O PALHAÇO DOIDO - Selerino
Freitas era fogo! E bote fogaréu nisso. O cabra era sonso se aproveitando de
incautos para armar de seus ardis. Tirava proveito de qualquer abestalhado.
Todo faceiro, cheio de manha, pintava e bordava. De algumas refregas fora
escaldado. Não podia tapiar mais ninguém, estavam vacinados de seu desazo. Não
quero aqui macular a imagem de artista dele, não, nada disso. Reconheço que se
tratava do mais genuíno artista, daqueles capazes de se criar as mais lendárias
das existências celebradas até em folhetos de repentistas e emboladores. Prova
disso era o seu controvertidíssimo jeito de escapar das situações mais vexatórias
que se tenha notícia. Ora, nisso ele era perito, prova de sua inconteste veia
artística digna de muitas homenagens e maldições. Pois bem, quando a maior
parte da população abriu o olho para as suas artimanhas, foi aí que Selerino,
sabido ineivado, não tendo como enrolar mais a ninguém, deu corpo ao seu alter
ego. Seu intento era o seguinte: se ele não conseguia mais aplicar das suas nos
brocos, outro, nele mesmo, o faria. Foi aí que ele entocou-se por uns dias,
cerziu uma roupa colorida e larga, arrumou uns sapatos imensos, idealizou uma
maquiagem com cores vivas, exercitou sua habilidade física de ginasta,
construiu uma careca de pano reluzente com cabelos de lã colorida pelos lados,
ensaiou chistes e gags resultado de uma pesquisa profunda copiando Foottit,
Chocolat, Grock, os Fratellini, Rastelli, Zavatta, Kopov, Lazarenko, Piolim,
Arrelia, Charles Chaplin, Buster Keaton, Harold Loyd, Oscarito, Grande Otelo,
Mazzaropi, Coronel Ludugéro, Os Trapalhões, os irmãos Max, Os três Patetas, O
Gordo e o Magro, Jerry Lewis, Rowan Atkinson, Chico Anísio, Golias, Costinha,
Fafy, Bemvindo Serqueira, Saulo Laranjeira, Pedro Bismark, sem esquecer de
passar noites sem pregar os olhos lendo Sérgio Porto, Leon Eliachar, Luis
Fernando Veríssimo, Ary Toledo e Henfil. Dizia-se ancho: - Ora, isso é moleza,
também faço! O bicho tava com um repertório bom, tendo cursado uma eventual
oficina teatral e circense promovida pela Associação dos Artistas Biriteiros,
onde se assenhoreou da commedia dell arte,
pantominas, saltimbancos, mambembes e, daí, saiu armando das suas. O bicho era
presepeiro mesmo. E dos bons. Foi aí que entre muita bravata e sacolejo nascia
o seu alter-ego: palhaço Pirulitino. Vale salientar que tudo que conseguira
fora ou à custa de muito sacrifício ou mesmo adquirido pelas suas atividades
escusas deslustrando sua vocação e o êxito pessoal. Ou seja, como ele mesmo
dizia: - Como só tem tu, vai tu mesmo. Conseguiu a fim da força e de um bocado
de azucrinamento abundante, um espaço num programa radiofônico dominical.
Peiticou tanto o juízo do produtor da rádio que, finalmente, conseguira trinta
minutos de horário infantil. Virara logo símbolo de sucesso, não antes haver
tropeçado em algumas apropriações indébitas que lhes fustigaram a alma e a
dignidade. Mas estava lá no programa que escancarara as portas em batizados,
aniversários, festinhas, inventando espetáculos infantis e induzindo a
criançada às maiores gargalhadas. Era o ídolo local da meninada e ápice do
desconfiômetro dos adultos. Já era requisitado até pela alta sociedade para
entretenimento da gurizada durante reuniões várias, festivais do guaraná,
vesperais, matinês, animação em lojas de artigos infantis, virado na breca. Muitas
e muitas vezes era interrompido durante suas apresentações por credores infames
que lhe cobravam débitos retardatários. Acusavam-no de velhaco, ora. Por isso,
ora empenhava a vestimenta numa festa acabada sob ameaça de credores e
contratantes que prometiam nunca mais trazê-lo para nada. Outras, era a vez do
som que conseguira emprestado do primo que só não matou-lo de cacete por
sentimento cristão no meio da ira. E muitas e muitíssimas outras tantas
macacadas que provocavam decepção em todos. O desgraçado não tomava jeito,
vendia o que era e o que não era seu, tapiando aqui e ali ao se apropriar de
resultados de outrem. E não só isso: fiava de tudo que precisasse, conseguia
avais de condescendentes simpatizantes que depois caíam na real e já era tarde;
envolvia terceiros nas suas mazelas; assinava cheques que não eram seus;
adulterava documentos visando tirar proveito da situação; era a gota, avalie! Eis
que, no meio desse cabrunco todo, certa sexta-feira fora contratado por um bom
cachê para animar o aniversário do filho de seu Joaquinildo, um próspero
comerciante local. Fora requisitado pela esposa do mesmo, dona Filadelfa, uma
gorducha simpática que era bastante ingrizienta com as coisas. Estava tudo
marcado para o dia seguinte, sábado, às dezesseis horas, na residência opulenta
deles, à beira da piscina. Tudo programado, menino que só a praga. Os
endiabrados empurravam-no, tiravam dedada nele, puxavam sua indumentária,
chutavam suas pernas, jogavam o que lhes viessem à mão na cara dele, faziam
dele gato e sapato na maior hostilidade. Aqueles capetinhas estavam envenenados
objetivando destituí-lo da liderança na festa. - Isso não é menino não, gente,
são uns diabinhos de pais desalmados, só sendo!!!! Ôxe, vou lascá-los também, ah,
se vou! Castigado em demasia, passou disfarçadamente a revidar as arteirices
dando umas beliscadas, uns empurrões fora de propósito, uns safanões
maledicentes, uns cascudos malcriados, umas puxadas de orelhas proeminentes,
uns corretivos repressores, umas rasteiras bem dadas, que quando o moleque
chorava ele cobrava dos outros mangação reprovativa para que o mesmo não
levasse ao conhecimento da mãe iludida. Toma lá, dá cá. Presepada pura. - Eita,
gota! Isso não é festa, é a ingrezia de pervertidos mirins! Pirulitino lá. E quando
algum pai aparecia ele provocava a criançada a dar uma vaia nele para que
saísse do mundo deles. O pai aplaudia a irreverência envolvedora. Depois,
castigava os endiabrados que lhe surravam o tempo todo. À certa altura da festa
ele já estava com as vestes rasgadas, esmulambado pela violenta participação
dos audaciosos bexiguentos, virado na porra e se trocando com eles. Quando
chegou a hora para cantar os parabéns ele teve que refazer a maquiagem e
restituir o espírito do palhaço que residia dentro de si. Esperava a vingança. -
Vamos cantar os parabéns! Juntou-se a todos e lá cantarolou a canção natalícia
não antes receber dos intrépidos maloqueirinhos umas quinhentas dedadas no
furico, milhares de alfinetadas nas costas, na bunda e nas pernas; estourada de
peido de véia no corpo todo; ovo podre nas fuças; traque de sala no quengo;
cabada de vassoura na testa; bolada no pau da venta; chute nos culhões;
estrupiado todo, resolveu acender a vela. Aí, uma tesuda mãe de um dos garotos,
parente do aniversariante, usava um vestido de napa colado mostrando sua
graciosidade corporal, num decote que lhe mostrava mais da metade dos seios, um
glúteo bem desenhado que enervara a cupidez do Pirulitino, a ponto de
tremer-lhe o fósforo aceso, incendiando os arranjos postos na mesa, ao que
intervindo por apagar o fogo teve a atração da chama investida na roupa da
sedutora mãe, fagulha na cabeleira da anfitriã, pavio aceso jogado na
ornamentação, fogueira geral, o Pirulitino endoidou, empurrou a dona e a de
napa na piscina numa pesada grande, afugentou todo mundo à base de pernadas e
braçadas, largou os sapatos grandes em cima do fogo, provocando a maior
quebradeira no recinto. Prejuízos muitos. Eita! - O palhaço tá doido! Peraí! Foi
aí que alguns pais presentes e providentes acalmaram o endoidado a safanões,
porradas e cacetadas. Vôte! - Para, acho que já voltou ao normal! Estava o
Pirulitino descascado, meleguento e desacordado. Presenciaram todos o seu
estertor. Era o fim de sua triunfante carreira artística. Já era uma vez um
palhaço. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
6 DE AGOSTO DE 1945
Veja
aqui.
Curtindo
o álbum Lieder Anton Webern (Deutsche
Grammophon, 1995), do compositor austríaco Anton
Webern (1883-1945), na interpretação da soprano alemã Christiane Oelze.
PESQUISA:
[...] Para que o conhecimento tenha toda a sua
eficácia é preciso agora que o espírito se transforme. É preciso que ele se
transforme nas suas raízes para poder assimilar nos seus rebentos. As próprias condições
da unidade da vida do espírito impõem uma variação na vida do espírito, uma
mutação humana profunda. Em suma, a ciência instrui a razão. [...].
Trecho
extradído do livro A filosofia do não
(Presença, 1991), do filósofo, crítico literário e epistemólogo francês Gaston Bachelard (1884-1962). Veja mais
aqui, aqui e aqui.
LEITURA
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
Rosa de Hiroshima (Antolio Poética – José Olympio, 1984), do
poeta, dramaturgo, jornalista, compositor e diplomata brasileiro Vinicius de
Moraes (1913-1980). Veja mais aqui, aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA:
Vejam dois tolos conversando. Eles não se
escutam, mas riem continuamente. Enquanto um fala, o outro permanece num ponto
de vista que o maravilha, o situado entre o que ele disse e o que dirá. Eles se
prometem, na despedida, voltar à mútua expansão, ambos acreditam piamente ter
produzido, com suas graçolas, toda a alegria do seu amigo.
Trecho de Réflexions sur le
bonheur des fous, do economista e político suíço que ministro das
finanças na França, Jacques Necker (1732-1804).
IMAGEM DO DIA
Ecce Homo, projeto da artista e fotógrafa alemã Evelyn Bencicova, retratando motivos
artísticos comuns com origens bíblicas, representações de violência e guerra,
narrativa de mistério e questionamentos. Veja mais aqui.
Veja mais sobre Fecamepa, Ouspensky,
Herberto Sales, Gianfrancesco
Guarnieri, Andy Warhol, Baden Powell de Aquino, M. Night Shyamalan &
Bryce Dallas Howard aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
A arte da
pintora impressionista ucraniana Nelina Trubach-Moshnikova.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
A arte
da pintora, ilustradora e designer holandesa Karin Vermeer.
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.