A VIDA E A LÓGICA DA COMPETIÇÃO - Um dia
lá, o coração resolveu botar as manguinhas de fora e contrariou: - Sou o mais importante
aqui! Um pulmão olhou pro outro e se perguntaram: - Qual é a desse cara, hem? O
cérebro, de soslaio, foi logo em cima: - Qual é a tua, meu? O restante logo se
virou pra prestar atenção no que estava acontecendo, começando um burburinho que
foi tomando conta de tudo. – Qual é? -, perguntou o estômago, o que fez com que
os demais, num verdadeiro eco, fizessem a mesma indagação. Um alvoroço. Inchado
de soberba o coração reiterou: - Sou o mais importante aqui e fim de papo! Aí
começou o maior puxa-encolhe. Caretas, muxoxos e cacoetes compuseram a cena. Na
teima do é não é, a coisa foi tomando corpo de envolver todos numa celeuma só.
Quando a coisa foi perdendo as estribeiras, tive que intervir no tumulto: -
Ôpa! Vamos botar ordem na casa que o buraco é mais embaixo. Com os meus bregues
renitentes, por fim, todos se aquietaram. – Voltem todos ao trabalho que quero
dormir, preciso descansar. Assim, retomaram seus afazeres. Entretanto, foi aí
que começaram, aos cochichos, as dispustas escondidas para apurar o mais
importante entre todos. Cada qual se autoestimava o maior entre os demais. E
começaram as apostas, primeiro com competições de quebra-de-braço. Não satisfeitos
com essa peleja, aumentaram as pugnas e, no meio disso, o fair play foi pro beleléu: partiram pro ringue e daí foi só
empurrões, tapas, pé na goela, puxavanques, chutes e, logo no primeiro round, todos abriram da vela. Refeitos,
retomaram a contenda. Uma verdadeira guerra sem que nenhum saísse vencedor.
Afinal, cada um dependia do outro para poder cumprir a sua função natural.
Todos possuíam a devida importância e como não se entendiam nem chegaram a
acordo algum, findou eu em coma numa maca hospitalar. Quando dei por mim,
estava tudo normalizado ao cabo duns seis ou sete meses fora do ar. Mas lá e
acolá ouvia um rumor: o leão é o rei da selva e aqui eu sou o leão. Cala boca,
bestão, maior é um javali. Toma tento, gente, maior é o hipopótamo. E o papo
rolava de quem que era o maior não era o melhor, e novo desentendimento surgiu,
tendo eu que intervir novamente: - Ô meu, vocês querem me matar é? Por conta
disso me convocaram para eleger qual o melhor entre eles. Diante da cobrança
tive que dizer que cada um cumpria um papel relevante na minha vida e que, por
isso, cada qual assumia a devida importância em todo meu organismo. Por essa
razão não havia hierarquia de preferência e ninguém tinha maior importância que
o outro, vez que todos funcionam de forma integrada, sistemática e solidária:
um pelo outro e todos por mim. Claro que me levaram na conta da conversa fiada e
não engoliram meu argumento. Resultado: fui dado baixa e eles todos, comigo, fomos
pro arquivo morto. Nisso fiquei a matutar: será mesmo que a vida é só pra competir?
Ou pode ser outra coisa bem maior c0nstruída pela colaboração, cooperação, comunhão?
Se eu tenho o direito de viver, tenho o dever de deixar tudo o mais viver. E vamos
aprumar a conversa! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Curtindo
o álbum Notations & Piano Sonatas
(Harmonia Mundi GmbH, 2005), do compositor, maestro, pedagogo musical e
ensaísta francês Pierre Boulez
(1925-2016), na interpretação da pianista taiwanesa Pi-Hsien Chen. Veja mais aqui e aqui.
PESQUISA:
[...] Para os homens que vivem sob a dominação
totalitária do mal, não somente suas vidas como o proprio Eu dependem do acaso.
As retratações significam hoje menos ainda do que na Renascença. A filosofia
que pretende se acomodar em si mesma, repousando numa verdade qualquer, nada
tem a ver, por conseguinte, com a teoria crítica.
Trecho
extraído da obra Filosofia e teoria
crítica (Giulio Einaudi, 2003), do filósofo e sociólogo alemão Max Horkheimer (1895-1973).
LEITURA
Amigos, nada mudou / em essência. / Os salários mal dão para os gastos, /
as guerras não terminaram / e há vírus novos e terríveis, / embora o avanço da
medicina. / Volta e meia um vizinho / tomba morto por questão de amor. / Há
filmes interessantes, é verdade, / e como sempre, mulheres portentosas / nos
seduzem com suas bocas e pernas, / mas em matéria de amor / não inventamos
nenhuma posição nova. / Alguns cosmonautas ficam no espaço / seis meses ou
mais, testando a engrenagem / e a solidão. / Em cada olimpíada há récordes previstos
/ e nos países, avanços e recuos sociais. / Mas nenhum pássaro mudou seu canto /
com a modernidade. / Reencenamos as mesmas tragédias gregas, / relemos o
Quixote, e a primavera / chega pontualmente cada ano. / Alguns hábitos, rios e
florestas / se perderam. / Ninguém mais coloca cadeiras na calçada / ou toma a
fresca da tarde, / mas temos máquinas velocíssimas / que nos dispensam de
pensar. / Sobre o desaparecimento dos dinossauros / e a formação das galáxias /
não avançamos nada. / Roupas vão e voltam com as modas. / Governos fortes caem,
outros se levantam, / países se dividem / e as formigas e abelhas continuam / fiéis
ao seu trabalho. / Nada mudou em essência. / Cantamos parabéns nas festas, / discutimos
futebol na esquina / morremos em estúpidos desastres / e volta e meia / um de
nós olha o céu quando estrelado / com o mesmo pasmo das cavernas. / E cada
geração , insolente, / continua a achar / que vive no ápice da história.
Carta aos mortos, do poeta Affonso Romano de Sant’Anna. Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA:
Diz-se que os cupins trabalham apenas em sociedade; os homens, como se
sabe, pensam sozinhos. Todas as condições existenciais do homem são condições
de sua individuação. Contudo e
exatamente por meio disso elas possibilitam a generalização do mundo
inteligível. Quando escrevo, penso em todos.
Trecho
extraído da obra Inteligência brasileira:
uma reflexão cartesiana (Cosac Naify 2009), do filósofo, escritor e
ensaísta alemão Max Bense (1910-1990).
IMAGEM DO DIA
Foto da
série Gênesis (2011), do fotógrafo Sebastião Salgado.
Veja mais sobre Italo Calvino, Susan
Musgrave, Jean Dubuffet, Carlos
Careqa, Melisso de Samos, Roman
Ingarden, King Vidor, Dolores del Río & Fenelon Barreto aqui.
DESTAQUE:
História do Brasil (1975), da artista plástica, escultora,
pintora, gravadora, desenhista, artista intermídia e professora Anna Bella Geiger. Veja
mais aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Aurora – study for the gates of dawn, do artista
plástico do Classicismo inglês Herbert
James Draper (1963-1920).
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
La risata (The Laugh, 1911), do
pintor e escultor do Futurismo italiano Umberto
Boccioni.
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.