sexta-feira, agosto 31, 2018

NAGUIB MAHFUZ, SARAH KOFMAN, REBECCA HORN, FRANCIS HIME, DOESBURG & JULIO CORREA


A TOCHA HUMANA – Imagem: The vertebra oracle in Napoli 2015, da artista visual alemã Rebecca Horn. - Estupefato fiquei sob o ardor inclemente do sol de meio dia em pleno mês de junho, normalmente aguaceiro de inverno. Era véspera de São João e tudo já deixava claro que algo inusitado estava por acontecer. Ademais, também era tempo das comemorações de emancipação política do município de Alagoinhanduba. Pleno feriado, dois dias encarreados só para os festejos onde tudo era envolvido com as casas ornadas com flores de variegados matizes nas janelas e o povo em polvorosa doido pela festança. Aquela correria pro ouriço. Logo cedo, acordava o povo com o desfile da banda de fanfarra, anunciando os outros eventos e desfiles de alunos das escolas agrupadas aos pelotões, malabarismos, autoridades num palanque engalanado, gente como a peste, prestigiando a efeméride. Os tiros de bacamarteiros na praça central, dava por iniciado ao tradicional ajuntamento de gente nas calçadas. As ruas ornamentadas de bandeirolas dum canto a outro de todas as ruas da localidade, expressavam o ar de festa que estufava o peito da patuleia alvoroçada, doida para ver a marcha garbosa dos meninos dos ginásios, os rapazes dos colégios e os marmanjos da polícia. O palanque das autoridades tinha mais caboeta que se engalfinhava por aparecer mais que o outro, acotovelando-se para ficar ao lado do maioral. Lá estavam o prefeito banguela, o usineiro desconfiado, o deputado zarolho, o bispo sabido e o estafe da babaovice com suas melindrosas madames mais pintadas e enfeitadas que as alegorias caricaturais das escolas. Um verdadeiro carnaval de exposição. Uma fogueira gigantesca, daquelas de alcançar o céu, queimava lenha no centro da praça principal. Outras tantas nas calçadas e uma outra numa rua ao lado, onde se daria a competição mais apreciada e afamada, a de pula fogueira. Era a hora da cerimônia mais respeitada do lugar. O momento que cada um se revestia do orgulho de ser alagoinhandubense até na alma, debaixo d´água ou torrando num fogaréu. E num instante tudo turvou, virara noite, escurecera. Os bombos silenciaram, o desfile paralisou e até a respiração foi suspensa. Só os galos cucuricavam meio encangados no poleiro, numa tristeza tumular. Não havia, por ali, quem soubesse ou tivesse notícias de qualquer eclipse lunar se sucedendo por enquanto, muito menos aquilo era hora noturna. Não havia uma só estrela no céu, tudo muito opaco. Aos poucos, uma inhaca insuportável alcançara os septos nasais, num bulício de fato nauseabundo. Que fedor filho da puta! Não havia fôlego atlético que conseguisse poupar daquele mau cheiro. Deveras, um desastre sem precedentes aquele. Ninguém descobrira, até então, por enquanto, a causa de tão fedorento mal-estar, visto que nenhum valetudinário seria capaz de tal fedentina. Será? Era bosta pura, daquelas bem catingosas de dias armazenados no bucho de prisão de ventre. O negócio enfeiou e a mundiça danou-se a correr para longe daquela tragédia, pisoteando o que se estirasse pela frente e comendo a quilometragem com sede de distância. A cidade ficara, duma hora para outra, deserta. Não havia um pé de gente para remédio. Tudo escafedido para as lonjuras limítrofes. Meia hora depois de tanta carreira, quase que todo mundo morre sufocado duma só vez, o oxigênio tornava a respiração normalizada e, devido fétida emanação, a comunidade se evadira do lugar, buscando ar puro longe dali mesmo. O que se sucedera, afinal? Depois de quinhentas mil continências, milhões de providências tomadas sob o rigor das autoridades, vasculhara-se em todos os logradouros e constatava-se, para infelicidade de todos, que nenhuma imundície se instalara pela redondeza para causar tamanho transtorno. Teria sido, então, um peido do céu? Ou uma explosão de alguma arma química bostal? Ou o quê? Com tal indagação, depois de muito se investigar pelos quatro cantos do mundo, desconfiaram, claro, todos já desconfiavam do Abinagildo, só faltava essa! Este sim, Abinagildo Mendes Sobrinho, um sujeitinho tísico, manemolente e tíbio, pífio e tacanho, todo macambúzio depois de uns ventinhos nababescos, que possuía o mau costume de, de vez em quando, emitir aquela emanação volátil do corpo, daqueles verdadeiros desmancha prazeres. Eita bicho da cloaca podre, meu. Ora, eu jamais que acreditara, entretanto, depoimentos muitos me fizeram crer naquela possibilidade de ter exatamente partido dele aquela podridão em plena festa. Era tiro e queda. Pois é, muito me estranhava Abinagildo morar isolado, fora dos domínios da cidade, numa casa de alvenaria, sem vizinhos, no ermo de um morro. Dava até pena vê-lo assim em abandono completo, tadinho. Tadinho, nada, vamos nessa. E muitas me contaram da razão de sua soturnidade, às vezes até lipemaníaco pela maldição que carregava. Depuseram-me aos mínimos detalhes suas presepadas corroborando seu exílio compulsório, seu desterro determinado. Tudo isso alimentava a vingança popular que lavou a alma naquele dia de festa. Pois bem, fuxicada solta, soube que uma delas entre as tantas outras, deixou o prefeito Desidério Silvino roxo de raiva, puto da vida! Relataram-me que foi no dia em que o Biriteiros Esporte Clube, escrete da maior representação futebolística da província, calor da torcida local, recepcionara em uma partida amistosa, o Clube Náutico Capibaribe, do Recife, atual hexa campeão pernambucano e vice campeão brasileiro, não se sagrando campeão por ter enfrentado o Santos Futebol Clube, com Pelé e companhia. O apito do juiz dera início a partida e o chute batendo o centro num foguetório colorido que tomou conta do estádio. No meio disso, os fogos de artifício foram acompanhados de uma podridão, um horrível eflúvio no ar, de suspender o jogo. O Náutico excomungara aquela cidade, arribando imediatamente daquelas imediações sem ao menos sequer fazer um ataque na defesa do Biriteiros. Só deu tempo bater o centro, pronto, tudo por água abaixo. O prefeito, incontinente, mandou prender Abinagildo que, culpado, se escondera longe para livrar-se do flagrante delito e da enfezada raiva da torcida local que prometera linchá-lo numa repulsa pública geral. Não era por menos, era mesmo um vício de nascença, já consultado médico especialista sobre o assunto, obtendo-se por diagnóstico tratar-se de rebento nascido de vento ruim, procedente de maus bofes. Nossa, a ciência não explicara direito, mas o de branco, asseverava que estava diante de um fato inusitado, pelo fato de que a tripa gaiteira do dito cujo deveria de ter algum defeito na fabricação da bosta ou o desgraçado já nascera podre mesmo, necessitando, invariavelmente, de uma intervenção através de clister para desobstruir a bosta retida. Só que o fabricante de bosta conseguia ser o maior peidão que já tivera notícia, fato até que se tentou colocar no Guiness, mas não foi possível por ser tratado como verdadeiro despropósito. Muito embora, hoje, depois do ocorrido, uma banda de gente da cidade se orgulhava de ter o maior peidão de todos os tempos. E até já se viu muito bate boca entre os que reverenciam a figura santificada do Abinagildo com os que detestavam qualquer lembrança de sua maledicente podridão. - Vôte! Ele nem cuidava da alma porque o corpo já era podre mesmo! Os enfurecidos do contra, numa reunião acalorada na Câmara de Vereadores, discutiam se homenageavam ou não tal figura polêmica, narrando na tribuna que nem davam por menos e lá vinha aquela ventosidade emitida pelo ânus de modos que, uma vez, até o locutor do telejornal tapara o nariz, levando a rede de tevê a suspender a transmissão alegando em letras garrafais: SUSPENDEMOS NOSSA PROGRAMAÇÃO POR MOTIVOS DE FLATULÊNCIAS INSOLENTES NO AR! E o que é pior era a descaradice dele Abinagildo: - Perde-se o amigo, nunca a piada nem o peido! Carta feita, contam enraivecidos, que numa praia vizinha, uma dor de barriga nele, levou o indecente a fazer as necessidades na água marinha, causando verdadeiro maremoto. O cara afundou-se na água para excretar, dando-se a perceber a bosta undívaga se aproximando das pessoas com uma quentura de ferver a água. Pois é, cagando, soltou um daqueles que as principais manchetes estamparam ferindo o rigor jornalístico: PEIDO CAUSA CATÁSTROFE NO MAR. Toda aquela imensidão adquirira uma cor escura com ondas de mais de vinte e cinco metros de altura, trazendo pra mais de dez mil surfistas no maior auê radical da paróquia. Eita, bôba torreiro! Este estava com a bexiga lixa. Doutra vez, fora demitido da empresa onde trabalhava porque suspendia as atividades e baixava a produtividade, vez que no calor do expediente vinha aquele odor de merda choca que invadia todas as dependências da corporação, expulsando clientes e funcionários esbaforidos. E o pior, onde ele ía, o peido vinha atrás. - Peido desse, lata de lixo é fragrância francesa! -, reclamavam todos unanimemente. Há quem ainda hoje reclame de manhã, de tarde e de noite, diuturnamente, vítima do seu cinismo, não se podendo manter a compostura ante a falta de decoro do descarado. Peta que fosse, vinha aquele verdadeiro mau hálito anal de torrar os pentelhos do cu, flagrando várias vezes aquele posudo confortavelmente agachado em bacias cheias de água esfriando as pregas, onde assoprava aquele ruído de coisa queimada. No início, consideravam, eram os modestos; depois, mais agudos. Daí, meu, surgiram, então, os de queimar sofás, colchões, cadeiras, não se dando conta dos prejuízos que causara aos amigos em suas furtivas visitas. Perdera, assim, ao longo dos tempos, os mais próximos, motivo que o levou a recorrer de uma ajuda superior, rezando, contrito e no meio da oração, soltou unzinho cavernoso, da imagem da santa protetora tapar o nariz, não aguentando a feijoada de ontem. Fora expulso dali pelo padre, avalie, excomungado até a centésima geração. Até uma outra, disseram vingativos, que ele mesmo já fora vítima de sua própria indecência, quando, em sua casa, certa vez, deitou-se em sua cama com o seu abafa-banana familiar, um daqueles cobertores de mais de cinco centímetros de largura, daqueles próprios para o frio polar, quando soltou um que ficou, o próprio, bêbo! Pode? Por causa disso, lá, na casa dele, não tinha inseto algum, bicho nenhum ficava nas imediações. Quem tivesse a oportunidade de ver o álbum de família dele, logo descobria porque ele era enjeitado por todos, vez que, em todas as fotos, mãos apertavam o nariz para não sentir o fedor. Verdade, era um peidorreiro desgraçado. Também pudera, minuciosamente contaram da sua dieta peculiar: feijão, fruta pão, ovo, cebola, jaca, fígado de boi, abacaxi, cachaça de cabeça, isso aos quilos todo santo dia. E era costume após a ceia, almoço ou hora de gororoba qualquer, imaginem, o cara massagear a pança e puuuuuuummmmm! Sorria satisfeito. Depois, chorava aos tombos, sentindo o ardor no procto. E quem estava perto nem podia socorrer, porque não suportava o gás assassino dele. Dando-se conta de sua peidorrada, ele mesmo encontrou um meio de coibir a fetidez: quando ocorria, riscava um fósforo bem nos fundilhos - repara só que presepada -, a ação era imediata, armado de fogo, investia mão em direção da bunda, fósforo aceso e logo queimava o gás indesejável. Resultado: seis calças, três cuecas, duas sungas, três bermudas, quatro calções, tudo com rombo de queimadura na bunda - não é pra menos, né? Por fim, depois de tantas emboanças e perseguições buscando a cura para o seu desígnio, achou de, por bem de seu senso meio lá meio cá, em plena festividade que ocorria justo às vésperas de São João, percebera, enfim, que chegara a hora da sua salvação, e dera de participar com outros mequetrefes da redondeza, dum festival inusitado de pular fogueira, onde soltaria um que o fogo abrasaria, acabando de vez com aquele mau costume. Certo de que sairia campeão esperou para ser o último participante. Pois é, enquanto o povo se espremia na rua central, afagados pela estridulante gritaria do locutor oficial da festa política, ele competia com outros buzuntões dali, numa pulada de fogueira, numa das adjacências do local. Chegou sua vez, nervoso, concentrado, treinou a impulsão, fez carreira e, determinado, é um, é dois, é três e zás! E aquele borborigmo mais parecia um jato queimando tudo. Lá se foi gritando estrada a fora, verdadeira labareda tomou conta dele. Sumiu cidade afora como uma tocha humana. A festa de São João acabada e ele sumido pegando fogo. Daí, todos vingados e com ar de bem feito, narram histórias da tocha humana, o cara que, ao que parece, foi acometido de uma combustão involuntária de deixá-lo torrado pro resto da vida. Dias depois, encontraram algo estranho na beirada de um chafariz, não se dando para identificar, mas presumiu-se seja os restos mortais dele. Ainda hoje está lá, aquele monturozinho de ossada queimada, local apropriado para cuspidas, mijadas e depósito de nojeiras outras impensáveis. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do cantor, compositor, maestro e arranjador Francis Hime: Ao Vivo, Atrás da porta & em dois shows ao vivo com Olívia Hime & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] Aquilo que se expressa positivamente na plasticidade moderna — uma proporção equilibrada do peculiar e da generalidade — manifesta-se mais ou menos também na vida do homem moderno e constitui a causa original da reconstrução social de que somos testemunhas. [...]. Pensamento do artista visual, designer gráfico, arquiteto e poeta neerlandês Theo van Doesburg (1883-1931).

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS – [...] A lógica do sonho é uma arqueo-lógica, operando com processos primários que regem o sistema inconsciente. Escrita de antes da linguagem da razão, seu melhor modelo se encontra na escrita artística, ela também irredutível a qualquer outra, obediente a leis estruturais próprias. Há um texto próprio ao sonho como há um próprio à obra de arte, texto simbólico e sintomático de um conflito de forças, cujo equilíbrio é regulado por um acupunturista invisível. [...] a arte ocupa uma situação intermediária entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, reconciliando um com o outro [...]. Trechos extraídos da obra A infância da arte (Relume-Dumará, 1996), da filósofa francesa Sarah Kofman (1934-1994).

SCHERAZADE - Dandan pediu permissão para ver sua filha Scherazade. Uma criada o conduziu ao quarto rosa, decorado com tapete e cortinas cor-de-rosa, bem como divãs e almofadas em matizes de vermelho. Ali, ele foi recebido por Scherazade e sua irmã Duniazade. Dandan disse: - Estou cumulado de felicidade, graças a Deus, o Senhor do universo. Scherazade fê-lo sentar-se a seu lado, ao passo que Duniazade se retirou para seu quarto. - Fui salva de um destino sangrento pela misericórdia de nosso Senhor - disse Scherazade. Mas o homem mal murmurava suas graças, quando ela acrescentou, amargurada: - Que Deus tenha piedade das virgens inocentes. - Como você é sábia, e como é corajosa! - Mas você sabe, pai - disse ela num sussurro: - eu sou infeliz! - Cuidado, filha, pois nos palácios os pensamentos assumem formas concretas e falam alto! - Eu me sacrifiquei - disse ela, triste - para interromper a torrente de sangue. - Deus tem a Sua sabedoria - murmurou ele. - E o diabo, os seus seguidores - disse ela, com raiva. - Ele ama você, Scherazade - disse o pai, suplicante. - A arrogância e o amor não podem se unir num mesmo coração. Ele ama a si mesmo acima de tudo. - O amor também tem seus milagres. - Cada vez que ele se aproxima de mim sinto o cheiro de sangue. - O sultão não é como o resto da humanidade. - Mas crime é crime. Quantas virgens ele matou, e quantos crentes fiéis ele exterminou? No reino ficaram somente os hipócritas. - Minha confiança em Deus nunca se abalou - disse ele, com tristeza. - Quanto a mim, sei que meu estágio espiritual está na paciência, como me ensinou o grande sheik. A isso, Dandan respondeu, com um sorriso: - Que excelente mestre e que excelente discípula! Extraído da obra Noites das mil e uma noites (Companhia das Letras, 2008), do escritor egípcio & Prêmio Nobel de Literatura de 1988, Naguib Mahfuz (1911-2006). Veja mais aqui.

O RIO É UM GRANDE POETA - É o rio um grande poeta / que vai cantando seus sonhos / de amor e de liberdade / com a guitarra do vento. / O rio, um grande poeta / que diz um poema imenso / numa linguagem de Deus. / Não o culpeis pelos mortos / que os bandidos lhe atiram / desesperados de medo, / para escapar ao castigo / que chegará justiceiro. / O rio, um grande poeta / que diz seu poema imenso. / É o rio grande poeta / que vai cantando... cantando... / e a magia de seu estro / está  gerando, amorosa, / o canto do homem novo, / como ranger de protestos / de todos os esqueletos / das vítimas que, covarde, / jogou em seu leito o ódio. / O rio, um grande poeta / Que cantará o canto novo. Poema do poeta paraguaio Julio Correa (1890-1953).

A ARTE DE REBECCA HORN
A arte da artista visual alemã Rebecca Horn.

AGENDA
XI Semana de Letras com o tema Contemporaneus – entre os dias 17 e 21 de setembro, na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) & muito mais na Agenda aqui.
&
Outras do Abinagildo antes de bater as botas aqui e aqui


quinta-feira, agosto 30, 2018

PETRARCA, CAIO ABREU, ADRIANA CALCANHOTO, HABERMAS, VATTIMO, ALDEMIR MARTINS, PESQUISA & ZEBEDEU


O BOI DE ZEBEDEU - Imagem: arte do ilustrador, pintor e escultor Aldemir Martins (1922-2006). - Foi assim: numa manhã ensolarada de sábado estival, apareceu Zebedeu todo enfeitado de tampas, botões, moedas, adereços e outros brebotes reluzentes apregados no gibão e no chapéu de vaqueiro, exaltando o boi Glorioso que mugia acompanhando a sua cantoria. Ele danou-se a embolar coco, puxando firme na versejada, de ajuntar gente para acompanhar o apólogo de interminável falação desde cedinho até a noitinha. Cantava ele a majestade miraculosa do animal, das peçonhas que inoculara, das doenças que curara, das mortes que ressuscitara, das vidas que salvara, afora outras tantas espetaculares virtudes, adivinhações e medicações do afamado bovino que ali estava comendo flores, todo ornado de fitas do pescoço à cauda. Todo sábado ali, já era costume. Vez por outra aparecia uma empreitada: um menino com febre braba, quase desfalecido de tão franzino, com maleita incurável. Zebedeu não teve dúvida, foi só chegar nas orelhas do Glorioso e cochichar, do bicho levantar-se e derramar uma mijada estrondosa numa vasilha ali colocada. Ele pegou do mijo, entregou num frasco providenciado e entregou à mãe aflita. Quanto é? Sábado que vem, se o menino tiver curado, traga só um dicomer pra saciar a fome da gente. Assim foi. E no sábado seguinte, a genitora do restabelecido, chegou toda ancha a lhe dar de não sei quantas galinhas, preás, perus e uma marmita com o melhor que havia de cosido na sua casa, afora um molho de mato do bom para alimento do santificado animal. A multidão curiosa aplaudia e presenciava mais uma divina intervenção dele. Logo apareceu outra senhora abalada com o reumatismo de um ancião acamado de meses, morre mas num morre, Zebedeu prontamente, cochichou na orelha dele que levantou-se, deu uma cagada esparramada que recolhida num recipiente na hora, recomendou fazer uma garrafada pro enfermo incruado tomar em jejum por três dias encarreados. Quanto é? Sábado que vem, se o seu pai estiver curado, traga só um dicomer pra matar a fome da gente. Assim se repetiu. Na semana seguinte, estava ela toda às risadagens com presentes e mais brindes pro cantador e pro salvador bicho. Ficou curado? Oxe, bastou tomar dois dias da garrafada em jejum, como o senhor mandou, e logo ficou bonzinho da silva, olhele aqui, espie! Era salva de palmas! O ancião de tão bom estava aos pulos. Assim era, aparecesse a bronca que fosse de saúde ou de maus espíritos, era só usar de raspas do chifre, tacos das patas, sebo da bimba, pingo do suor dos bagos, cabelo do rabo, catota da venta, meleca dos olhos, gozo da punheta, tudo milagroso, um santo remédio. O paciente que fizesse uso, morto que tivesse num sepultamento, tornava vivinho na hora! Se tivesse desaparecido desenvultava no instante! Escondido reaparecia, desencantado tomava gosto na vida, raquítico engordava, cego via, aleijado andava, adoecido sarava e assim por diante. Por conta disso, juntava gente, a maior romaria de penitentes e retirantes, e o boi obrando milagres pra cima e pra baixo. Até as vacas namoradeiras ficavam flertando o milagreiro. Descuidou-se, oxe, estava lá ele amontado nos quartos duma faceira, tanto é que os bezerros é tudo famigerado: Jauaraicica, Pintadinho, Serapião, touro Rei, Espácio, até as vacas Mordaça e a Estrela do boi Fubá, tudo cantado em folhetos de cordel de todas as espécies de cantadores e repentistas de norte a sul, leste a oeste do Nordeste desse Brasilzão véio, arrevirado e de porteira escancarada. Certo dia, vinha ele pelas quebradas se dirigindo pra feira da cidade mais próxima, quando o boi amuou no meio da rodagem. Que é que é isso, Glorioso? O povo está lá esperando a gente pra novas ações, vamos que vamos. E o boi nada de se desapregar do chão, ronceiro, acanhado. Que é que tá havendo? E o Glorioso todo desconfiado, nada de se arrastar pra canto nenhum. Assim demorou-se. Lá longe já vinha o povaréu crente impaciente e requerente descendo a ladeira: Cadê o boi, homem? Ah, Glorioso está cheio de pantim. Conversa vai e vem, e agora? Tá todo mundo lá na feira esperando pras sessões! Nessa hora, o boi, assim do nada, deu um carreirão de se perder na poeira mato adentro. O povo atrás, pé na bunda. Correram chão que só, quando avistaram lá na beira do brejo uma criança inocente brincando e prestes a ser atacada por uma cobra Pico-de-jaca. A peçonhenta surucucu estirada em “S” com mais de metros, vibrava a cauda no chão, parecia mais que cuspia fogo, armou o bote e a cabroeira toda só: Valha-me, Deus! O boi travou-se com a surucucu e levou picada até umas horas, da gente só ver o boi gemendo e cheio de bolhas onde a danada mordia. Foi um combate feroz da poeira comer no centro. Lá pras tantas, enfim, a criança sorria salva e o boi caiu com a serpente enrolada nele: morreram os dois. O boi santificado começou a levitar aureolado e saiu voando, ascendendo aos céus para nunca mais. Lá se foi o santo Glorioso! PS: recriação recolhida da obra Sertão do Boi Santo (Clube do Livro, 1968), do escritor Paulo Dantas (1922-2007). © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais  aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música da cantora e compositora Adriana Calcanhoto: Senhas, Loucura, Micróbio Vivo & Público & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] Porque a violência social dos capitalistas se institucionaliza na forma do contrato particular de trabalho como relação de troca, e a compensação da mais-valia privadamente disponível ocupou o lugar da dependência política; o mercado, além da sua função cibernética, assume uma função ideológica: a relação de classe pode, na forma apolítica da dependência salarial, assumir uma forma anônima. [...] Trecho extraído da obra A crise de legitimação do capitalismo tardio (Tempo Brasileiro, 1980), do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Veja mais aqui.

MORTE DA ARTE – [...] é aquela que de fato já vivemos na sociedade da cultura de massa, em que se pode falar de estetização geral da vida na medida em que a mídia, que distribui informação, cultura, entretenimento, mas sempre sob critérios gerais de beleza (atração formal dos produtos), assumiu na vida de todos um peso infinitamente maior do que em qualquer outra época [...]. Trecho extraído de O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (Martins Fontes, 1996), do filósofo italiano Gianni Vattimo. Veja mais aqui e aqui.

ONDE ANDARÁ? - [...] Uma loura cinquentona, com muitas joias douradas e um vestido decotado imitando onça, debruçou-se na máquina quando passei. Poderia ser vulgar, mas qualquer coisa no pescoço esticado demais e nos ombros rígidos, jogados para trás, revelava certa aristocracia. Quem sabe uma recém-divorciada tentando começar de novo, uma ex-bailarina russa fascinada pelos trópicos e obrigada a fazer sórdidas traduções para sobreviver. [...] Antes que eu pudesse discar, ela estendeu sobre a mesa a mão cheia de anéis e longas unhas escarlates. – Prazer – disse, sem nenhum sotaque russo. Ao contrário, com suas vogais abertas soava levemente baiano. – Sou Teresinha O’Connor. – Teresinha como? – O’Connor – ela repetiu, caprichando na pronúncia – De origem irlandesa, sabe? Sou cronista social. Quando tiver alguma nota, você me passa? Pessoal que lida com arte sempre tem. – Pode deixar – eu disse. E comecei a discar. [...] Até encontrar um táxi, passei por dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, mais um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas, dias gêmeas mongoloides, de braço dado, e tantos mendigos que não consegui contar. A cenografia eram sacos de lixo com cheiro doce, moscas esvoaçando, crianças em volta. [...]. Trechos extraídos da obra Onde andará Dulce Veiga (Nova Fronteira, 1990), do escritor, jornalista e dramaturgo Caio Fernando Abreu (1948-1996). Veja mais aqui e aqui.

TRIUNFO DA MORTE - Aquela bela dama e gloriosa, / Que hoje é nu 'spírito e pouca terra, / E foi alta coluna e valorosa; / Tornava com grande honra de sua guerra, / Deixando já vencido o grande inimigo, / Que com seu doce fogo o mundo aterra. / Não com mais armas que respeito altivo, / Honestidade em rosto e pensamento, / Coração casto e de virtude amigo. / Grande espanto era ver tal vencimento, / As armas d'amor rotas e desfeitas, / E os vencidos dele em mor tormento. / A bela dama e as outras eleitas / Se vinham gloriando da vitória, / Em bela esquadra juntas e restreitas. / Poucas eram, que rara é vera glória, / Mas dinas, da primeira à derradeira, / De claríssimo poema e de história. / Traziam, por insígnia, na bandeira / Em campo verde um branco armelino / D'ouro fino, e topazes a coleira. / Não humano, certamente, mas divino / Era o seu doce andar, e o que diziam: / Ditosa é a que nasce a tal destino. / Estrelas e sol em meio pareciam, / Em cujo resplendor o seu consiste; / De rosas coroadas todas iam. / Como nobre coração que honra aquiste, / Cada uma em sua virtude se alegra, / Quando outra insígnia vi escura e triste, / E uma fera dona em veste negra. / Com tal furor, qual eu não sei se atrás, / No tempo dos gigantes fosse em Flegra. / Chamou, e disse: donzela, tu que vás / De beleza e virtude alterada, / De tua vida o termo não saberás? / Eu sou a importuna acelerada, /Chamada de vós, gente surda e cega, / A quem morte vem antecipada. / Eu sou a que matei a gente grega / E troiana, e no último os romãos, / Que todos minha foice corta e cega. / Não deixo povos gentios nem cristãos, / Chego quando por mim menos se espera, / Atalho mil pensamentos, todos vãos. / E a vós, quando mais ledo o viver era, / Endereço meu curso, antes que a fortuna / Misture em vossa doce a sua fera. / Já nestas tu não tens razão alguma, / E em mim pouca, que em minha morte, / Respondeu a que no mundo foi uma, / Outrem sei a quem mais dura é a sorte, / Cuja vida do meu viver depende, / Que o morrer, quanto a mim, será deporte. / Qual é quem grave coisa e nova entende, / Ou vê o que no princípio não lembrou, / E ora se maravilha, ora resprende. / Tal foi a cruel; e depois que cuidou / Um pouco em si, disse: bem conheço eu / Se dá o meu golpe em cheio ou se errou. / Depois, com melhor / semblante e menos seu / Disse: tu que a fremosa esquadra guias, / Inda não experimentaste o tosco meu. / Mas, se de meu conselho algo te fias, / Que forçar te posso: por melhor se tem / Fugir velhice e os seus tristes dias. / Eu sou disposta a te fazer um bem / Que não costumo; e é que tua alma vá / Sem aquele medo e dor que a morte tem. / Como apraz ao Senhor, que em cima está, / E rege o céu, e a terra, e o abisso, / Farás de mim o que dos outros será. / Em respondendo assi, eis d'improviso / De mortos se cobriu toda a campanha, / De multidão que excede o humano siso. / A índia, o Cataio, África e Espanha, / Tudo estava coberto até os extremos / Daquela infinita turba manha. / Entre eles, os que por felices temos, / Pontífices, e reis, e imperadores, / Que ora são nus e pobres, como vemos. / Que foi de suas riquezas e primores? / Dos ceptros e vestiduras reais? / Das mitras e das purpúreas cores? / Triste o que a esperança põe em bens mortais! / Mas quem a não põe? Que se depois se achar / Enganado, o remédio é por demais. / Ó cegos que aproveita o afadigar? / Que logo vos tornais à madre antiga, /E muito pouco o vosso nome há-de durar. / E se alguma há, entre vós, útil fadiga, / Ou se são todas puras vaidades, / Qual mais souber de vós esse mo diga. / Que val ganhardes reinos e cidades, / Fazerdes tributárias muitas gentes, / Forçardes nações livres e vontades? / Que achais nessas vitórias eminentes? / Trocar sangue por terra e por tesouro? / Melhor sabe na paz aos prudentes / O pão e água no pau, que a vós no ouro. / Mas por não prosseguir tão longo tema / Acabarei, e a meu lavor me torno. / E digo que já era na hora extrema / Aquela breve vida gloriosa, / No passo em que nenhum há que não trema. / Com ela estava outra valerosa / Companhia de donas, que esperava / Saber se alguma morte há piedosa. / Atentas eram quantas ali estavam / A contemplar o fim que ela fazia, / Que tal convém fazer aos que acabam. / Estando assi a nobre companhia, / Da loura cabeça, morte lhe cortou, / A trança que seus cabelos tecia. / Assi do mundo a mais bela flor levou, / Não por ódio, mas por mais cedo mostrar / Que para reinar na glória se criou. / Tristes prantos e querelas ouvi dar, / Sendo os seus belos olhos já enxutos, / De cujo nome me soía abrasar. / Entre gritos e lágrimas e lutos / Estava ela só leda e calada, / De seu casto viver colhendo os frutos. / Vai-te em paz, alma bem- aventurada, / Diziam, e era assi; mas nada val / Contra a morte cruel e acelerada. / Que será de nós? Pois esta que era tal / Ardeu em tão breve tempo e acabou / falsa e cega esperança humanal / Se de lágrimas a terra se banhou, / Com piedade daquela alma gentil, / Sabe-o quem o viu e experimentou. / Na hora prima do dia sexto d'Abril, / Em que fui preso a morte me desatou; / Que assi muda fortuna o seu estilo vil. / Quem de dura servidão mais se queixou, / Ou da morte, como eu da liberdade / E da vida, que sem ela me ficou? / Devido era ao mundo e à idade / Não preceder a da véspera ao da prima, / Nem tirar-se-lhe a ele a dignidade. / Qual fosse a sua dor que não se estima / Ousado só a cuidá-lo eu não seria, / Quanto mais a escrevê-lo em prosa ou rima. / Acabada é a virtude e a cortesia / Se ouvia lamentar junto do leito / Pelas donas e amigas que ali havia. / Quem verá mais em dama auto perfeito, / Quem ouvirá seu falar de saber cheio, / E a voz de tão suave deleito? / O espírito, por deixar o doce seio / Com todas as virtudes, anojado, / Fazia em toda a parte o ar sereio. / Nenhum dos adversários foi ousado / De aparecer ali com vista escura, / Até que a morte o assalto houve acabado. / Deposto já o medo e a tristura, / Ao belo rosto cada uma olhava, / Por desesperação feita segura. / Não como chama, que por força acaba, / Mas que por si se gasta e consume, / Se foi dentre nós a que o mundo ornava. / A modo de um suave e claro lume, / A que falta sustância e nutrimento, / a Que no fim tem usado costume; / Mais alva que a neve que sem vento / Em gracioso campo se vê cair, / Estava ela no fim do passamento. / Quase em belos olhos um doce dormir, / Sendo o espírito já partido dela! / Parecia o seu morrer o ressurgir, / E o seu lindo rosto morte bela! Poema extraído da obra Triunfos (Hedra, 2006), do escritor, intelectual humanista e filosofo italiano Francesco Petrarca (1304-1374). Nesta obra, conforme a escritora Gertrudre Moakley (1905-1998) e recolhido da obra Jung e o tarô: uma jornada arquetípica (Cultrix, 1980), de Sallie Nichols, cada uma de uma série de personagens alegóricos combate e vence o seu predecessor, adaptando as ilustrações dos poemas do autor para a sua amada Laura, dividindo-a em seis partes: Triunfo do Amor, Triunfo da Castidade, Triunfo da Morte, Triunfo da Fama, Triunfo do Tempo e Triunfo da Eternidade. Nesses poemas o amor vence todos os homens, inclusive o próprio poeta, no entanto, é derrotado por Laura, que se vale da castidade. Ela comemora sua vitória, mas ainda precisará enfrentar a Morte, e ser eternizada pela Fama e pelo Tempo, que por fim são vencidos pela Eternidade, o reino de Deus, último Triunfo. Veja mais aqui.

A ARTE DE ALDEMIR MARTINS
A arte do ilustrador, pintor e escultor Aldemir Martins (1922-2006). Veja mais aqui.

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quarta-feira, agosto 29, 2018

EDU LOBO, ROGERS, GUATTARI, MAETERLINCK, DONIZETE GALVÃO, KAMEL REKOUANE & ALAGOINHANDUBA


DAS COISAS DE ALAGOINHANDUBA – Imagem: arte do artista visual argelino Kamel Rekouane. - Alagoinhanduba nem existe no mapa, coisa que remete ao desprestígio daquelas cidadezinhas escondidas nos cafundós. Até hoje o senso não foi concluído, não havendo concórdia quanto ao exato número de habitantes, sabendo-se apenas dos votantes no período eleitoral. Afora isso, tudo de extraordinário acontece todo dia, desde correr bicho, ataques de tochas sobrenaturais, mula sem cabeça, perna cabeluda, afora escândalos, assassinatos, protestos, assaltos, passeatas, arengas e revoltas, enfim, tudo lá acontece de verdade, a ponto de se constatar que o mundo todo está ali em ebulição. Sempre sujeita às mais insólitas acontecências, o extravagante faz parada diária na resenha popular. Principalmente depois da pendenga instalada pelo estranhamento entre o Padre Quiba e o então coroinha Bidião, que a coisa pegou fogo a ponto de rachar a população no meio e deixá-la em pé guerra. Os anos se passaram e, de um lado, os encolerizados asseclas do pároco local que acusam o então sacristão de partes com o tinhoso e de hereges aqueles que debandaram pras bandas do desavergonhado papa-hóstia, acoloiados dos fuxiqueiros e fanáticos fiéis mais fervorosos. De outro, os antipatizantes do furioso vigário, que elegeram Bidião clérigo opositor, representante dos pobres, oprimidos e espremidos da sede, distritos e periferia, facção essa que vem ganhando simpatia na redondeza, chegando a outros estados e até o estrangeiro. Por conta desse embate escandaloso, deu-se de chegar uma bonitona de uma monja, risonha e amável que atendia pelo nome de Lenora. Ao botar os pés na localidade, a coitada alheia aos últimos acontecimentos, logo foi surpreendida pela hostilidade de guerra civil entre os munícipes, cada qual empunhando seu estandarte e motim. Qual não foi seu assombro no meio do maior fogo cruzado, carregado de pulhas, pedradas e esconjuros entre as trincheiras. Procurou de todo jeito um diálogo com a população aguerrida, estarrecendo-se com as feitiçarias e crendices que reinavam, pasma com tanta gente envenenada pelas grosseiras superstições, cultora de sórdidas e torpes abusões, amuletos, simpatias, benzeduras, feitiços, portadores de ferraduras para se livrarem da sexta-feira treze, de pés de coelho e trevos de cinco pétalas para se salvarem do mau agouro da coruja, do mau-olhado e das esconjuras dos mandingueiros, de só andar com o pé direito evitando passar embaixo de escada ou cruzar com gatos pretos, valendo-se de rezas para proteção contra as pragas do inferno e as tentações do cabuloso. Ao tentar dissuadi-los por uma conciliação, a simpática monja sentiu de perto que não haveria ali consenso algum, sendo logo instada a escolher de que lado ia ficar e, mediante a informação de que não partilhava de nenhuma das duas, foi esculhambada sob a ameaça de quem vai contra a corrente da opinião geral: Ou é herege ou está com a sanidade comprometida, o que pra eles é a mesma coisa. Qual que é, não pode ficar em cima do muro, ou pra lá ou pra cá, resolva! Assustou-se com a emergência da situação. Tentou se abrigar, porém a turba reunida agora já a tinha por inimiga pública número um e já pronta para ser sacrificada em substituição à malhação do Judas que estava em vias de comemoração. Capturada pelo opróbrio, foi arrastada para um local onde erguiam uma cruz, arrancaram-lhe as vestes e escorraçada completamente nua, já investiam em pregá-la crucificada, quando o disco voador do Padre Bidião deu sinal de vida com um rasante de afastar a mundiçada toda e, finalmente, salvá-la daquela humilhação geral. Acolhida quase sem vida, mesmo assim foi achincalhada por todos, resultando acamada por semanas em estado de coma, voltando a si mais de três meses depois, sem saber nem quem era, nem onde estava e o que fazia ali. Coitada, agora zanzava entre as vestais e freiras bidiônicas como uma sonâmbula que perdera o juízo e a própria identidade. Deu trabalho para aprender a balbuciar qualquer coisa que necessitasse, restando seus dias assim, como uma alma penada. Ninguém se compadecia do seu estado, exceto o Padre Bidião que, vez em quando, a levava para seções iniciáticas com o objetivo de lhe recuperar a memória e a vida. Tornou-se com o tempo, patrimônio folclórico do sitio bidiônico dançando com anjos e santos da sua imaginação, vez ou outra vítima de estupros e escárnios sem que nada seja feito em sua proteção. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do compositor, arranjador, instrumentista e cantor Edu Lobo: Camaleão, Limite das Águas, Tantas Marés & Ao vivo & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] Os organismos estão sempre em busca de algo, sempre iniciando algo, sempre “prontos para alguma coisa”. Há uma fonte central de energia no organismo humano. Essa fonte é uma função do sistema como um todo, e não uma parte dele. A maneira mais simples de conceituá-la é como uma tendência à plenitude, à autorrealização, que abrange não só a manutenção, mas também o crescimento do organismo [...]. Trecho extraído da obra Um jeito de ser (EPU, 1987), do psicólogo estadunidense e criador da abordagem psicoterapeuta Terapia Centrada na Pessoa, Carl Rogers (1902-1987). Veja mais aqui, aqui e aqui.

AS TRÊS ECOLOGIAS - [...] O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico-científicas, em contrapartida das quais engendram-se fenômenos de desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície. Paralelamente a tais perturbações, os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugai e familiar se encontra frequentemente "ossificada" por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão. [...] Através de cada um desses exemplos, encontra-se o mesmo questionamento dos modos dominantes de valorização das atividades humanas, a saber: 1. o do império de um mercado mundial que lamina os sistemas particulares de valor, que coloca num mesmo plano de equivalência os bens materiais, os bens culturais, as áreas naturais etc; 2. o que coloca o conjunto das relações sociais e das relações internacionais sob a direção das máquinas policiais e militares. Os Estados, entre essas duas pinças, vêem seu tradicional papel de mediação reduzir-se cada vez mais e se colocam, na maioria das vezes, a serviço conjugado das instâncias do mercado mundial e dos complexos militar-industriais. [...] as três ecologias deveriam ser concebidas como sendo da alçada de uma disciplina comum ético-estética e, ao mesmo tempo, como distintas uma das outras do ponto de vista das práticas que as caracterizam. Seus registros são da alçada do que chamei heterogênese, isto é, processo contínuo de ressingularização. Os indivíduos devem se tornar a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes. (O mesmo se passa com a ressingularização das escolas, das prefeituras, do urbanismo etc). A subjetividade, através de chaves transversais, se instaura ao mesmo tempo no mundo do meio ambiente, dos grandes Agenciamentos sociais e institucionais e, simetricamente, no seio das paisagens e dos fantasmas que habitam as mais íntimas esferas do indivíduo. A reconquista de um grau de autonomia criativa num campo particular invoca outras reconquistas em outros campos. [...]. Trechos extraídos da obra As três ecologias (Papirus,1990), do filósofo, psicanalista e militante revolucionário francês Félix Guattari (1930-1992). Veja mais aqui.

LINDA – [...] Eu vi o sol, a água e o fogo. Eu vi montanhas e o semblante das pessoas e flores raras... as quais não existem aqui na ilha. É muito sombrio e frio, aqui. Desde que eu não enxergo mais, eu não reconheço mais o seu perfume... Eu vi meus pais e minha irmã, eu era muito jovem para saber onde estava... Eu também brincava na praia. Como eu me recordo de ter podido enxergar! Um dia, eu estava no pico de uma montanha, e vi a neve... então eu comecei a reconhecer aqueles que ficam infelizes... [...]. Trecho extraído da peça teatral Os cegos (Cátedra, 2009), do escritor, dramaturgo e ensaísta belga Maurice Maeterlinck (1862-1949). Veja mais aqui.

LIÇÕES DA NOITE - Antes de sair de casa, / mesmo com o sol ainda alto, / convém preparar / a lamparina. / Enchê-la de querosene, / subir-lhe um tanto o pavio / e deixá-la bem perto da porta. / Antes de se ir para a cama, / todo cuidado é pouco: / há que apagar / a lamparina. / Sua fumaça desenha abstrações / que marcam a cal da parede / e tingem de negro nossas narinas. / Quando a luz é precária / e as sombras têm poderes, / tateia-se pela casa a buscar/ a lamparina. / A brevidade de sua chama / e a baixa luz com que nos ilumina / lembram-nos de que a noite é nossa sina. Poema extraído da obra A carne e o tempo (Nankin, 1997), premiado poeta e jornalista mineiro Donizete Galvão. Veja mais aqui.

A ARTE DE KAMEL REKOUANE
A arte do artista visual argelino Kamel Rekouane.

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terça-feira, agosto 28, 2018

NABOKOV, AMADO NERVO, CONFÚCIO, MICHAUX, COCO CHANEL, CLAUDIA VILLELA, OLGA RYKOVA & TCHELLO D’BARROS


O QUE APRENDI DA LUA - Imagem: Arte da artista moldava Olga Rykova. - Aprendi primeiro a escuridão: havia temores na noite. Foi só fechar os olhos e todos os fantasmas se dissolveram ali. Assim aprendi a singrar os céus e os astros sem sair de casa e nenhum passo, a saborear da luz antes sequer imaginada, a me convencer da alma animando meu corpo e o renascimento simbólico na âncora da vida. Aprendi a noite em pleno dia de Palmares, a cantar Lunik 9 de Gil pelas ruas: Poetas, seresteiros, namorados, correi, é chegada a hora de escrever e cantar... a reverenciar os gestos, as distâncias, os olhares, a loucura e a solidão dos corpos celestes e todas as coisas do mundo, entre mitos e lendas, como a da bela índia Bororo branca de olhos claros e cabelos dourados como a manhã, não hesitava em seus passeios noturnos. Ela trocava a noite pelo dia como eu tetéu de tanto desabrigo. Amaldiçoada pela índia escura aliada à cascavel, ficou muito triste por não gostarem dela, pois não tinha ninguém disposto a com ela conviver ou conversar. A sua solidão era a minha e ela conseguiu apenas a amizade da coruja que a instruiu a preparar então uma escada de cipós e ajudá-la a amarrar ao céu. Com a escada pronta, ela subiu e subiu e subiu até se exaurir e dormir exausta numa nuvem e no outro dia tornou-se Lua acesa nas trevas, iluminando a minha vida. Em certos períodos, ela se parece carregada de presságios, a boa sorte dos esquimós e a representar a emoção instintiva, a impulsionar transformações de dentro e de fora, para que eu aprenda mais do que sou. Quando é azul, dá-se cheia reverberando no céu astrológico e eu posso seguir como se manhã ensolarada na minha vida. É no perigeu que ela se aproxima da terra e fica maior e mais brilhante, tão perto de mim, a sussurrar coisas que nem sempre entendo e sei tão valiosas. E quando é cheia de sangue, mexe com o passado por incertezas e dúvidas, fazendo-me aprender com a dúvida de sempre pra nunca ter certeza alguma de nada. Com isso mais aprendi a falar Bororo com a pedra e a taquara. E a pedra me anunciava uma vida longa, e a taquara me ensinava a morrer e a voltar. A pedra então me ensinou a não dobrar com o sopro dos ventos e a força das chuvas, enfrentando o calor, as dores e a preocupação, e a taquara me ensinou a ressurreição nos filhos com a raiz germinando a nascer, crescer, até morrer ouvindo o canto dos pássaros. Aprendi, enfim, a mim mesmo com o inexato e o improvável de tudo, as palavras, pensamentos e ações, e a ir até o começo dos tempos com a música das esferas, vida após vida, todos os dias, o propósito e a razão, a emoção e os mistérios, meios e fins, a transcender as dependências na armadilha da ilusão. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música cantora e instrumentista Claudia Villela: Jangada, Asa verde, Deep sea angel blues & Fuá & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] A humildade é a única base sólida de todas as virtudes. A nossa maior glória não reside no fato de nunca cairmos, mas sim em levantarmo-nos sempre depois de cada queda. Ser ofendido não tem importância nenhuma, a não ser que nos continuemos a lembrar disso. [...]. Pensamento do filósofo chinês, Confúcio (551 a.C. - 479 a.C). Veja mais aqui e aqui.

A NOITE SE MOVE – [...] Quem não aceita este mundo, nele não constrói morada. Se tem frio, e sem ter frio. Tem calor, sem calor. Se derruba bétulas, é como se nada derrubasse; mas as bétulas estão por aí, por terra, e ele recebe o dinheiro combinado, ou, ao contrário, só recebe pancadas. Pancadas como uma dádiva, sem sentido, e desaparece sem se impressionar. [...]. Trecho extraído da obra Moriturus e outros textos (Língua Morta. 2018), do escritor e pintor belga Henri Michaux (1899- 1984). Veja mais aqui, aquiaqui.

LOUJINE – [...] Para Loujine, soa a hora inevitável em que o universo bruscamente se afoga, como se tivessem desligado o interruptor, como se, em meio às trevas, nada mais brilhasse senão algo totalmente inédito, uma ilhota luminosa, sobre a qual doravante toda sua resistência devesse se concentrar [...], Trecho extraído da obra A defesa Lujin ou a precisão do texto (LPM, 1986), do escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977). Veja mais aqui.

ALQUIMIA - Pra te ver, acredito / que a alquimia da morte é requisito, / que me transmude em alma, e delirante / de amor e de ansiedade, cada instante / que chega, e o requeiro / dizendo: “Ah! fosses tu o derradeiro!” / É tão desmesurado, tão risonho, / tão profundo o futuro que suponho / por todos os caminhos estelares, / e através de um em um dos avatares, / sempre contigo, amiga mais sincera, / que por poder morrer, quanto não dera! Poema do poeta mexicano Amado Nervo (1870-1919), Veja mais aqui.

A ARTE DE COCO CHANEL
A verdadeira generosidade é aceitar a ingratidão.
A natureza nos dá o rosto dos vinte anos; a vida modela aos trinta anos; mas aos cinquenta anos, temos o que merecemos.
Se você nasceu sem asas, não faça nada para impedi-las de crescer.
Nossas casas são nossas prisões; sonhamos reencontrar a liberdade na maneira de enfeitá-las.
Uma mulher só precisa de apenas duas coisas: um vestido preto e um homem que a ame.
Trechos e imagens extraídos das obras A era Chanel (Cosac Naify, 2007) de Edmonde Charles-Roux e Chanel, seu estilo, sua vida (Mandarin, 1999), de Janet Wallach, sobre a estilista francesa Coco Chanel (Gabrielle Bonheur Chanel – 1883-1971). Veja mais aqui.

AGENDA
Intemporal, performance do artista multimídia Tchello d’Barros & muito mais na Agenda aqui.
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Arte da artista moldava Olga Rykova.
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Zangão na colmeia, João do Rio, Inês Bogéa, Vilmar Antonio Carvalho, Imprensa & Comunicação, Música Brasileira & Biblioteca Fenelon Barreto aqui.


MARIA RAKHMANINOVA, ELENA DE ROO, TATIANA LEVY, ABELARDO DA HORA & ABYA YALA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Triphase (2008), Empreintes (2010), Yôkaï (2012), Circles (2016), Fables of Shwedagon (2018)...