domingo, agosto 24, 2014

NATALIE DIAZ, GEOFFREY HINTON, PHILOMENA CUNK, ZOÉ VALDÉS, TXUNÔ, BORGES & LEMINSKI

 


TXUNÔ, A DEUSA CAXINAUÁ – Menino travesso de quintal reinava na jabuticabeira. O amigo invisivel escondia-se no cajueiro e me induzia a soltar os passarinhos das gaiolas do meu pai - eram muitas pro gorgeio matinal dele. A mando do genitor fui incumbido de tomar conta, antes só ele limpava e mantinha a passarada. Era a primeira responsabilidade. E nem dava conta que eu soltava um a um, mesmo porque todos ficavam cantando livres nos galhos da mangueira, ora avoando pela goiabeira, presepeiros que eram do cajueiro à jaqueira, desta para a cajazeira, quando não pela mangueira, até a pitangueira não se livrava e eles soltos a traquinar num verdadeiro pomar. Eu soltava o converseiro com elas, assistido por sabiás e outros cantadores curiós, papa-capins, guriatãs, xexéus, bem-te-vis, canários-da-terra, azulões, galos de campina, rolinhas, sebitos, patativas, tinha até um casal de tesourão, o macho do papo vermelho, a fêmea do peito branco, no maior idílio. Deu então de aparecer uma ave azul diferente, vinda do canavial próximo. Não era daquelas do plantel paterno. E como nunca quis pegar nenhum deles, pelo contrário, soltei cada um dos aprisionados, foi exatamente ela que me aguçou pegá-la. Era diferente das demais e logo pedi a providência de alçapões para vê-la de perto. Logo foram providenciados por um dos meus tios e os fiz de arapucas com fatias de mamão, pepino, banana, sementes de girassol, painço e alpiste e deixei lá. Parecia mais que ela mangava e nem aí, ora nos fios da rede elétrica, ora na antena da tevê, pelos galhos, um voo com manobras bruscas. Ainda vou pegá-la, juro! Mostrei ao meu tio: É uma andorinha, quem matá-la ficará cego. Assustei-me. E me contou que quando eu era muito pequeno jogaram meu dente de leite no telhado para que ela trouxesse outro sadio. Ah, tá. Dia vai, dia vem, um besouro miudinho pousou numa armadilha, ela foi pegá-lo e ficou presa. Quando cheguei perto: Não me mate! Se me poupar prometo levá-lo ao paraíso. Eita, ela falava! Como pode? Será uma ave encantada? - Não vou matá-la. E logo abri para que voltasse à liberdade. Soltou-se, só no outro dia reapareceu. Logo participou das conversas da gente tudo contando hestórias de suas aventuras por terras distantes. Era muito bom ter uma ave falante, contava cada uma para lá de interessante. E eu recontava pros outros que me acharam com sinais de maluquice. Meus pais resolveram se mudar e fui morar numa casa sem quintal e não mais a vi, fui perdendo aos poucos o hábito de conversar com plantas e passarinhos. Crescia. O tempo passou e já homem feito viajei a uma metrópole e lá, certa vez, me perdi. E agora? Sem ter nem para onde ir, cheguei a uma esquina e olhei pros lados sem que pudesse imaginar uma solução. Foi então que uma distinta moça se aproximou parece que adivinhando minha aflição. Havia naquele olhar uma certa familiaridade e o seu sorriso era mais que benéfico, parecia que nos conhecíamos há tempos. Ela dispôs-se a me ajudar, convidando-me ao seu apartamento. No caminho ela foi me contando hestórias que me levaram à infância imediatamente. Como pode? Ao me aboletar em sua sala disse-me que seu nome era Txunô. Que estranho? Ela já foi a deusa celta Fand e mãe de Confúcio, como a deusa egípcia Ísis que voejava em torno do sarcófago de Osíris, queixando-se aos gritos até o amanhecer. Chamava-me de Baki e explicou que era a ave do paraíso no Islã, a mensageira da primavera no Hemisfério Norte, símbolo da Estônia e sorte dos marinheiros para voltar ao lar. Era também a data dos equinócios chineses – quando voltava era a primavera. No inverno se transformava em concha e se refugiava na água; que representava a solidão para os persas e a liberdade do céu azul e a felicidade eterna para muitos povos antigos. E o mais importante: levava os mortos para junto de seus antepassados. Aquilo bateu fundo em mim, a ponto de ficar assustado. Ela sorriu lindamente e me abrigou em seu abraço: Cresça, menino. E cumpriu o prometido: levou ao paraíso. Sim, a promessa da infância. Ali fiquei e ao anoitecer todos os dias voava na sua liberdade caxinauá, retornando com o amanhecer para o meu coração. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 


DITOS & DESDITOS - Recuso-me a dizer qualquer coisa além de cinco anos porque não creio que possamos ver muito além de cinco anos. Na ciência, você pode dizer coisas que parecem loucura, mas que no longo prazo podem acabar se revelando certas. Podemos obter evidências realmente boas e, no final, a comunidade mudará de ideia. Acho que as pessoas precisam entender que o aprendizado profundo está tornando muitas coisas, nos bastidores, muito melhores. O aprendizado profundo já está funcionando; ele permite que você pesquise imagens de um termo como "abraço". No cérebro, há conexões entre os neurônios chamadas sinapses, e elas podem mudar. Todo o seu conhecimento está armazenado nessas sinapses. Você tem cerca de 1.000 trilhões de sinapses – 10 elevado a 15, é um número muito grande. Pensamento do psicólogo cognitivo e cientista da computação inglês Geoffrey Hinton.

 

ALGUÉM FALOU: É fácil ver como esses órgãos genitais temíveis e poderosos convenceram gerações de homens de que eram superiores... Dinheiro. As pessoas lutam por isso. Morra por isso. E coloque em porquinhos de porcelana. A medicina significa que podemos tratar tudo, desde doenças inventadas, como a peste, até epidemias modernas, como a alergia ao pão... Todos os relógios do mundo são acertados a partir daqui. O que deve levar séculos. Pensamento humorístico da atriz, comediante e escritora inglesa Diane Morgan, que interpreta a personagem Philomena Cunk, na série Charlie Brooker's Weekly Wipe (2013), uma repórter investigativa mal informada.

 

PRIMEIRO AMOR - […] Por que se chama tierra e não tierro? Por que é redondo, como dois seios costurados um ao outro, como as duas metades de uma laranja — uma naranja — ou a barriga de uma mulher grávida, e nunca teve nenhuma tendência fálica, mesmo quando estava se formando? Por que dizemos naturaleza, no feminino, e não naturalezo? Por que os poetas antigos preferiam escrever la mar e não el mar, como a maioria das pessoas faz hoje? Por que é la noche, noite, la madrugada, amanhecer, la soledad, solidão, la ternura, ternura, la felicidad, felicidade, la luz, luz, la luna, a lua, las constelaciones, as constelações, la voz, uma pessoa voz, las caricias, carícias, las flores, flores, la melancolía, melancolia? Por que pareceria que as palavras realmente poéticas estão no feminino? Mas isso é um absurdo. Mentira, mentira, é feminino, e isso não é tão poético. E há muitas palavras poéticas que são masculinas: el cielo, o céu, el alba, outra palavra para amanhecer, el misterio, mistério, el desea, desejo, el parto, parto, el bien, bem em oposição ao mal. E por falar em mal, isso é masculino em gênero, el mal, e também o é o poder, el poder. Embora não devamos esquecer el querer, amar, palavra que pertence à estratégia do desejo. E também tem um pouco de bondade nisso. Bondad, meu Deus, é uma palavra muito bonita e muito feminina – está conjugada no feminino. Por outro lado, muerte, a morte, que é feminina, não importa o quanto ela se erga para parecer atraente e profunda, ela poderia seduzir alguém? [...] 11 de julho. Ela sempre gostou daqueles números, sete e onze. Na charada, o significado místico das imagens oníricas. Havia charadas em todo o mundo. Na santería charada, Angayú tinha onze anos e Yemayá tinha sete. Na charada cubana, a caixa de fósforos era onze e o excremento era sete. No americano, oficina mecânica tinha onze e meias sete. No chinês, o galo tinha onze anos e a concha, sete. Na charada do Texas, o cavalo tinha onze anos e o porco, sete. Na charada indiana a chuva era onze e o sono era sete. Na charada asteca, a fábrica tinha onze anos e os mariachis, sete. [...] foi a poesia que me ensinou tudo o que sei. A poesia me mostrou o mundo; Tenho uma dívida de gratidão para com a poesia pelo amor que sinto pela natureza, pela terra, pelas árvores, pelo oceano. Antes de ler qualquer poesia, eu parecia uma mulher cega – e muda também, porque não tinha ideia de como colocar meus pensamentos em ordem, não tinha ideia de como falar, as palavras não saíam. A poesia me ensinou a falar. [...]. Trechos extraídos da obra Dear First Love (Harper Perennial, 2003), da escritora cubana Zoé Valdés, que ainda expressa: Viajar com um homem é viajar sozinho. Veja mais aqui e aqui.

 

ENIGMA DA CÚPULAEsta noite estou crivado por esse crânio grosso \ esta bola de boliche branca fechada no triste saco de transporte do meu rosto, \ este osso enrolado jack-in-the-box,\ este zero de Orlando, oferta de Oaxaca: cabeza locada, calayera azucarada, clavo jodido, cenote de Mnemosyne,\ esta doce e pegajosa colméia de culpa,  piedra blanca del rio oscuro, \ este dispensário de mania médica de uma pequena cidade, prescreveu pílula para crânio, \ este tambor azul elétrico tiquetaqueando como uma bomba \ Acme, dispositivo explosivo hipnotizado, general pensativo, guerreiro com couro cabeludo amarrado, \ soldado com um complexo de Deus carregado, \ este cocar destruído por Hotchkiss, labirinto iluminado por Gatling, \ esta granada de memória, epíteto de morte, epitáfio de morte, monte de momento mori, \ este talismã de vinte e duas partes vestindo uma saia de seios, bola gigante de masa, \ esse deus patela na longa perna do meu torso, zoológico de caninos e tigres de Blake, \ esta maçã de casca vermelha, lâmpada iluminada por dentes, grupo de sorrisos, cuspidor de esquemas, \ a queixada de um jumento, um pedaço sorridente de ferida, a pedra de Davi atingindo o Golias do meu corpo, \ esta Biblioteca de Babel, Gólgota local, zoológico de nostalgia,  festival de melão, \ este mausoléu de línguas; chuksanych iraavtahanm, 'agi kwa'anyay sumach nyamasav, \ esta geleira escondida faminta por provar carne titânica, \ este altar do prazer, fábrica de beijos franceses, ábaco de casos de uma noite, \ bordel de hipocampo, masmorra de arrependimento, \ esta igreja da língua, capela da vingança, catedral do pensamento, cúpula óssea do desespero,  praça do toro e pensamentos, \ este museu de odontologia tribal, armário de crânio de mercadoria, apanhador de sonhos petrificado, \ esta bola de basquete arruinada pelo sol que eu carrego - cinza apodrecida nas costuras - arremesso perdido perpétuo, \ este pódio da insônia, pequena tigela em um peixe grande, anfiteatro cerebral, garota na lua,\ este sino de guerra às 3 da manhã,  prisão de visão duende, \ esta corrida de cabeça de baunilha de colher única, cabeça de trovão, bola rápida, raio, vara, \ este cientista maluco com um capacete de laboratório branco, fantasma de Smoking Mirror, \ este farol de coiote, curral de cálcio de pôneis perlino pálidos, \ esta semente do deserto na qual estou enraizado, cereus que floresce à noite, cabaça que virou chocalho, \ esta coroa de Halloween, porta-chapéus, engenhoca de preocupação, barco bêbado de Rimbaud, lustre em chamas, casa de relámpago, \ esta venação do coliseu : o outro tigre de Borges lambendo a casca vazia da tortuga branca de Lorca, \ esta divindade despida, ovo que eclode para sempre, esta caneca repetidas vezes em meus lábios, \ e tudo isso porque esta noite imaginei você dormindo com ela \ a maneira como dormíamos uma vez - tão íntimo quanto uma mandíbula, maxila e mandíbula quentes, \ na pele – apaixonados, nossas cabeças quase se tocando. Poema da premuiada poeta estadunidense Natalie Diaz, autora do livro When My Brother Was an Aztec (Copper Canyon Press, 2013).

 

OUTRAS DIC’ARTES

 

Imagem: arte da médica, escritora e artista plástica pernambucana radicada em Brasília, Jeanne Maz.

 

Ouvindo Oxygene, do compositor francês Jean-Michel Jarre.

 

 

JORGE LUIS BORGES – Entre as tantas leituras feitas do escritor, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino Jorge Luis Borges (1899-1966), destacamos a leitura do seu Elogio das sombras (poemas)/Perfis (um ensaio autobiográfico), tradução dos poemas por Carlos Nejar e Alfredo Jacques, e o ensaio por Maria da Gloria Bordini. É nesse livro que encontramos o extraordinário poema João, I, 14: “Não será menos um enigma esta folha / que as de meus livros sagrados / nem aquelas outras que repetem / as bocas ignorantes, / crendo-as de um homem, não espelhos / obscuros do Espírito. / Eu que sou o É, o Foi e o Será, / torno a condescender à linguagem, / que é tempo sucessivo e emblema. / Quem brinca com um menino brinca com algo / próximo e misterioso; / eu quis brincar com meus filhos. / Estive entre eles com espanto e ternura. / Por obra de magia / nasci curiosamente de um ventre. / Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo / e na humildade de uma alma. / Conheci a memória, / essa moeda que não é nunca a mesma. / Conheci a esperança e o temor, / esses dois rostos do futuro incerto. / Conheci a vigília, o sono, os sonhos, / a ignorância, a carne, / os torpes labirintos da razão, / a amizade dos homens, / a misteriosa devoção dos cães. / Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz. / Bebi o cálice até as fezes. / Vi por meus olhos o que nunca havia visto: / a noite e suas estrelas. / Conheci o polido, o arenoso, o desparelho, o áspero, / o sabor do mel e da maçã, / a água na garganta da sede, / o peso de um metal na palma, / a voz humana, o rumor de uns passos sobre a erva, / o olor da chuva na Galileia, / o alto grito dos pássaros. / Encomendei a um homem qualquer esta escritura; / nunca será o que desejo dizer, / não deixará de ser seu reflexo. / Da minha eternidade estes signos caem. / Que outro, não o que é agora seu amanuense, escreva o poema. / Amanhã serei um tigre entre os tigres / e predicarei minha lei a sua selva, / ou uma grande árvore na Ásia. / Às vezes penso com nostalgia / o olor dessa carpintaria”. Veja mais aqui, aqui e aqui.

 

 

PAULO LEMINSKI – Outras tantas leituras feitas na obra do escritor, crítico literário, tradutor e professor Paulo Leminski (1944-1989), levaram para o seu livro de contos Gozo Fabuloso. Destacamos do volume O segundo futuro, Amon/Aton, Já era uma vez, Bauhaus Dazibaos Kierkegaard Kindergarten (Bauhaus Dazibaos), principalmente A zona venenosa: “[...] todos nós somos fantasmas de um mundo que já acabou e passamos, fantasmas, uns por dentro dos outros, colisão de imagens hologramáticas, eventos estúpidos a trezentos mil quilômetros por segundo, fundação de universos instantâneos” e Transperto: “[...] o destino, esse sinônimo de alguma coisa e coisa alguma [...]. Veja mais aqui, aqui e aqui

 

 

DONIZETE GALVÃO – O premiado poeta e jornalista mineiro Donizete Galvão é autor de obras como Azul navalha (1988), As faces do rio (1991), Do silêncio da pedra (1996), A carne e o tempo (1997), Ruminações (2000), Pelo corpo (2002), Mundo mudo (2003), O sapo apaixonado (2007), Mania de bicho (2010) e O homem inacabado (2010). Dele destacamos Ex-Voto: “mercê de um celerado que consigo se desavinha e no meio do caminho / de sua vida achou-se em beco desprovido de fé e o corpo afligido por / dores padecendo de conturbação dos miolos pensar desembestado / visões de dilaceramento euforias desconformes desacorçôo venetas / arrepio de frio aguadilha na boca e estômago embrulhado e procurando / o não sabe o que veio dar em paragens del Rei e aqui se apegou no intento / embora baldado de que seu coração encontre a pacificação”. 

 

 

FABIO WEINTRAUB - O premiado poeta, psicólogo, editor e crítico Fabio Weintraub é autor de Toda nudez será conquistada (1992), Sistema de erros (1994), Novo endereço (2003) e Baque (2006) e desenvolve trabalhos na Ática, Nankin Editorial e nas revistas Cult e Rodapé. Dele destacamos Fotografia: “De cócoras / como quem ora / ou pragueja / sob a marquise / a mulher / Oculta pelos caixões / embriagada / entre sobras de repolho / Pela calçada em declive / cachorros lambem o chorume / Penso na foto / franzindo a testa / solidário  / imprestável”.

 

 

REGIANE LITZKOW – A jovem escritora e blogueira capixaba Regiane Litzkow é editora do blog Além das Palavras. Dos seus escritores destacamos Elas por ela: “Os olhos que abrigam incertezas / Doces segredos da alma feminina / Utilizam-se de infindáveis sutilezas / Diante do que o mundo determina / Suaves mãos que bordam proezas / E as que a bolsa giram na esquina / Têm donas de incontáveis belezas / Moça, senhora, mulher ou menina / Seu seio aconchegante; um vulcão / Acolhe os guerreiros na madrugada / Razão de tanto suspiro pela avenida / Alimenta a criança recém chegada / Guarda aquilo que dá sentido à vida / Sua fábrica de sonhos; seu coração”.

 
 

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