HYBRIS: A PROSCRIÇÃO DE MACACO & AURORA - Mantém a luta do que alcançou e a
desfrutar pra sempre o seu quinhão!... Êta mundo véio, arrevirado e de
porteira escancarada... 1 - Sozinho, canto & voo por aí. Sou deste chão
desde o tempo em que o céu estava mais perto e as nuvens e estrelas ao alcance
da mão. Não havia noite no dia sem fim, todos os seres e coisas falavam e
éramos um só nas ocas e ocaras. Nada além do tacape e cocar, cunhã, cunhantãs e
curumins. Quando a noite apareceu o mundo cresceu e todos viviam de dormir e
sonhar. Depois de muito vagar sem paradeiro, finalmente fui acolhido pelas
gentis vespas que ficaram condoídas com minha aflição. Elas então permitiram
que ali fizesse o meu ninho e me arranchasse, mantendo meus detratores bem
longe. Lá estavam elas e quase nem distinguia umas das outras, apenas das
formigas e abelhas. Entre elas eu nem sabia que pudesse existir as vespas-cuco,
as vespas-do-figo, vespas-de-oleiro e os marimbondos e cubatões que por ali
viviam. Há espaço e formas para tudo e todas. No meio delas também as vespas
mandarinas que eram assassinas gigantes e que viviam em colônias, atacando
abelhas e lagartas e, inclusive, entre outras vítimas estavam aves e humanos,
quem vítima de sua toxina potente, tanto desfalecia a sofrer, como podia ser
levado às exéquias. Dessas mantive distância, quanto mais longe melhor, já
tinha encrenca demais. As outras se davam bem comigo e só atacavam com suas
firmes picadas os gafanhotos, pulgões, aranhas e abelhas. Ali convivi entre
elas, não sabia até quando ou por quanto tempo. Chamavam-me por João-conguinho
e encontrei pouso entre os galhos das árvores da mata, às margens do rio. Preferia
às mangueiras, as prediletas. Ergui meu ninho coberto com folhas de palmeiras,
gravetos e capins. Na vizinhança uma coruja de Atena abriu o bico eloquente e me
contou imbuída de solenidade: Aos não sei mais de quantos dias do ano da graça
de mil e quinhentos e cipopau primeiro, Pindorama, que era a Terra dos
Papagaios, passou a ter outros nomes que desceram pelas águas heraclitamente
roladas. Outras caras pálidas aqui já se encontravam e iam para cima e para
baixo, e ignoraram ou nem se deram conta dessoutros que agora mandavam
revestidos pelos poderes de deidade corporificada mais sisuda e autorizada não
se sabia por quem. Para os invasores recém-chegados aqui era “em tal maneira
graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”. Porém, outro cara
pálida doutra paragem dos de lá, todo de nariz empinado meteu caroço no angu -
era um certo galego chamado Américo Vespúcio que jogou na lata deles que: “Pelo
visto, nessa terra não tem nada que se aproveite”. Foi por causa dessa
arenga que a gente ficou sabendo duma bula papal confirmatória e de um tratado
que rachava o território todo no meio para uns e outros que nem daqui eram. Daí
começou-se a nomear as coisas com os nomes e sotaque deles: daqui por diante
será o breasail celta; outros que não
era isso, pois nada mais que bradshita
sânscrito, enquanto quem aparecia batia o pé que era brázein grego, nada é o brasile
latino, ou que era verzino toscano,
ou berzi vêneto, ou parasil aríaco, ou bras germânico ou, ainda, o brezill
genovês. Teve ainda quem dissesse que era parte da ilha atlântica da lenda
antiga irlandesa, Hy-Brazail! Pronto,
maior confusão. Ainda diziam mais eles que os originários tratavam de ibira-ciri tupi por causa da Caesalpina echinata, e do paraci tupi-guarani. Ah, mas isso não
vale nada! E impunham as suas nomenclaturas. Na verdade, se antes era o éden
terrestre de milênios, a partir de então, não mais: tudo pegou fogo em brasa! É
que antes tudo aqui já foi palco para exploração fenícia, vikings, celtas,
iberos, gauleses, bretões, anglos, saxões, francos, germanos, neerlandeses e o
escambau, pois aqui fizeram, pintaram e bordaram. E há muito tempo atrás. O que
queres me dizer, gentil coruja, tão imponentemente? Não sabes? Não. Saiba: os
últimos invasores depois da perdição da deriva por quaraquaquá dias, se achavam
donos do que encontrassem. O destino era outro, mas erraram e ficaram no meio
das águas atlânticas sem saber se iam a bombordo ou a estibordo, raios! Lá em
alto mar, o primeiro sinal: um rabo-de-asno. Curiosos e atentos mantiveram o
curso. Depois, surpreendidos com o segundo sinal: o voo do fura-bucho. Olha!
Estão vendo? É por aqui mesmo, sigam os sinais! Enfim, o terceiro e mais
límpido sinal: excrementos boiavam. Logo gritaram: Terra à vista. Aí soou o
boré com notícias do alto da palmeira dando conta de estrangeiros ao mar e
vindos não se sabia de onde. Os perós chegaram mesmo e não sabiam se era uma
ilha, um continente ou raio que o parta. Aí começaram a festejar o Vira na
cantoria: “Ó cachopa, se tu queres ser
bonita, arrebita, arrebita, arrebita”. E como não existia pecado ao sul do
Equador, a festa começou: todo mundo nu. Só se sabe que chegaram e se
aproximaram com sua soberba desalmada, em nome de um deus estranho do açúcar a
invadir as terras e se apossando das coisas, tomando a língua e crenças. E
fizeram crer no que era de seu e oprimiram e desconheceram o que não era. À
custa de traições capturaram os guerreiros, sequestraram Iangaí pros domínios
do donatário e aprisionaram os demais que foram ceifados um a um. Ela estava
jurada como a preferida do mandatário, não havia outra escolha. No dia que
massacraram os prisioneiros, entre eles aquele a quem seu coração esperava, foi
então que preferiu pular da torre para se entregar à fúria das ondas do mar. A
sua queda foi acompanhada por suas lágrimas ao crepúsculo e ela geme até hoje
nas cercanias de lá de Olinda, em dó menor. Curiosa narrativa, senhora coruja!
Ainda tem mais, gracioso passarinho, atente: depois
que Iangaí se foi, as coisas seguiram de mal a pior. Do outro lado as notícias também não eram
boas, pois com a chegada do bispo severíssimo novas medidas foram tomadas, o
que gerou descontentamento dos grandes. Houve logo um racha entre esse bispo e
o governador geral recém-chegado também botou pra cima dos que lá estavam. O
racha não demorou muito, era inevitável. O desenlace detonou os maus
procedimentos do colono que só tinha olhos para enriquecer, ganhar fama e
glória com ouro e pérolas, tomando as terras, derrubando as matas, incendiando
aldeias, destruindo plantações e, de quebra, todos os aborígenes escravizados.
Os tapuitingas botaram para quebrar na promiscuidade, dando vida aos macunaímas
que iam nascendo, primeiro mamelucos, depois mulatos, cafuzos e curibocas. A
escaramuça se agigantava envolvendo não só os caetés, como também potiguares,
tupinambás, tupiniquins, goitacases, tamoios, goianases, guaranis, carijós,
cariris, paiaguás, caiapós, maras, maués, mundurucus, guaicurus, tremembés,
tabajaras, todos os parus e tapuias de todo território. Afora as investidas cada vez mais sanguinolentas, ainda
mataram o tal bispo e a coisa recrudesceu. E mais se agravava para os engenhosos e destemidos caetés. Resistiam aos perós
inclementes em devastar tudo e implantar a cana na agora capitania, mais
bravura demonstravam. Deram-se panos para as mangas de muito arranca-rabo
sanguinolento. O donatário que havia morrido dum naufrágio e fora substituído
pela esposa e um seu parente não aliviaaram na refrega, passando a ter aliados
colonos que também queriam massacrar os aborígenes. Das quinze capitanias
ocupadas por doze donatários, só duas deram certo: Pernambuco e São Vicente.
Nestas o invasor esmagou todas as resistências para implantação da monocultura
da cana, tornando-se a maldição da localidade: o sangue indígena e de negros
traficados da África esmagados nos engenhos das capitanias da colônia, passava
a o doce dos privilégios das cortes e do clero deles. Reinaram as moendas,
assentamentos, encaixamento, destilação, bagaceira, moagem, latifúndio, tudo
por força do braço escravo. Os da gente empunharam azagaia e flechas para
resistir até serem condenados pela morte do bispado que sequer foi visto pela
gente originária. E perseguiram até a quinta geração pelas matas, litoral,
agreste e sertão. E demonizaram os costumes nativos e os fizeram inimigos de
todos. Restou o estigma e a ojeriza da maldição perseguindo os descendentes,
como se da vida restasse apenas o castigo pra morte. É que ao paparem o bispo,
logo acharam por bem culpar os caetés. Aí empacou: tempo em que a derrota
estoura pra todo lado. Que situação problemática essa, hem, coruja? Era outro
então janeiro quando a coisa aconteceu. As macunaimices de curibocas, mamelucos
e filhos-da-mãe sacudiram o tempo desde antanho. Indígenas prosseguiram vítimas
da catequese e até escravizados por séculos depois. Também os negros, ambos
viviam numa viela: ou escravos ou perseguidos nos matos. No final não mais
havia ocas nem ocaras, muito menos um cocar sequer em pé. Os indígenas eram
submetidos à catequese e à escravidão para trabalhar na cana, e só tinham por
opção submeter-se ou fugir. Os que não aceitavam, diga-se a maioria, meteram os
pés na bunda e fugiram para o interior do continente. Um desses lugares é este
aqui, Macaco, onde nos encontramos agora. Tudo porque os horrores e crueldades
faziam parte das entradas e das jornadas de extermínio: eram as expedições
militares contra os indígenas para os subjugarem, torná-los presas e conquistar
suas terras. Nas entradas contra os selvagens, iam mamelucos faladores da
língua dos brazis, os soldados portugueses e os nativos aliados armados de
flechas, os tabajaras. Os conquistadores que logravam voltar de suas excursões,
só aguardavam a primeira moção para reorganizarem novas entradas. Logo foram
chegando fugitivos que se agrupavam no alto dos morros, como o daqui. Tempos
depois, apareceram entre eles negros que fugiam da escravatura. Foi entre eles
que presenciei o ritual de tirar marimbondo, quando se quebrava o ninho deles
para iniciação. No evento era permitida estritamente a presença masculina e da
qual participavam rapazes que desde menino festejavam a descoberta de um ninho
de maribondos nos arredores. O tema era motivo de muitas conversas e planos
entre os curumins, até o dia em que os adultos resolviam derrubá-lo para que
cada um pegasse um pedaço e pintasse o rosto e antebraço para ficarem valentes.
Todos saíam à caça de um ninho de marimbondo para se fortalecer, escolhendo-se
aquele que tivesse próximo de metro de altura e conferisse se os marimbondos
eram realmente bravos para assim fortificá-los. Antes de derrubá-lo, os
escolhidos procediam na limpeza do terreno embaixo da árvore em que o ninho se
encontrava alojado, removendo os arbustos e roçando o terreno. Depois caçavam
paus muito compridos e construíam uma escada que tivesse a capacidade de chegar
até o alto onde se encontrava o alvo. No dia aprazado para a derrubada do
ninho, todos se reuniam no centro da praça, cantavam músicas para enfrentarem a
experiência assustadora e os anciões faziam discursos incentivadores sobre a
prática. Um deles contava que começou a tirar maribondo ainda solteiro e que
tirava um surrão para sentir e saber o que é a dor. Era preciso fazer isso para
não ter medo de nada e reiterava: Eu tiro marimbondo até hoje! No outro dia,
todos saíam bem cedinho pintados com urucum e carvão, ornados de plumas nos
braçais e coroas de palha. No caminho um alerta: Os
maribondos estão dormindo, não podemos acordá-los. Os movimentos eram lentos e
silenciosos. Um deles esfregava umas folhas no tronco da árvore: era remédio do
maribondo para ele ficar mais bravo. Os mais velhos exortavam os mais jovens a
não terem medo nem serem fracos. Eles seguiam cantando e ao chegarem ao pé da
escada, as mulheres começavam o ritual do choro em voz alta, incentivando a
empreitada. Nesse instante subiam as escadas o mais rápido que pudessem e
golpeavam com a mão aberta até destruir o ninho dos maribondos. Com a destruição
eles desciam escorregando e perseguidos pelos furiosos até o chão. Logo eram
envolvidos por cobertores que eram esfregados em socorro, retirando aqueles que
se encontravam enfiados na pele. Mexeu com marimbondo sai todo mundo
encalombado. Toda essa valentia adquirida dos
maribondos era porque tinham que enfrentar os conquistadores que ameaçavam
recapturá-los e escravizá-los. É que os maldosos caçavam caetés, além de
fugitivos boçais e ladinos minas, nagôs, guinéus, minas-nagôs, cafres,
calabares, minas-popos, hauçás, malês, jejes, grumcis, tapas, iabus, benins,
mundubis, bornus, baribas, grumas, camarões, congos e cabindas, tudo para
adoçar o mundo com a desgraça deles. A estratégia dos traficantes era mantê-los
misturados quando aprisionados para que eles não se entendessem de jeito
nenhum, senão era prejuízo certo. A
exemplo das carnificinas que vitimaram os ameríndios, os escravos também não
escaparam de castrações, amputações, extrações e torturas as mais terríveis.
Isso sem falar que eram, entre outras malvadezas, punidos severamente quando
famintos, pois só tinham por comida lamber o querosene dos lampiões. Por isso,
tinha até escravas que preferiam abortar a ver seus filhos nessa desgraceira de
vida. E era justamente esse infortúnio que os fraternizava para sublevar,
causando a criação de quilombos. A fuga era a única forma de libertação e
representava um perigo para os poderosos invasores: a tentativa de que aqui
repetisse a façanha da ilha de São Tomé, quando os negros tomaram pé da coisa e
expulsaram os portugueses de lá. A rebelião começou quando os fugitivos se
deram munidos de armas de fogo, chuços, de facões e de lanças. Inspirado nesse
evento nascia, então, Palmares, localizada numa imensa selva entre o rio São
Francisco e o Cabo de Santo Agostinho, abrigo para os nativos, negros
fugitivos, mamelucos, mulatos e brancos, bem como fugitivos do serviço militar,
criminosos e todos os perseguidos e deserdados da sociedade colonial. Também
aqui em Macaco, outro quilombo foi instaurado. Os senhores de engenho logo se
mobilizaram para destruí-los, contratando os sanguinários e violentos
bandeirantes paulistas, capitaneados por Domingos Jorge Velho. Esses
bandeirantes eram promotores de briga, ruína e terror. Começaram com o
extermínio dos janduins. Depois disso investiram pesado em Palmares e foram
tantas, uma atrás da outra e nada. Vai e volta, passavam-se os anos, até o dia
que juntaram todo ódio e partiram com tudo para acabar com o que tivesse em pé.
Os paulistas armaram uma cilada, emboscaram o líder Zumbi e deram tudo por
terminado. Perfídia no prato,
mamata na cuia. Mesmo? Sim, aqui o lugar em que estão escondidos outros
fugitivos, inclusive de Palmares. Já se dizia entre os daqui que os
malunguinhos viviam nas matas do Catucá, e outras que lhe ficavam próximas, e
tinham o seu quartel general no lugar denominado Macacos que é aqui. Os
malvados descobriram e nasceram mais bafafás, enrolanças, trairagem,
arrumadinhos e fuleragens que vão engroçando o nó-cego e fizeram destas terras um
verdadeiro boi-de-fogo até hoje! Começaram por dizer que os muito branco são
sararás, os muito pretos malunguinhos. Os sararás brigavam todos pela teta,
todos choram para mamar. O pau cantou tiruléu da Marieta no fandango da Nau
Catarineta: Marinheiros somos! Marujada
do Mar! Corre acima, Gageiro! Naquele topo real e de lá vê se descobres
terras de Espanhas, ó tão linda! Ou areias de Portugal! Por quanto tempo, hem? Escravocratas
e açucarocratas privilegiados buscavam daqui o sertão e o vale amazônico. Com
eles a pecuária, o extrativismo vegetal baseado nas “drogas do sertão” e do
apresamento de indígenas. Entre as tais drogas estavam o cacau, guaraná,
borracha, castanha-do-pará, gergelim, noz de pixurim, baunilha, coco, dentre
outras. As entradas e bandeiras aprofundaram território adentro até a corrida
do ouro, quando começa novamente o confronto entre os emboabas e os macunaímas
que foram expulsos das Minas e seguiram para jazidas em Goiás e Mato Grosso.
Outras guerras eclodiram, insurreições e a nefasta ação dos traficantes
nordestinos que superavam a concorrência de nações poderosas. Novos tratados
eram negociados e adotados, tudo por causa da extinção das capitanias
hereditárias e o ouro de aluvião de Minas. A classe açucareira retomava fôlego,
bem como o algodão no Maranhão, o café em São Paulo e o arroz no Rio de
Janeiro. É o tempo da Inconfidência Mineira no meio dos ideais liberais. A
família real foge da metrópole para a colônia: quem tivesse duas propriedades,
perdia uma para os migrantes. A colônia fora promovida a Reino Unido,
juntamente com Portugal e Algarves. Explode a revolução pernambucana, seguida
pelo Movimento Constitucionalista, ambos nos ideais do liberalismo e prontos
para se livrarem de Portugal. Com tanto barulho por independência do jugo,
deu-se então a suposta independência oficial que serviu de mesmo para
cumprimento de um acordo assinado com uma cláusula secreta onde o Brasil
saldava as dívidas de Portugal com o pagamento de 1,4 milhão de libras
esterlinas à Inglaterra. Eis, então, que um capitão mor achou de casar com uma
negra e foi rebaixado pelo vice-rei por decreto: manchou o sangue tornando-se
indigno do cargo. Daí, aos trancos e barrancos chegou-se à suposta proclamação
da República que começou com um Manifesto Republicano. O que houve na verdade
foi um arrumadinho dos militares acoloiados com um punhado miúdo de civis – do
café de Sampa, do ouro de Minas e da cana, implantando o Federalismo, o sistema
presidencialista, a independência dos poderes e outras mais. De primeira
baniram o rei e empossaram um marechal alagoano que era um cavalo batizado e todo
mundo tinha medo dele, mas só era quem podia celebrar a primeira Constituição
dos Estados Unidos do Brasil. A ascensão do Águia de Haia deu no Encilhamento,
para estourar a Revolução Federalista que dura até a libertação do Rio Grande
do Sul. Também ribomba a Revolta Armada iniciada no Rio de Janeiro até atingir
o Rio Grande do Sul. E o governo passando de Deodoro para Floriano Peixoto,
outro marechal alagoano pé-duro. Depois Prudente de Morais, o primeiro civil
que, dois anos da posse, enfrenta o cenário de Canudos, porque o messiânico
líder Antonio Conselheiro e seus jagunços declararam guerra à República pela
restauração da Monarquia. Vem logo em seguida o paulista Campos Sales, que
antes mesmo de assumir, negocia um acordo, o Funding Loan, pelo qual suspende os pagamentos do país para
contrair novo empréstimo. Era só a bagatela de 10 milhões de libras que
entravam na roda e que foram amortizadas a juros sobre juros, só quitada nos
1960. Quanta coisa!?! Uma coruja para lá de sabichona! Como é que você sabe
tudo isso? Ou está somente jogando conversa fora, contando uma história da
carochinha? Não, meu preclaro passarinho. Tive que aprender a voar alto e o
mais longe possível. Trilhei caminho estreito pra escorregar estrada larga. Não
quis ficar como as minhas irmãs apenas rasgando mortalha. Aprendi a voar alto,
às duras penas consegui atravessar o oceano e fui pro outro lado. Consegui
viajar por muitos países, acessar outras informações e me envolver com outros
arquivos secretos. Enquanto dormiam lá estava eu vasculhando livros e
bibliotecas secretas nos reinados, no Vaticano e na Companhia das Índias
Ocidentais. Foram muitas noites infindas revirando páginas e voando daqui
pracolá. Já estou bem velha, não posso mais voar tanto e fico aqui para contar
a quem quiser ouvir. Então, muitas coisas aconteceram que ninguém sabe, né? Sim.
Muita coisa encoberta num inverno em que a temperatura cai, beira os catorze
graus centígrados por aqui e ninguém sente! Para mim mesmo parece que está
normal, exceto quando os estrangeiros invasores que você diz, assim do nada
aparecem para botar a gente pra voar. Sim, para saber é preciso voar alto: só
lá de cima é que se pode ver tudo no amiudado. E aprende: o tempo faz e não
diz, o tempo leva e não traz. A vida faz a dívida e a morte é quem tira a conta.
Voo, Xexéu... Veja mais aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - Estamos
aprendendo o tempo todo – sobre o mundo e sobre nós mesmos. Aprendemos sem
saber que estamos aprendendo e aprendemos sem esforço a cada momento do dia.
Aprendemos o que nos interessa... e aprendemos com o que nos faz sentido,
porque não há nada a aprender com o que nos confunde, exceto que é confuso. Os
melhores professores são os melhores contadores de histórias. Ler e escrever
não andam inevitavelmente juntos. Você pode ler sem aprender nada sobre
escrita, gramática ou ortografia, embora certamente não possa aprender nada
sobre escrita, gramática ou ortografia a menos que leia. Pensamento do
psicolinguista canadense Frank Smith (1928–2020, autor da obra Compreendendo
a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler (Artmed,
2003).
ALGUÉM FALOU: Uma ideia
criativa será definida simplesmente como aquela que é ao mesmo tempo nova e
útil ou influente num contexto social específico. O que me tornou empática
foram minhas depressões. Quando as obsessões dos outros não são as nossas,
ficamos tristes por eles e falamos de como suas vidas serão vazias se não
alcançarem seu objetivo vazio: o prêmio da ginástica, a parceria firme. Mas há
uma monomania em que o foco, a sensação de transporte, é o verdadeiro prazer. Escrever
regularmente, com inspiração ou não, não é uma má maneira de eventualmente
entrar no clima inspirado; o avião tem que bater na pista por um tempo antes de
finalmente decolar. Pensamento da médica, educadora e neurologista
estadunidense Alice Weaver Flaherty.
NEGAÇÃO DA MORTE - [...] O caminho para a
criatividade passa tão perto do hospício e muitas vezes desvia ou termina aí. [...] O homem não
pode suportar a sua própria pequenez, a menos que possa traduzi-la em
significado no maior nível possível. [...] Quando somos jovens, muitas
vezes ficamos intrigados com o fato de que cada pessoa que admiramos parece ter
uma versão diferente do que a vida deveria ser, do que é um homem bom, de como
viver e assim por diante. Se formos especialmente sensíveis, parece
mais do que intrigante, é desanimador. O que a maioria das pessoas costuma fazer
é seguir as ideias de uma pessoa e depois de outra, dependendo de quem aparece
no horizonte naquele momento. Aquele com a voz mais profunda, a
aparência mais forte, a maior autoridade e sucesso, geralmente é aquele que
consegue nossa lealdade momentânea; e tentamos moldar nossos ideais segundo
ele. Mas à medida que a vida avança, ganhamos uma perspectiva sobre isso e todas
essas diferentes versões da verdade tornam-se um pouco patéticas. Cada pessoa pensa
que tem a fórmula para triunfar sobre as limitações da vida e sabe com
autoridade o que significa ser homem, e geralmente tenta conquistar seguidores
para sua patente específica. Hoje sabemos que as pessoas se esforçam
tanto para ganhar adeptos para o seu ponto de vista porque é mais do que apenas
uma visão da vida: é uma fórmula de imortalidade. [...] Somos deuses com
ânus. [...] A ironia da condição do homem é que a necessidade mais profunda
é estar livre da ansiedade da morte e da aniquilação; mas é a própria vida
que o desperta, e por isso devemos evitar estar plenamente vivos. [...] Contudo, ao
mesmo tempo, como também sabiam os sábios orientais, o homem é um verme e
alimento para vermes. Este é o paradoxo: ele está fora da
natureza e desesperadamente dentro dela; ele é duplo, está nas estrelas e ainda
assim está alojado em um corpo de tirar o fôlego e com o coração acelerado, que
pertenceu a um peixe e ainda carrega marcas de guelras para provar isso. Seu corpo é um
invólucro material carnudo que lhe é estranho em muitos aspectos – o mais
estranho e repugnante é que ele dói e sangra, e irá decair e morrer. O homem está
literalmente dividido em dois: ele tem consciência de sua própria esplêndida
singularidade, na medida em que se destaca da natureza com uma majestade
imponente, e ainda assim ele volta alguns metros para o chão para apodrecer
cega e silenciosamente e desaparecer para sempre. É um dilema terrível
estar e ter que conviver. Os animais inferiores são, evidentemente,
poupados desta dolorosa contradição, pois carecem de uma identidade simbólica e
da autoconsciência que a acompanha. Eles apenas agem e se movem
reflexivamente, movidos por seus instintos. Se eles fizerem alguma pausa, será apenas
uma pausa física; por dentro eles são anônimos e até seus
rostos não têm nome. Eles vivem num mundo sem tempo, pulsando,
por assim dizer, num estado de ser mudo. Isto é o que tornou tão simples abater
rebanhos inteiros de búfalos ou elefantes. Os animais não sabem que a morte está
acontecendo e continuam pastando placidamente enquanto outros caem ao lado
deles. O conhecimento da morte é reflexivo e conceitual, e os animais são poupados
dela. Eles vivem e desaparecem com a mesma imprudência: alguns minutos de medo,
alguns segundos de angústia e acabou. Mas viver uma vida inteira com o destino
da morte assombrando os sonhos e até mesmo os dias mais ensolarados – isso é
outra coisa. [...] A culpa resulta da vida não utilizada, do não vivido em nós.
[...] O homem está literalmente dividido em dois: ele tem consciência de sua
própria esplêndida singularidade, na medida em que se destaca da natureza com
uma majestade imponente e, ainda assim, desce alguns metros ao solo para cega e
silenciosamente apodrecer e desaparecer para sempre. [...] As pessoas
criam a realidade de que precisam para se descobrirem [...] Viver
plenamente é viver com consciência do estrondo de terror que está por trás de
tudo [...]. Trechos extraídos da obra The Denial of Death
(Free Press, 1997), do antropólogo e escritor estadunidense
Ernest Becker (1924-1974).
MINHA JORNADA COM A DOENÇA
– [...] Pare
de tentar fazer as coisas do jeito que você deseja ou do jeito que você acha
que deveriam ser. Em vez disso, veja as coisas como elas
realmente são. Tão feio e tão bonito. É aí que reside a
sua liberdade. Aí está sua resposta. E deixe estar. [...] Você tem uma doença
autoimune e não é nada agradável, mas pode reconstruir sua vida de uma nova
maneira [...] a dieta rotativa visa minimizar a exposição a qualquer alimento em
corpos sensíveis propensos a desenvolver reações alérgicas. Existe apenas uma
regra: nunca coma nenhum alimento mais de uma vez a cada quatro dias. Por exemplo, se você
comer ovos no café da manhã na segunda-feira, não comerá ovos novamente até
sexta-feira. Se você tomar leite de amêndoa na
terça-feira, só terá de novo na sexta-feira. Isto não só dá ao
seu corpo a oportunidade de processar cada alimento sem ficar sobrecarregado,
mas provavelmente irá forçá-lo a introduzir mais variedade na sua dieta, o que
geralmente leva a mais nutrientes. [...] Expliquei a Jennifer que a
doença celíaca é uma doença autoimune e costuma ser acompanhada por outras
doenças autoimunes. [...]. Trechos extraídos da obra Jennifer's Way: My Journey with
Celiac Disease--What Doctors Don't Tell You and How You Can Learn to Live Again (Da Capo
Lifelong, 2014), da atriz e escritora estadunidense Jennifer Esposito.
MEMENTO MORI – Sua esposa sempre
dizia que você chegaria atrasado ao seu funeral. Lembre-se disso? A piadinha dela
porque você sempre foi tão desleixado atrasado, sempre esquecendo coisas, mesmo
antes do incidente. Neste momento você provavelmente está se perguntando se
chegou atrasado para o dela. Você estava lá, pode ter certeza disso. É isso que a foto
para aquele pregado na parede perto da porta. Não é costume levar
fotos em um funeral, mas alguém, seus médicos, eu acho, conhecia você não
lembraria. Eles explodiram tudo bem e grande e
enfiaram ali mesmo, ao lado da porta, então você não poderia deixar de ver
todos os hora em que você se levantou para descobrir onde ela estava. O cara da
foto, aquele com flores? É você. E o que você esta
fazendo? Você está lendo a lápide, tentando descobrir em quem você está no funeral,
assim como você está lendo agora, tentando descubra por que alguém colocou
aquela foto ao lado da sua porta. Mas por que se incomoda em ler algo que
você não vai lembrar? Ela se foi, se foi para sempre, e você deve estar
sofrendo agora, ouvindo as notícias. Acredite, eu sei como você se sente. Você provavelmente
está um desastre. Mas espere cinco minutos, talvez dez. Talvez você possa
até ir um pouco meia hora antes que você esqueça. Mas você vai esquecer, eu
garanto. Mais alguns minutos e você estará indo para a porta, procurando por ela de
novo, desabando quando você encontrar a foto. Quantas vezes você
tem que ouvir as notícias antes de alguma outra parte do seu corpo, além
daquele cérebro quebrado de o seu, começa a lembrar? Ressentimento sem fim,
raiva sem fim. Inútil sem direção. Talvez você não
consiga entender o que aconteceu. Não posso dizer que realmente entenda
também. Amnésia ao contrário. É o que diz a placa. CRS doença. Seu palpite é tão
bom quanto o meu. Talvez você não consiga entender o que aconteceu com você. Mas você se lembra o
que aconteceu com ELA, não é? Os médicos não querem falar sobre isto. Eles não responderão
às minhas perguntas. Eles não acham que é certo para um homem
em sua condição para ouvir sobre essas coisas. Mas você se lembra o
suficiente, não é? Você se lembra do rosto dele. É por isso
que estou escrevendo para você. Fútil, talvez. Eu não sei quantos
vezes você terá que ler isso antes de me ouvir. eu nem sei há quanto
tempo você já está trancado neste quarto. Nem você. Mas a vantagem de
esquecer é que você esquecerá de escrever você mesmo como uma causa perdida.
Mais cedo ou mais tarde você vai querer fazer algo a respeito. E quando você fizer
isso, você apenas terá que confiar em mim, porque sou o único que pode ajudar
você. Conto extraído da obra Memento Mori. (Faber & Faber, 2002), do
escritor, roteirista, diretor e produtor cinematográfico britânico Jonathan
Nolan, adaptado para o filme homônimo do cineasta Christopher Nolan. Veja mais aqui, aqui e aqui.
DOIS POEMAS – METAMORFOSE
- Hoje as palavras nada dizem sobre naufrágios. \ Apenas pétalas \ Pétalas
invisíveis \ Pétalas infinitas \ E na ponta dos dedos \ O fantasma de uma
Cidade doce e habitável. \ Suas vestes roxas e lendárias. \ Seu corpo, fruto
teimoso e distribuição justa. \ Somos testemunhas de uma metamorfose precisa. VIAJANTES
- Trouxeram pores do sol e estradas. \ Sua sede de horizonte os chamava.\ – A
quem você pertence? \ Quem é o seu povo? \ Foi assim que nossa avó estendeu \ O
copo d’água ao viajante. Poemas da jornalista e poeta santomense Conceição Lima.