ANDEJO DA NOITE E DO DIA - Imagem: The walking man (2011), by Shanna Bruschi – Caminheiro voo,
andarilho errante. Não tenho onde cair morto, nem onde encostar a cabeça. Não me
foi dado o privilégio de ter nas mãos uma das assinaturas do deus de tudo e
todas as coisas nas escrituras pros donos da Terra. Quando cheguei já ocupavam
tudo, não me sobrou nem areia nas unhas, andejo suspenso no ar: não tenho como
pagar pedágio – pago assim mesmo, quer queira ou não, e pago tudo, até à
revelia pela vida, pelo oxigênio, pela água, por ter nascido, por estar vivo – é
tudo deles e eu sem, só tenho o que é de mim mesmo e que eu não sei, nem tenho
nada, remorsos, dissabores. E se tenho vestes nem eram minhas e foram compradas
nas feiras e que também são deles, os meus fazem festa comendo vidro de luzes
no luxo dos magazines. Só me resta a carne cansada, os ossos doídos, o coração
solitário e o olhar para ver o que enxergo no meio do turbilhão dos dias e das
noites. Não posso parar, senão serei crucificado pelos credos dos muitos
missionários que fazem a curadoria das cidades doentes e se dizem íntimos e
portadores de um deus que não é o meu, nem de ninguém, só deles e que me xingam
paranóicos sectários de fazer pichação incrédula por onde passo, mesmo quando
Deus está comigo e não querem ver, sequer me fitar com suas exaltadas pregações
aviltando tudo e todos. Não fujo de nada, pela justiça dos homens fui estornado,
marginal condenado ao desterro; pela Justiça de Deus, pagar meus pecados, viandante
pelas rodagens de barro batido por longas distâncias, estrangeiro de sempre. Fui
tirado do seio da mãe pra aprender a viver conforme as razões de todos. Fui tirado
da escola pro trabalho, o meu dever; a escola é pros que podem, os donos de
cursinhos também são donos das universidades públicas, como posso me instruir
se sou levado a viver atrepado nas árvores e a viajar na brisa quando meu corpo
foi condicionado ao ventilador ou aparelho de refrigeração. E se como da fruta
colhida no pé, meu corpo foi educado a saborear temperos, sais e açúcares,
cozidos, assados, requentados, tudo envenenado e viro enfermo gemendo estrada
afora. E se vou caminhante pensamentos suspensos na paisagem do lugar, é que meu
corpo acomodado reclama o conforto de automóveis, aeronaves ou mecanismos de
pressas, que nem posso ter a não ser tirando fino pra me desviar o caminho e cambaleio
engolindo a poeira do asfalto. A tudo vejo e não me vêem: a vida passa, insone
voo, a seguir sem adeus. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
aqui.
O AMOR
Talvez,
quem sabe, um dia
Por uma
alameda do zoológico ela também chegará
Ela que
também amava os animais entrará sorridente
Assim
como está na foto sobre a mesa
Ela é
tão bonita. Ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão
O século
trinta vencerá o coração destroçado já pelas mesquinharias
Agora
vamos alcançar tudo o que não podemos amar na vida
Com o
estrelar das noites inumeráveis
Ressuscita-me
ainda que mais não seja
Porque
sou poeta e ansiava o futuro
Ressuscita-me
lutando contra as misérias do cotidiano
Ressuscita-me
por isso
Ressuscita-me
quero acabar de viver o que me cabe
Minha
vida para que não mais existam amores servis
Ressuscita-me
para que ninguém mais tenha de sacrificar-se
Por uma
casa, um buraco
Ressuscita-me
para que a partir de hoje
A partir
de hoje a família se transforme
E o pai
seja pelo menos o Universo
E a mãe
seja no mínimo a Terra, a Terra, a Terra
(O amor, de
Caetano Veloso sobre poema de V. Mayakovsky), no álbum Gal Costa Acústico MTV (BMG, 2001). Veja mais aqui.
PESQUISA
[...] não há como
negar que o impacto das atividades humanas sobre a natureza, sobretudo as
urbanas e industriais, mas também, como se acabou compreendendo, as agrícolas,
aumentou acentuadamente a partir de meados do século. Isso se deveu em grande
parte ao enorme aumento no uso de combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás
natural etc.), cujo possível esgotamento vinha preocupando os que pensavam no
futuro desde meados do século xix. [...] Os seres humanos só eram essenciais para tal economia num aspecto: como
compradores de bens e serviços. Aí estava o seu problema central. [...].
Trecho da obra A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991 - Companhia das Letras,
2001), do historiador Eric Hobsbawm,
contando em linguagem simples e envolvente, a história da "era das ilusões
perdidas". Veja mais aqui.
LEITURA
O amor já foi uno, concreto e definido. Mas o
século mudou e com ele as variantes do amor, que se multiplicaram. Hoje há
diversas formatações para vivenciá-lo, são inúmeros os seus significados e
ilimitadas as suas maneiras de encantar e transformar. O amor romântico – “eu e
você para sempre” – é apenas uma de suas modalidades. O que é o amor, afinal?
Impossível resumir num só conceito. Amor é gratidão por alguém ter nos tornado
especial. Amor é a realização de um ideal criado
ainda na infância. Amor é a possibilidade de repetir o mais importante feito de
nossos pais – aquele sem o qual não teríamos nascido. Amor é projetar no outro
aquilo que nos falta. Amor é erotismo. Amor é uma experiência sensorial. Amor é
carência. Amor é o gatilho para formar uma família. Amor é aquele troço sem
razão que bagunça a nossa vida. Que melhora a nossa vida. Que piora a nossa
vida. Que justifica a nossa vida. Amor é uma forma de escapar da vulgaridade.
Amor é uma mentira que amamos contar. Amor é um álibi para crimes e casamentos.
Amor é a vingança contra a objetividade. Amor é divisão de fardo. Amor é um
antídoto contra a solidão. Amor é uma invenção do cinema e da literatura. Amor
é paz. Amor é a busca de um tormento que torne a vida mais emocionante. Amor é
a vitória do cansaço, já que paixões sequenciais exaurem. Amor é o nome que se
dá para uma emoção que nos domina e do qual não queremos ser libertados. Amamos
pais, irmãos, amigos. Amamos os namorados que tivemos e os que ainda teremos,
amamos nosso marido até o dia em que ele não volta para casa, amamos nossos
ídolos até que eles nos decepcionem, amamos nossos filhos mesmo que nos decepcionem,
amamos nosso cão e nosso gato quase acima de Deus, amamos Deus acima de tudo
pois cremos que ele não nos faltará, amamos a nós mesmos apesar de saber que
nem tudo é amável em nós. Amor não é uma desculpa esfarrapada. Ela é muito bem
costurada. Amor pode brotar de um olhar, de um beijo, de um desejo. Amor é
encasquetar. Se alguém lhe faz perguntas a respeito, você, na falta de
argumento melhor, responde que é amor, que sempre foi amor, e ninguém espicha a
conversa porque contra o amor não há réplica. Como pode alguém ter amado uma
pessoa ontem e hoje amar outra, como pode ter amado uma mulher e hoje um homem,
como pode amar duas mulheres ao mesmo tempo, como pode já ter vivido com
vários, como pode sentir amor por um salafrário, como pode sentir-se inteiro
repartindo-se em dois, como pode ser poli, multi, bissexual, bígamo, hetero,
homo, fiel, infiel, amoral? Como, diante deste sentimento, ter alguma
certeza? O amor paira acima das
classificações. Tem mil jeitos, mil formas, mil dobras. É a nossa maior proeza.
O amor e tudo que ele é, da escritora
poeta gaúcha Martha Medeiros. Veja
mais aqui.
PENSAMENTO DO DIA:
Uma nova modernidade nasceu: ela coincide com
a "civilização do desejo" que foi construída ao longo da segunda
metade do século XX. Essa revolução é inseparável das novas orientações do
capitalismo posto no caminho da estimulação perpétua da demanda, da
mercantilização e da multiplicação indefinida das necessidades: o capitalismo
de consumo tomou o lugar das economias de produção. [...] Daí a condição profundamente paradoxal do
hiperconsumidor. De um lado, este se afirma como um "consumator",
informado e "livre", que vê seu leque de escolhas ampliar-se, que
consulta portais e comparadores de custo, aproveita as pechinchas do low-cost, age
procurando otimizar a relação qualidade/preço. Do outro, os modos de vida, os
prazeres e os gostos mostram-se cada vez mais sob a dependência do sistema
mercantil. Quanto mais o hiperconsumidor detém um poder que lhe era
desconhecido até então, mais o mercado estende sua força tentacular; quanto
mais o comprador está em situação de auto-administração, mais existe
extrodeterminação ligada à ordem comercial. O hiperconsumidor não está mais
apenas ávido de bem-estar material, ele aparece como um solicitante exponencial
de conforto psíquico, de harmonia interior e de desabrochamento subjetivo,
demonstrados pelo florescimento das técnicas derivadas do desenvolvimento
pessoal bem como pelo sucesso das sabedorias orientais, das novas
espiritualidades, dos guias da felicidade e da sabedoria. O materialismo da
primeira sociedade de consumo passou de moda: assistimos à expansão do mercado
da alma e de sua transformação, do equilíbrio e da auto-estima, enquanto
proliferam as farmácias da felicidade. Numa época em que o sofrimento é
desprovido de todo sentido, em que os grandes referenciais tradicionais e
históricos estão esgotados, a questão da felicidade interior "volta à
tona", tornando-se um segmento comercial, um objeto de marketing que o
hiperconsumidor quer poder ter em mãos, sem esforço, imediatamente e por todos
os meios. A crença moderna segundo a qual a abundância é a condição necessária
e suficiente da felicidade do homem deixou de ser evidente: resta saber se a
reabilitação da sabedoria não recompõe por sua vez uma ilusão de outro gênero.
Reinvestindo na dimensão do "ser" ou da espiritualidade, o
neoconsumidor está mais bem inserido no caminho da felicidade que seus
predecessores? A civilização consumista distingue-se pelo lugar central ocupado
pelas aspirações de bem-estar e pela busca de uma vida melhor para si mesmo e
os seus. [...] O descarte dos artigos já não é provocado pela
mediocridade da fabricação, mas pela economia da velocidade, por produtos
novos, mais eficientes ou que respondam a outras necessidades. [...].
Trecho extraído da obra A felicidade paradoxal: ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo (Companhia
das Letras, 2007), do filósofo, professor e teórico da
Hipermodernidade Gilles Lipovetsky, investigando
a a felicidade, o bem-estar, a produção de sentidos, idéias e necessidades em
torno da contemporaneidade do hiperconsumo, da hiperindividualização e do
hiperdesejo. Veja mais aqui.
IMAGEM
DO DIA
A arte do escultor vietnamita Nguyen Tuan.
Veja mais sobre o projeto de extensão Infância, Imagem e Literatura, Direito & Psicanálise, Décio
Pignatari, Cora Coralina, Agostino Carracci, Led Zeppelin, Antunes Filho, Gênero
& Sexualidade, Vera Fisher & Mariana
Nogueira aqui.
DESTAQUE
A arte
da psicóloga, professora de música e diretora do grupo Conto&Cena, Gisele Sant'Ana Lemos, editora dos
blogs Biologia do Amor e Diana Balis, e coordenadora da Revista Poesia Legal. Veja mais aqui, aqui e aqui.
CRÔNICA DE
AMOR POR ELA
Nude, do artista plástico estadunidense Jeremy Lipking.
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Paz na Terra
Recital Musical Tataritaritatá - Fanpage.