UMA CANÇÃO DE AMOR PARA AGLAJA
– A bela encantadora não teve muito tempo para correr pelas ruas de Bucareste, a infância nômade levou-a por diversos países
europeus, americanos e africanos. Foi no picadeiro que ela, desde os três anos
de idade, fez seu espetáculo, guardando lembranças de uma família andarilha
de artistas circenses, que fugiam da pobreza, da austeridade e de um ditador
analfabeto. O padrasto era palhaço e a mãe acrobata - mulher dos cabelos de aço,
fizeram dela para malabarismos e dança. Para não morrer de fome foi internada
com sua irmã na Suíça. Abandonada num
orfanato, por muito tempo esperou a volta da mãe. Ali abandonada ansiava a mamaliga,
que das mãos materna ausente seria seu próprio veneno. Ela a atriz que debutou
analfabeta, uma autodidata do alemão para dizer: o lar não está em lugar nenhum, a traição está em toda parte. Ela a dramaturga dedicada à literatura,
com sua participação grupo
experimental Die Wortepumpe e integrar-se à trupe teatral Die Engelmaschine. Ela a
professora das páginas autobiográficas do Warum das Kind in der Polenta
kocht... Era seu ato de revolta, como a menina reinventava sua vida e se
defendia da degradação e da lenda do menino que é cozido na polenta. Ela e as
suas mininarrativas: todo mundo
tem água morna no banheiro. e uma geladeira no coração... E a menina desamparada cresceu conversando
consigo: Por amor à pobre humanidade
sofredora, Deus comerá polenta. Ele próprio é estrangeiro, viajando de país em
país. Ele está triste porque tem que recomeçar uma longa viagem... E escapava da velha bruxa que a queria engordar
para depois devorá-la, tornando-se uma migrante com suas experiências adversas,
longe de casa, sem identidade e tentando se adaptar aos novos domicílios. Relia
as páginas do Das Regal der letzten Atemzüge... A melancolia solitária e confinada à própria condição, a morbidez dos
laços esgarçados no seu olhar indecifrável tão cheios de empatia e solidariedade.
E a energia intensa de seus manuscritos e rascunhos faziam-na uma égua de
trabalho: feridas abertas, declarações sombrias e os seus desastres. Nunca
foram bens emprestados, mas exclusivamente seus e com a sua intensa vitalidade.
Prosseguia radiante entre almas de chantilly com um franzir de lábios, ao mesmo
tempo desinibida e tímida, intrépida e apreensiva, assombrada pelas lembranças
da infância. Rebelou-se e devotou a viver duzentos ou trezentos anos graciosamente,
temendo perder a ousadia e a infantil natureza anárquica. Sozinha ouvia as
batidas cardíacas: Meu pai morreu de ausência. Minha mãe vive desamparada.
Minha irmã é apenas filha do meu pai. Eu cresci pouco a pouco. E eu não quero
filhos... O medo de cair na sarjeta nunca a abandonou. Até o seu ponto de
ruptura na ferida interior: perdeu o ar e se afogou quieta como uma nuvem no Lago de Zurique. Tributo à poeta
romena Aglaja Veteranyi (1962-2002). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui,
aqui, aqui, aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS - Uma
história é uma mudança de estado... A vida passa sem indicar porquê ou com que
propósito, enquanto uma história transmite uma mensagem. É uma realidade
polida. Para quem quer escrever, o começo de tudo consiste em desenvolver um
critério... Nunca acabamos por nos sentir firmes nas nossas posições. Portanto,
os critérios são importantes: é preciso saber do que se gosta... Existe uma
relação orgânica entre leitura e escrita... Um leitor pode nunca pensar em
escrever, mas o escritor tem um compromisso permanente com a leitura.
Pensamento da escritora e jornalista colombiana Melba Escobar, autora
dos livros Sonho de
Bogotá. A Cidade das Crianças (Códice, 2007), Duermevela (Planeta, 2010) e Johnny e o Mar
(Skylight, 2014).
ALGUÉM FALOU: Não cheguei onde
estou na vida sendo fraca e permitindo que outros, que são fracos, tentassem me
'quebrar'. Estes homens são, na verdade, covardes
impotentes que se escondem atrás de um distintivo honroso e não vou parar até
que a justiça seja feita. Se você se concentrar demais nos tolos, acabará se
tornando um. Pensamento da atriz, modelo e escritora estadunidense Stephanie
Adams (1970-2018).
FANTASMA DA MINHA VIDA - [...]
O lento
cancelamento do futuro foi acompanhado por uma deflação de expectativas. Poucos podem
acreditar que no próximo ano um disco tão bom como, digamos, Funhouse dos
Stooges ou There’s A Riot Goin’ On de Sly Stone será lançado. Ainda menos
esperamos o tipo de ruptura provocada pelos Beatles ou pela discoteca. A sensação de
atraso, de viver depois da corrida do ouro, é tão onipresente quanto rejeitada. Compare o terreno
baldio do momento atual com a fecundidade dos períodos anteriores e você será
rapidamente acusado de “nostalgia”. Mas a confiança dos artistas actuais em
estilos que foram estabelecidos há muito tempo sugere que o momento actual está
dominado por uma nostalgia formal, da qual falaremos mais brevemente. Não é que
nada tenha acontecido no período em que se instalou o lento cancelamento do
futuro. Pelo contrário, esses trinta anos foram um período de mudanças massivas
e traumáticas. No Reino Unido, a eleição de Margaret
Thatcher pôs fim aos difíceis compromissos do chamado consenso social do
pós-guerra. O programa neoliberal de Thatcher na
política foi reforçado por uma reestruturação transnacional da economia
capitalista. A mudança para o chamado pós-fordismo –
com a globalização, a informatização omnipresente e a precarização do trabalho
– resultou numa transformação completa na forma como o trabalho e o lazer eram
organizados. Entretanto, nos últimos dez a quinze anos,
a Internet e a tecnologia das telecomunicações móveis alteraram a textura da
experiência quotidiana de forma irreconhecível. No entanto, talvez
por causa de tudo isto, há uma sensação crescente de que a cultura perdeu a
capacidade de compreender e articular o presente. Ou pode ser que, num
sentido muito importante, não haja mais presente para compreender e articular. [...] A ontologia
depressiva é perigosamente sedutora porque, como gêmeo zumbi de uma certa
sabedoria filosófica, é meia verdade. À medida que o depressivo se retira das
confusões vazias do mundo da vida, ele inadvertidamente se vê em concordância
com a condição humana tão meticulosamente diagramada por um filósofo como
Spinoza: ele se vê como um consumidor em série de simulações vazias, um viciado
viciado em todo tipo de coisas mortificantes. alto, um fantoche de carne das
paixões. O depressivo não pode nem mesmo reivindicar o conforto que um paranóico
pode desfrutar, pois não consegue acreditar que os cordões estejam sendo
puxados por alguém. Sem fluxo, sem conectividade no sistema nervoso do
depressivo. [...] O depressivo sente-se isolado do mundo da vida, de modo que a sua própria
vida interior congelada – ou morte interior – domina tudo; ao mesmo tempo, ele
se sente evacuado, totalmente desnudo, uma concha: não há nada exceto o
interior, mas o interior está vazio. Para o depressivo, os hábitos do antigo
mundo da vida parecem agora ser, precisamente, um modo de encenação, uma série
de gestos de pantomima (“um circo completo com todos os tolos”), que ambos já
não são capazes de executar e que não quero mais atuar – não adianta, tudo é
uma farsa [...] O capital exige que pareçamos sempre ocupados, mesmo que não haja
trabalho para fazer. Se quisermos acreditar no voluntarismo
mágico do neoliberalismo, há sempre oportunidades a serem perseguidas ou
criadas; qualquer tempo não gasto em agitação e agitação é tempo perdido. Toda a cidade é
forçada a uma gigantesca simulação de actividade, a um fanatismo de
produtivismo em que nada é realmente produzido, a uma economia feita de ar
quente e de delírio brando. [...] O que é suprimido na cultura
pós-moderna não é o lado das Trevas, mas sim o lado da Luz. Estamos muito mais
confortáveis com demônios do que com anjos. Enquanto o demoníaco parece legal e sexy,
o angelical é considerado embaraçoso e sentimental [...] O capital
nunca poderá admitir abertamente que é um sistema baseado na rapacidade
desumana; o Exterminador do Futuro nunca poderá remover sua máscara humana. [...]. Trechos
extraídos da obra Ghosts of My Life: Writings on Depression, Hauntology and Lost Futures (Zero Books,
2014), do filósofo, escritor e professor inglês, Mark Fisher (1968-2017).
Veja mais aqui.
O PESADELO DE DARWIM – O
premiado documentário francês Darwin's Nightmare (2004), escritor
e dirigido pelo cineasta austríaco Hubert Sauper, aborda os efeitos
sociais e ambientais da intervenção da indústria da pesca no Lago Vitória, na
Tanzânia, o maior lago tropical do mundo, considerado como o berço da
Humanidade, vivendo o pior pesadelo da globalização. Ocorre que na década de 1960,
é introduzida a perca-do-nilo, um peixe predador voraz, no lago como
experiência científica. Depois, praticamente todas as populações de peixes
indígenas são dizimadas. Desta catástrofe ecológica nasce uma indústria
frutuosa, pois a carne branca do enorme peixe é exportada com sucesso em todo o
hemisfério norte. Pescadores, políticos, pilotos russos, prostitutas,
industriais e comissários europeus são os atores de um drama que ultrapassa as
fronteiras do país africano. Com o intenso fluxo comercial entre de aviões,
especulações surgem outro tipo de comércio: o comércio de armas.
ESTUPRO DE NANQUIN - [...]
Quase todas as
pessoas têm este potencial para o mal, que só seria desencadeado sob certas
circunstâncias sociais perigosas. [...] Olhando para trás, para
milénios de história, parece claro que nenhuma raça ou cultura detém o
monopólio da crueldade dos tempos de guerra. O verniz da
civilização parece ser extremamente tênue – um verniz que pode ser facilmente
removido, especialmente pelas tensões da guerra. [...] A violação
de Nanquim não penetrou na consciência mundial da mesma forma que o Holocausto
ou Hiroshima porque as próprias vítimas permaneceram em silêncio. [...] Aparentemente,
alguma peculiaridade da natureza humana permite que até mesmo os mais
indescritíveis atos de maldade se tornem banais em poucos minutos, desde que
ocorram longe o suficiente para não representarem ameaça pessoal. [...] O
espetáculo foi tão repugnante que até os nazistas na cidade ficaram
horrorizados, proclamando que o massacre era obra de “máquinas bestiais”. [...]
a história notou que a mera concentração de poder no governo é letal – que
apenas uma sensação de poder absoluto e incontrolado pode tornar possíveis
atrocidades como o Estupro de Nanquim. [...] Alguns até tentaram usar o
ópio para cometer suicídio, engolindo grandes doses como veneno. Outros recorreram ao
crime para apoiar o seu vício, causando uma onda de banditismo que varreu
Nanquim. Depois de criarem condições propícias ao banditismo em Nanquim, os
japoneses usaram a epidemia de crimes para justificar a sua ocupação, pregando
a necessidade de lei e ordem imperiais. [...]. Trechos extraídos da obra The Rape of Nanking: The Forgotten
Holocaust of World War II (Basic Books, 2012), da escritora e jornalista
chinesa Iris Chang (1868-2004), narrando o massacre de Nanquim.