América Latina, que hoje morrendo em um mundo burocrático e moribundo. Este livro nada mais é do que isso: uma viagem pelo imaginário latino-americano do século XX, escrita por um filósofo hispano-alemão itinerante que se exilou nas Américas... Quase interrompo e daí, preferi calar. Referia-se ela agora à obra A penúltima visão do paraíso: ensaios sobre memória e globalização (Studio Nobel, 2001). Inquieto: o que queria dizer? É tarde. E vestiu-se apressada como quem fugia dalgum delito. Fiquei só com as leituras e me rendi ao sono.

 


Paradoxia & adúlteros anônimos... - Um sonho medonho fez predomínio, a ponto de despertar um tanto atordoado com a panorâmica equivocada e nada libertária: era a convergência entre o vetusto liberalismo ao doentio conservadorismo, a monumental vigência da animalidade e do artifício. Que coisa! Estava encurralado com meu desavergonhado paganismo, sabia. Do que foi de tortuoso e anômalo, a perspectiva impressa estava assentada na escatologia repugnante. Nada mais restava e nem tinha para onde ir. A surpresa dela ao chegar às pressas e sobrecarregada de livros e sacolas, foi para lá de alvissareira. Como um tornado avassalador, ela me beijou recitando um trecho do Lives of Wives (Londres: Cassell, 1939), da Laura Riding: Na hora da cama só se conhece vertigem... Voltou-se à mesa da sala ignota, arrumando o que trouxera, enquanto dizia do The Idea of God - Essays from Epilogue (Carcanet, 2001): Que segundo amor ela poderia fazer com o seu primeiro amor arruinado? O segundo amor que a maioria das mulheres faz do primeiro amor pelos maridos surge de uma tristeza mútua e tácita tanto no marido quanto na esposa, de que ele é apenas em raros momentos o homem que ambos gostariam que ele fosse... O que quer dizer com essa citação? Virou-se para mim e complementou: Eu então diria que existem dois tipos de sentimento. A primeira é sentir no sentido de concentrar suas emoções em algo imediatamente disponível para sua compreensão: você faz sua compreensão a partir das emoções que tem a respeito. A segunda é sentir no sentido de ser afetado sem tentar compreender: algo se sente, você não sabe o quê, e é mais importante sentir do que tentar compreender, pois uma vez que você tenta compreender você não mais sentir isso... Estava assaz enigmática e prosseguiu com a tarefa de colocar os volumes nas estantes e armários nunca vistos antes. Depois, mãos às costas, esforçou-se em escorregar o zíper do vestido e foi se desnudando. Tomava com isso as aparências da bailarina e atriz suíça Ursula Vian-Kübler (1928-2010), para pretextar do polímata francês Boris Vian (1920-1959): Sexualmente, quer dizer, com a minha alma. Seria melhor aprender a fazer amor corretamente, em vez de nos embrutecermos com um livro de história... E enquanto se despia dançante arrematou: O trabalho é o ópio do povo, e eu não quero morrer drogada... Já completamente nua, dirigiu-se à estante e pegou uma encadernação espiralada. Mostrou-me de longe e era a tese acadêmica Nem santas nem putas, apenas mulheres: espacialidades de mulheres prostitutas de baixa renda no exercício de maternagens em Ponta Grossa – PR -, da professora doutora Juliana Przybysz. Abriu uma página e leu da conclusão: Quando a mulher assume o papel de sustento dos filhos, não seguindo o padrão da família tradicional e ainda escolhe a prostituição como forma de sustento há uma soma de condições de estigmas e marginalização feminina. A dificuldade em terminar os estudos, a situação de pobreza e a necessidade de sustentar os filhos sozinhas, é o que levou a escolha da prostituição. Há uma soma de fatores e a escolha ou não da prostituição vai estigmatizar estas mulheres de qualquer forma, pois a falta de um emprego leva a dificuldade de sustento dos filhos, tornando-as 'más' mães e a escolha da prostituição para então conseguir sustentar os filhos, ainda sim, torna-as 'más' mães. Entendeu? Aguardei para que dissesse a razão daquilo, ao me chamar a atenção para ouvir a dedicatória constante no texto: Dedico esta tese a todas as putas, prostitutas, profissionais do sexo, garotas de programa que tive o prazer de encontrar, conhecer e conviver nesta trajetória, que não se acaba aqui. Dedico esta tese a todas aquelas prostitutas que nos deixaram, que durante estes quatro anos de pesquisa perderam a batalha para a AIDS e para a violência. Dedico também a todas as putas que eu tive o prazer de conviver em Barcelona. “Somos todas putas”. E sorriu, largando o volume sobre a mesa e correndo nua para me agarrar aos beijos toda com seu jeito da cantorescritoratriz estadunidense Lydia Lunch: Eu sou uma buscadora total de prazer. Não busco nada que me satisfaça. Eu geralmente me entendo. Tenho necessidades específicas e sei quais são para poder obter satisfação... E se entregou profusa e me fez rolar por seus caprichos, carícias e horas, e o que foi preciso para que dali pudéssemos enfim usufruir o máximo da vida. Merecíamos, insistia: Vamos viver e muito mais. Até mais ver.

 

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domingo, dezembro 05, 2021

CHRISTINA ROSSETI, SUSAN WENDELL, AFANASY FET, ANN HAMILTON & RONALDO CORREIA DE BRITO

 

 

TRÍPTICO DQP – Umestória puxoutra... - Ao som do álbum Em família (EMI, 1981), de Egberto Gismonti. - No meio de tantontens, lembrançadvenas, uma: primeiro peixes pulavam fora d’água e morriam à beira do rio. No começo aquilo era o espetáculo de todos os dias na cidade. Depois, com o acúmulo deles, tudo dançava até as plantas secarem, as árvores, e o chão se abriu. Um buraco espetacular dos olhos pularem quase fora. Tornou-se uma cratera e, na borda dela, juntavam-se gatos, depois cachorros, galos e galinhas, bodes e cabras, bezerros, vacas e bois, cavalos e éguas, pássaros e répteis, todos os bichos da redondeza ali se amontoavam numa dança estranha. Em seguida todos despencavam como se fossem engolidos pela cova que mais se agigantava. As coisas andavam realmente bizarras por ali e, com o passar do tempo, perdia o fascínio nem mais engraçado. Mais dias e as crianças lá chegavam aos passos e gestos extravagantes. Não pode ser! Também moças e rapazes, senhores com suas senhoras, anciões de mãos dadas com suas consortes anciãs, todos num bailado excêntrico, para, em seguida, como se fosse ritual macabro, jogavam-se voluntários para serem consumidos pelo insaciável algar. Outros temiam a ponto de não se aproximarem dali, nem arredarem o pé de casa. Só crescendo o perau. Os que fugiam, nunca voltavam, nem que fosse na marra, pois cismavam de cabelo em pé e, aos tombos, para recorrerem atônitos às autoridades. Rondava a alegação de que aquilo era pior que o Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. Mesmo? Nada a ver. Muito maior! E diziam disso e daquilo. Amedrontados, não sabiam o que fazer: rezavam de joelhos e de mãos dadas continuamente. Como não surtia efeito, vagavam para todos os lados, buscando providência que desse cabo do inusitado. Muque, munheca, caixa dos peitos, insuficientes. Revolver, espingarda, fuzil, canhão, reles brinquedos perto do estrupício. Aquilo, afinal, o que seria? Apareceu uma tuia de pesquisador, jornalistas, curiosos e boateiros, tudo para saber do ocorrido, até um bocado deles desaparecer na tragédia. Minha nossa! Alguns mais precavidos logo assimilavam ter sido o mesmo que ocorrera na primeira tragédia de Alagoinhanduba. Como é? Teve até quem relacionasse a ocorrência com o desastre do Minamata e, por coincidência, foi justo na hora em que fui abordado pela atriz japonesa Minami Bages. Epa! Logo me confundiu com um fotógrafo desconhecido e tudo já se parecia com o enredo de Andrew Levitas. Endoidou geral, para mim. Ela se ria de tudo, contando-me os mínimos detalhes do ocorrido por lá. Fui levado a acreditar porque o cogitado sequer foi descartado. O pior foi que à boca da noite só se via uma movimentação nos ares, como se fossem os defuntos do Cerro do Pasco de Scorza: um bocado de fantasmas atiçando a todos para uma revolução! Oxe! Pernas pra que te quero, ora! Escondido numa sala dum prédio enorme, ela ali, arfante, olhou-me severa e me disse como se fosse a poeta britânica Christina Rosseti (1830-1894): É melhor esquecer e sorrir do que recordar e entristecer-se... O silêncio é mais musical do que qualquer canção... Era o maior vexame e ela como se nada acontecesse por ali. Como pode? Lá fora maior azáfama. Cá dentro, ela deitou a cabeça sobre minha coxa e adormeceu...

 


Vida de trovador... – Imagem: arte da artista visual estadunidense Ann Hamilton. - Ao despertar, não sei se o dia era outro ou o mesmo, entendia nada, se sonho ou real. Só sentia indisposição para me levantar. Logo percebi ao meu colo um volume aberto e com a inscrição: Eu, Miquel de la Tour, escrevo, faço-vos saber... Danou-se! Mais que curioso folheei e tomei ciência quais damas eram cortejadas pelos menestréis lá por volta dum século lá da Idade Média, coisa parecida com o que havia lido n’A Arte da Poesia de Pound. Reli para me certificar e contava: O monge Gaubertz de Poicebot era um de estirpe; era do bispado de Limousin, filho do castelão de Poicebot. Fizeram-no monge quando criança, num monastério chamado Sai Leonar. E conhecia bem as letras e sabia cantar e trobar. E por desejo de mulher, ele saiu do monastério. E dali foi à procura do homem a quem buscavam todos aqueles que, por cortesania, ambicionavam honras e grandes feitos – Savaric de Mauleon – e esse homem lhe deu o arnês de um jogral, um cavalo e roupas; e ele então percorreu as cortes, compôs e fez belas canzos. E entregou o coração a uma bela e gentil donzela, pelo que Savaric o fez cavalheiro, concedendo-lhe que ele conseguisse tomá-la  por esposa. E ele contou a Savaric de que maneira o recusara aquela donzela, pelo que Savaric, concedeu-lhe terras e as rendas delas. E ele desposou a donzela e a honrou sobremaneira. E aconteceu que ele foi para a Espanha, deixando-a. E um cavalheiro vindo de Inglaterra a desejou; e tanto o fez e tanto disse que a levou consigo e a teve muito tempo por amante e depois a deixou na sarjeta. E Gaubertz voltou da Espanha, e hospedou-se certa noite na cidade onde ela estava. E desejando uma mulher, saiu e entrou no alberc de uma pobre mulher, pois tinham-lhe dito haver ali uma bela mulher. E ele encontrou a esposa. E quando a viu, e ela a ele, grande foi a tristeza e maior a vergonha entre ambos. E ele esteve aquela noite com ela, e pela manhã foram para um convento onde ele a fez entrar. E, de tristeza, deixou de cantar e compor. Ah, esse relato era o mesmo citado, agora sim, me certificara. Voltei à leitura e fui interrompido por ela que ali adentrara para dizer que íamos fugir naquela noite. Como assim? Respondeu-me ironicamente com o Autorretrato de Joel Silveira: Sou um homem que faz perguntas – nunca fui mais na vida. E assim serei, certamente, até o último dia, que também será o dia da última pergunta. E me sorriu lindamente como quem possuía a urgência no olhar, trêmula dentro do hábito, porque o asteroide Kamo’oalewa se aproximara perigosamente da Terra. Era uma urgência desmedida: havia um grande contingente de cegos e surdos, outros apresentando fraqueza e distúrbios sensoriais nos pés e mãos, alguns tantos chegaram a ficar paralíticos e muitos outros morreram. Não brinca! Verdade, arrume-se! Para onde? E num misto entre angelical e ansiosa, recitou-me o poeta russo Afanasy Fet (1820-1892): Compartilhe comigo seus sonhos de viver, / Dirija-se diretamente à minha alma; / O que não pode ser expresso apenas em palavras - / Ventile minha alma na forma de som. Depois, aproximou-se mais e senti sua alma tomando a minha. Éramos um: olhos nos olhos, sua respiração rente às minhas faces, sua vibrante carne: uma sinapse na minha. Beijou-me e saiu como se fosse nunca mais.

 


A sina da caçula... – Imagem: a arte da escultora, fotógrafa e artista visual britânica Helen Chadwick (1953-1996). – Décadas passaram e, um dia lá, ao reencontrá-la, a vida parecia não ter sido tão madrasta assim: estava mais linda que nunca. Depois de muita conversa, contou-me a sua história - talqualzinha aquela contada pelo escritor, médico e dramaturgo, Ronaldo Correia de Brito, numa das edições da Continente Multicultural: era caçula de três irmãs e o pai, que era podre de rico, enviuvara de repente. Macambúzio com seu luto, resolveu reunir uma em outra, às confidências. Da conversa, a mais velha saiu cantarolando, havia recebido um quinhão polpudo por herança. Era a vez da do meio que saiu mais feliz que nunca, bailando a partilha vantajosa. Era a vez dela. Ao término da conversa, o pai ficou calado. Ela esperando. Nenhuma reação dele. Então ele se levantou, ficou mudo em pé na janela pro mundo, por um longo tempo. Lá pras tantas, voltou-se pra ela cheio de ira e deu-lhe o castigo: de casa para a rua! Estava deserdada. Por quê? Deve ter sido pelos namoricos ou por gostar de artes, ou por ser a saidinha nada obediente, ou coisa parecida, tudo que ele reprovava demais. As irmãs nem intercederam e, nem bem amanheceu, caiu estrada afora. Mais vinte anos e, de repente, à sua porta, alguém pedia socorro. Era um senhor de idade e, mesmo que quisesse, não havia como negar abrigo. Afinal, o solicitante estava em petição de miséria – a situação dela nada diferente em privação. Acolheu e cuidou por semanas. Ao se restabelecer, o ancião contou-lhe a história. Ela chorou muito: era o seu pai. E as irmãs premiadas haviam fechado a porta. Da mesma forma que ela não soube a razão pela qual foi expulsa de casa, ocultou quem era. E mesmo assim cuidou dele até o dia em que ele, à morte, atendeu o pedido dele e revelou seu segredo. Não havia mais tempo: ele só ouviu, apertou-lhe uma das mãos e deu o último suspiro. Tudo muito triste. Diante da minha expressão interrogativa, respondeu-me como se lesse para mim um trecho da obra The Rejected Body: Feminist Philosophical Reflections on Disability (Routledge, 1996 ), da professora e editora estadunidense Susan Wendell: Se as pessoas com deficiência fossem realmente ouvidas, ocorreria uma explosão de conhecimento do corpo humano e da psique... Compreendi em parte, evidentemente. E havia muito mais para contar: ela fora acometida por uma enfermidade que a deixou inválida por dois longos anos, até se recuperar quase sem esperança. Perguntei: Então é você? Sim sou eu. A vida somos todos nós. Até mais ver.

 

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MARIA RAKHMANINOVA, ELENA DE ROO, TATIANA LEVY, ABELARDO DA HORA & ABYA YALA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Triphase (2008), Empreintes (2010), Yôkaï (2012), Circles (2016), Fables of Shwedagon (2018)...