TRÍPTICO DQP – Vidadiante... - Ao som de Violin Concerto in D minor – Allegro
Moderato, Adagio di molto, Allegro, ma non tanto (1903), de Jean Sibelius, na interpretação da
violinista estadunidense Sarah Chang com a Radio Filharmonisch Orkest (RFO), conducting
Jaap van Zweden. – Sexta-feira, 6 de abril de 1936. Um dia marcado para quem
nasceu a 9 de outubro, em Belém, na virada do século 20. A notícia me chegara
como O grito de Munch! Ouvi de viva voz Vontade de quem? (era um réquiem para o poeta MM): O enterro do menino rico / Encontrou o enterro do menino pobre. / Na
porta do cemitério / O pai do menino pobre / Pensa que o filho morreu por falta
de recursos. / O pai do menino rico / Não sabe a que atribuir a morte do seu
filho. Era como se do velório Ismael Nery se levantasse vestido num hábito dos franciscanos, um ar de beatitude
para me dizer da Arte e artista: O fato de haver homens inicialmente
propensos a certas emoções apenas serve para provar que as deformidades morais,
tanto como as físicas, também são hereditárias, coisa aliás sabidíssima. O seu
jeito amável e saiu saudando um a um dos convidados. A belíssima viúva Adalgisa: a vida dissipada nos olhos que
se fecharam diante de mim e mais parecia que ela não mais possuía quase nenhuma
força para abri-los. Deitou sua cabeça ao meu ombro, quem diria, aquela beleza
exaltada, parecia se despedir e caí dentro dos seus sonhos que me levou para
tantos outros intermináveis. Neles ouvi Eu:
Eu sou a tangência de duas formas opostas
e justapostas / Eu sou o que não existe entre o que existe, / eu sou o amor
entre os esposos. / Eu sou o marido e a mulher. / Eu sou a unidade infinita. /
Eu sou um deus com princípio. / Eu sou poeta! Era a filosofia Essencialista
dele ali como se nem tivesse morrido explicando a abstração do tempo e do
espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à existência neotomista e
extremamente católica que eu sequer queria saber, apenas da sua arte. Na cabeça
do caixão estava prostrado Murilo Mendes
- o vasculhador do lixo para as coleções de arte e que Pedro Nava me dizia do Círio
perfeito - Memórias (Nova Fronteira, 1983): o poeta teve um verdadeiro êxtase
místico, um anarquista que se fez, dali por diante, cristão. E o vi como se
tivesse acometido de um desmaio de não sei quantos dias. Ao lado dele o inseparável
amigo Jorge de Lima, produzia as
fotomontagens de A pintura em pânico
(1943) e das trocas epistolares para recriação da voz na Restauração da poesia em Cristo (1935). Eram as brancas nuvens já
quase centenárias: Aos vivos que restam dos mortos. De repente me apareceu agitadíssima a escritorestadunidense Jennifer Egan, como
se repetisse inconsolável as palavras impressas do seu premiado A Visit from the Goon Squad (Anchor, 2011): Eu
não quero desaparecer, eu quero queimar - eu quero que minha morte seja uma
atração, um espetáculo, um mistério. Um trabalho de arte... Existem tantas
maneiras de dar errado. Tudo o que temos são metáforas, e elas nunca estão exatamente
certas. Você nunca pode simplesmente dizer. O. Coisa... Insatisfação
estrutural: Voltar às circunstâncias que antes lhe agradavam, depois de ter
experimentado um estilo de vida mais emocionante ou opulento, e descobrir que
não pode mais tolerá-las... Abracei-a completamente descontrolada e a
consolei na tentativa inútil de aceitar o seu paroxismo. Eu sabia. Está tudo certo, não há como escapar: foi assim que construímos
nossa história.
Outrascese... - Imagens: arte da performática artista, musicista e
poeta estadunidense Karen Finley. - O que sabia eu daquilo tudo, impossível
decifrar: só o eco - askesis. E era uma voz de mulher com os versos
do Cântico dos Cânticos em duo
comigo: O gosto da última vez...
E era como se o amor ali assumisse o cuidado do outro e pelo outro. O que sei dos cínicos? Apenas Antístenes isolado para a virtude e contra as horríveis sensações
constantes em luta na vida sobrecarregada de dor, sofrimento, ódio e violência,
e ter de tomar o duro caminho da continência e da virtude. E agonizante diante
do punhal de Diógenes, diz apenas: Quero
me livrar dos meus tormentos e de minhas dores, e não de minha vida. Ambos viviam entre a austeridade e o
confronto com os costumes da sociedade à época. Dos estoicos? Tanto Zenão, quanto Sêneca ou Epicteto, anacoretas
que recusavam o prazer escapando ao domínio dos sentidos. Dava pra ver Epicuro aboletado em seu jardim com os
seus discípulos, rejeitando toda e qualquer participação pública: Nunca é tarde para
se filosofar. Não queremos um corpo que viva eternamente, mas também não
queremos morrer jovens. Não vamos para a guerra e não queremos morrer tão cedo
porque nossa batalha é outra. Conta-me da Vida de Macrina: elogio de Basílio
(Ciudad Nueva, 1995), do escritor turco cristão Gregório de Nissa (335-394) - também autor da obra A
criação do homem: a alma e a ressurreição – a grande catequese (Paulus,
2011) -, contando a história de sua irmã que era de uma família rica e, ao
abdicar da vida material e abastada, progrediu na vida ascética, para viver
minimamente e em conjunto com os criados em igualdade. Foi daí que os cristão
passaram a tratar do método perseverante no desapego das coisas do mundo para aproximarem-se
de Deus, advindo daí práticas como jejuns, penitências e abstinências. Acho tudo
isso nada agradável, até repudio. E logo Kierkegaard
renunciou ao amor da mulher amada e aos prazeres do mundo. Atrás dele Schopenhauer me propunha ascese radical:
mortificação e aniquilação do ser como um todo. Não, calma. E lá veio Wittgenstein prisioneiro ao se tornar voluntário
de guerra, preferia a doutrina do silêncio para renunciar à fortuna familiar e se
tornar apenas bibliotecário e jardineiro apenas em troca de comida. Foi aí que Max Weber trouxe o
espírito capitalista: uma atitude permanente de calcular e administrar que pode
ir além dos negócios, passando pela vida na ausência de pecado para a
acumulação, pela separação da economia doméstica. Nada daquilo me interessava. Foi
Leminski que trouxe o seu
ensaio Ascese e escassez (Diário do
Paraná, 1977), com seus questionamentos diante da iminente catástrofe ambiental
pelo esgotamento dos recursos naturais e hecatombe nuclear dos anos de 1970: Nunca o desenvolvimento tecnológico
(quantitativo, progressivo, inexorável, tomado como um Absoluto Onipotente) vai
poder estender a todos os homens de todas as raças aquele nível de vida
hollywoodiana (carros na garagem, um aposento para cada filho, geladeira
cheia): os recursos naturais vão acabar bem antes. E aproveitou para me
falar de Pierre Hadot e das suas obras:
La Citadelle Intérieure (Arthème
Fayard, 1997) e Apprendre à philosopher
dans l’Antiquité (LGF, 2004), só para que eu compreendesse os exercícios espirituais.
Sim, claro, prometi lê-los. E trouxe A
hermenêutica do sujeito (Martins Fontes, 2004), de Foucault, relacionando ao cuidado de si e da prática de si que não
tinham por princípio a submissão do indivíduo à lei, mas ligar o indivíduo à
verdade. Tudo isso me parecia muito Karl Jaspers com a sua atenção a si, não fosse a intromissão da antropotécnica
do Du musst Dein Leben ändern. Über
Antropotechnik (Suhrkamp, 2009), de Peter Sloterdijk: Como exercício defino
qualquer operação que conserva ou melhora a qualificação do ator para realizar
a mesma operação da próxima vez, seja ela declarada como exercício ou não. E
já era noite no ventre da espera e a esfinge do jardim desaparecera. Não sabia
se seria lá o demônio do primeiro dia que estava por vir ou se o rio dormia e ninguém
ousaria acordá-lo para inventar mais um dia na semana e como se chamaria,
porque a Selenita da Lua logo apareceu para me lembrar do que havia esquecido.
A sopa & nunca mais... - Já era sábado, divagações à parte. Senti
que estava prestes a testemunhar algo de muita importância, precavido como se
daqui a pouco: teibei! Sempre de véspera, atento. Sim e era a criança Priscilla, ah, menina linda que
apadrinhei, meus compadres: o artista plástico Javanci Bispo e a poeta Sandra Lustosa. Eu havia musicado um poema dela: Espera. Já nem lembro mais. Mas a cena do
banquete, isso não esqueci. Boquinha da noite, lá fui eu, mulher e filhos, para
a Torre: chegada e abraços, cervejas e bom papo, a hora da janta regada a
camarões, lagostas, pratos finos, tudo degustado com o luxo do ar refrigerado
da sala enorme do apartamento. Altas horas e nos despedimos com o acerto de que
no outro sábado, seria comigo lá em casa. Sequer imaginava que a semana seria
difícil. Ao chegar sexta, nenhum tostão catado no bolso. Nem dava mais tempo
remarcar, deixei correr. Consegui umas cervejas com um pendura num boteco
vizinho. E a janta? À hora marcada, lá estavam os três. Tudo corria bem com a
expectativa, era chegado o momento de nos conduzir à improvisada saleta de
jantar apertada pelas estantes amontoadas de livros. Nem deu direito ouvi-lo:
Sopa, compadre? Não sei como administrei o desastre daquilo tudo. Sei que a partir
de então nunca mais vi-los. Décadas se passaram e deles apenas a fisionomia da
poeta na face da atriz dinamarquesa Anna
Karina (1940-2019) das cenas de Godard,
zanzando linda na imaginação das emoções extraviadas. Dos meus pedaços os
fragmentos de deslizes fatais que ficaram como grito da mata, em comum
desacordo, em suspensão, a ponto de sequer saber se eu era o Júnior da Tarde de Domingo de Gilvan Lemos, aquele mesmo que Deus tapeava e tudo fazia para prejudicá-lo;
ou se era o Vitório da Reunião de ternuras e afetos do Raimundo Carrero, ou mesmo que me dissesse aquele trecho sintomático
da Travessia de Sônia van Dijck: Vidinha besta! Depois de tanto tempo, teria um
final de semana... ainda pode dar certo... não custa nada tentar... quem
precisa de camisola, meias pretas, liga, na hora? Não custa nada tentar...
ainda “nosso poeta”?... Não, havia apenas um poema do dramaturgo turco Nâzım
Hikmet (1901-1963), o 7 de outubro de 1945: Atravessaram
o mar aberto os gritos dos homens à noite / com os ventos. / Passear ainda é
perigoso / no mar aberto à noite... / Faz seis anos que este campo não é arado,
/ estão lá os rastros dos tanques como sempre estiveram. / Os rastros dos
tanques estarão cobertos / de neve neste inverno. / Ó luz dos meus olhos, luz
dos meus olhos, / os noticiários estão mentindo de novo: / para que o balanço
dos exploradores feche com cem por cento de lucro. / Mas quem voltou do
banquete do Anjo da Morte / voltou com a sentença... E o domingo passou de um jeito que nem vi no meio das
leituras e de um sono infinito. Já na madrugada da segunda, o meu abrigo. Como terminou? Não tem fim, tudo segue,
a vida passa, outro amanhã. Até mais ver.
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