TXUNÔ, A DEUSA CAXINAUÁ – Menino travesso de quintal
reinava na jabuticabeira. O amigo invisivel escondia-se no cajueiro e me
induzia a soltar os passarinhos das gaiolas do meu pai - eram muitas pro gorgeio
matinal dele. A mando do genitor fui incumbido de tomar conta, antes só ele
limpava e mantinha a passarada. Era a primeira responsabilidade. E nem dava
conta que eu soltava um a um, mesmo porque todos ficavam cantando livres nos galhos
da mangueira, ora avoando pela goiabeira, presepeiros que eram do cajueiro à
jaqueira, desta para a cajazeira, quando não pela mangueira, até a pitangueira
não se livrava e eles soltos a traquinar num verdadeiro pomar. Eu soltava o
converseiro com elas, assistido por sabiás e outros cantadores curiós, papa-capins,
guriatãs, xexéus, bem-te-vis, canários-da-terra, azulões, galos de campina, rolinhas,
sebitos, patativas, tinha até um casal de tesourão, o macho do papo vermelho, a
fêmea do peito branco, no maior idílio. Deu então de aparecer uma ave azul
diferente, vinda do canavial próximo. Não era daquelas do plantel paterno. E
como nunca quis pegar nenhum deles, pelo contrário, soltei cada um dos
aprisionados, foi exatamente ela que me aguçou pegá-la. Era diferente das
demais e logo pedi a providência de alçapões para vê-la de perto. Logo foram
providenciados por um dos meus tios e os fiz de arapucas com fatias de mamão,
pepino, banana, sementes de girassol, painço e alpiste e deixei lá. Parecia mais
que ela mangava e nem aí, ora nos fios da rede elétrica, ora na antena da tevê,
pelos galhos, um voo com manobras bruscas. Ainda vou pegá-la, juro! Mostrei ao
meu tio: É uma andorinha, quem matá-la ficará cego. Assustei-me.
E me contou que quando eu era muito pequeno jogaram meu dente de leite no
telhado para que ela trouxesse outro sadio. Ah, tá. Dia vai, dia vem, um besouro
miudinho pousou numa armadilha, ela foi pegá-lo e ficou presa. Quando cheguei
perto: Não me mate! Se me poupar prometo levá-lo ao paraíso.
Eita, ela falava! Como pode? Será uma ave encantada? - Não vou matá-la. E logo
abri para que voltasse à liberdade. Soltou-se, só no outro dia reapareceu. Logo
participou das conversas da gente tudo contando hestórias de suas aventuras por
terras distantes. Era muito bom ter uma ave falante, contava cada uma para lá
de interessante. E eu recontava pros outros que me acharam com sinais de maluquice.
Meus pais resolveram se mudar e fui morar numa casa sem quintal e não mais a
vi, fui perdendo aos poucos o hábito de conversar com plantas e passarinhos. Crescia.
O tempo passou e já homem feito viajei a uma metrópole e lá, certa vez, me
perdi. E agora? Sem ter nem para onde ir, cheguei a uma esquina e olhei pros
lados sem que pudesse imaginar uma solução. Foi então que uma distinta moça se aproximou
parece que adivinhando minha aflição. Havia naquele olhar uma certa
familiaridade e o seu sorriso era mais que benéfico, parecia que nos
conhecíamos há tempos. Ela dispôs-se a me ajudar, convidando-me ao seu
apartamento. No caminho ela foi me contando hestórias que me levaram à infância
imediatamente. Como pode? Ao me aboletar em sua sala disse-me que seu nome era
Txunô. Que estranho? Ela já foi a deusa celta Fand e mãe de Confúcio, como a deusa
egípcia Ísis que voejava em torno do sarcófago de Osíris, queixando-se aos
gritos até o amanhecer. Chamava-me de Baki e explicou que era a ave do paraíso
no Islã, a mensageira da primavera no Hemisfério Norte, símbolo da Estônia e
sorte dos marinheiros para voltar ao lar. Era também a data dos equinócios
chineses – quando voltava era a primavera. No inverno se transformava em concha
e se refugiava na água; que representava a solidão para os persas e a liberdade
do céu azul e a felicidade eterna para muitos povos antigos. E o mais
importante: levava os mortos para junto de seus antepassados. Aquilo bateu
fundo em mim, a ponto de ficar assustado. Ela sorriu lindamente e me abrigou em
seu abraço: Cresça, menino. E cumpriu o prometido: levou ao paraíso. Sim, a
promessa da infância. Ali fiquei e ao anoitecer todos os dias voava na sua
liberdade caxinauá, retornando com o amanhecer para o meu coração. Veja mais
aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - Recuso-me a dizer
qualquer coisa além de cinco anos porque não creio que possamos ver muito além
de cinco anos. Na ciência, você pode dizer coisas que parecem loucura, mas que
no longo prazo podem acabar se revelando certas. Podemos obter evidências
realmente boas e, no final, a comunidade mudará de ideia. Acho que as pessoas
precisam entender que o aprendizado profundo está tornando muitas coisas, nos
bastidores, muito melhores. O aprendizado profundo já está funcionando; ele
permite que você pesquise imagens de um termo como "abraço". No
cérebro, há conexões entre os neurônios chamadas sinapses, e elas podem mudar.
Todo o seu conhecimento está armazenado nessas sinapses. Você tem cerca de
1.000 trilhões de sinapses – 10 elevado a 15, é um número muito grande. Pensamento do psicólogo
cognitivo e cientista da computação inglês Geoffrey Hinton.
ALGUÉM FALOU: É fácil ver como esses órgãos genitais temíveis e poderosos
convenceram gerações de homens de que eram superiores... Dinheiro. As
pessoas lutam por isso. Morra por isso. E coloque em porquinhos de porcelana. A
medicina significa que podemos tratar tudo, desde doenças inventadas, como a
peste, até epidemias modernas, como a alergia ao pão... Todos os relógios do mundo são acertados a partir
daqui. O que deve levar séculos. Pensamento humorístico da atriz, comediante e escritora inglesa Diane
Morgan, que interpreta a personagem Philomena Cunk, na série Charlie
Brooker's Weekly Wipe (2013), uma repórter investigativa mal informada.
PRIMEIRO AMOR
- […] Por que
se chama tierra e não tierro? Por que é redondo, como dois seios
costurados um ao outro, como as duas metades de uma laranja — uma naranja — ou
a barriga de uma mulher grávida, e nunca teve nenhuma tendência fálica, mesmo
quando estava se formando? Por que dizemos naturaleza, no feminino, e
não naturalezo? Por que os poetas antigos preferiam
escrever la mar e não el mar, como a maioria das pessoas faz hoje? Por que é la noche,
noite, la madrugada, amanhecer, la soledad, solidão, la ternura, ternura, la
felicidad, felicidade, la luz, luz, la luna, a lua, las constelaciones, as
constelações, la voz, uma pessoa voz, las caricias, carícias, las flores,
flores, la melancolía, melancolia? Por que pareceria que as palavras
realmente poéticas estão no feminino? Mas isso é um absurdo. Mentira, mentira, é
feminino, e isso não é tão poético. E há muitas palavras poéticas que são
masculinas: el cielo, o céu, el alba, outra palavra para amanhecer, el
misterio, mistério, el desea, desejo, el parto, parto, el bien, bem em oposição
ao mal. E por falar em mal, isso é masculino em gênero, el mal, e também o é o
poder, el poder. Embora não devamos esquecer el querer,
amar, palavra que pertence à estratégia do desejo. E também tem um
pouco de bondade nisso. Bondad, meu Deus, é uma palavra muito
bonita e muito feminina – está conjugada no feminino. Por outro lado,
muerte, a morte, que é feminina, não importa o quanto ela se erga para parecer
atraente e profunda, ela poderia seduzir alguém? [...] 11 de julho. Ela
sempre gostou daqueles números, sete e onze. Na charada, o
significado místico das imagens oníricas. Havia charadas em todo o mundo. Na santería charada,
Angayú tinha onze anos e Yemayá tinha sete. Na charada cubana, a caixa de fósforos era
onze e o excremento era sete. No americano, oficina mecânica tinha onze
e meias sete. No chinês, o galo tinha onze anos e a
concha, sete. Na charada do Texas, o cavalo tinha onze
anos e o porco, sete. Na charada indiana a chuva era onze e o
sono era sete. Na charada asteca, a fábrica tinha onze
anos e os mariachis, sete. [...] foi a poesia que me ensinou tudo o que
sei. A poesia me mostrou o mundo; Tenho uma dívida de gratidão para com a
poesia pelo amor que sinto pela natureza, pela terra, pelas árvores, pelo
oceano. Antes de ler qualquer poesia, eu parecia uma mulher cega – e muda também,
porque não tinha ideia de como colocar meus pensamentos em ordem, não tinha
ideia de como falar, as palavras não saíam. A poesia me ensinou a falar. [...]. Trechos
extraídos da obra Dear First Love (Harper Perennial, 2003), da escritora cubana Zoé
Valdés, que ainda expressa: Viajar com um homem é viajar sozinho. Veja mais aqui e
aqui.
ENIGMA DA CÚPULA – Esta
noite estou crivado por esse crânio grosso \ esta bola de boliche branca
fechada no triste saco de transporte do meu rosto, \ este osso enrolado
jack-in-the-box,\ este zero de Orlando, oferta de Oaxaca: cabeza locada, calayera
azucarada, clavo jodido, cenote de Mnemosyne,\ esta doce e
pegajosa colméia de culpa, piedra blanca del rio oscuro, \ este
dispensário de mania médica de uma pequena cidade, prescreveu pílula para
crânio, \ este tambor azul elétrico tiquetaqueando como uma bomba \ Acme,
dispositivo explosivo hipnotizado, general pensativo, guerreiro com couro
cabeludo amarrado, \ soldado com um complexo de Deus carregado, \ este cocar
destruído por Hotchkiss, labirinto iluminado por Gatling, \ esta granada de
memória, epíteto de morte, epitáfio de morte, monte de momento mori,
\ este talismã de vinte e duas partes vestindo uma saia de seios, bola gigante
de masa, \ esse
deus patela na longa perna do meu torso, zoológico de caninos e tigres de
Blake, \ esta maçã de casca vermelha, lâmpada iluminada por dentes, grupo de
sorrisos, cuspidor de esquemas, \ a queixada de um jumento, um pedaço
sorridente de ferida, a pedra de Davi atingindo o Golias do meu corpo, \ esta
Biblioteca de Babel, Gólgota local, zoológico de nostalgia, festival de
melão, \ este mausoléu de línguas; chuksanych iraavtahanm, 'agi kwa'anyay sumach nyamasav, \ esta
geleira escondida faminta por provar carne titânica, \ este altar do prazer,
fábrica de beijos franceses, ábaco de casos de uma noite, \ bordel de
hipocampo, masmorra de arrependimento, \ esta igreja da língua, capela da
vingança, catedral do pensamento, cúpula óssea do desespero, praça do toro e pensamentos,
\ este museu de odontologia tribal, armário de crânio de mercadoria, apanhador
de sonhos petrificado, \ esta bola de basquete arruinada pelo sol que eu
carrego - cinza apodrecida nas costuras - arremesso perdido perpétuo, \ este
pódio da insônia, pequena tigela em um peixe grande, anfiteatro cerebral,
garota na lua,\ este sino de guerra às 3 da manhã, prisão de visão duende, \ esta
corrida de cabeça de baunilha de colher única, cabeça de trovão, bola rápida,
raio, vara, \ este cientista maluco com um capacete de laboratório branco,
fantasma de Smoking Mirror, \ este farol de coiote, curral de cálcio de pôneis
perlino pálidos, \ esta semente do deserto na qual estou enraizado, cereus que
floresce à noite, cabaça que virou chocalho, \ esta coroa de Halloween,
porta-chapéus, engenhoca de preocupação, barco bêbado de Rimbaud, lustre em
chamas, casa de
relámpago, \ esta venação do coliseu : o outro tigre de Borges
lambendo a casca vazia da tortuga branca de Lorca, \ esta divindade
despida, ovo que eclode para sempre, esta caneca repetidas vezes em meus
lábios, \ e tudo isso porque esta noite imaginei você dormindo com ela \ a
maneira como dormíamos uma vez - tão íntimo quanto uma mandíbula, maxila e
mandíbula quentes, \ na pele – apaixonados, nossas cabeças quase se tocando.
Poema da premuiada poeta estadunidense Natalie Diaz,
autora do livro When My Brother Was an Aztec (Copper Canyon Press, 2013).
OUTRAS DIC’ARTES