NO ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESTE ANO EU NÃO MORRO – Os meus
olhos de menino impava no meio do pastoril de Rabeca, os Caboclinhos de Veludo,
o Bumba-meu-boi, reisado e guerreiro. Brincava nas lapinhas as solfas e
trava-línguas que falavam de um Deus-menino e de outras coisas de então. Coisas
de botijas, de assombrações, coisas que me faziam arranchar de noite nas
abusões canavieiras no meio de um pé quebrado. Tanto medo vinham das matas,
tantos bichos, malsinações, de quase ter um troço só de saber da perna cabeluda
torar as orelhas de um dentuço, ficar com a braguilha de fora, pendurado numa
forquilha. Até umas brincadeiras que aprendi a brincar: cara a paca pagará quem
a paca cara compra. Falavam do rojão do Anselmo e da gangorra de Ventania: Salve,
salve minha gente, do litoral e da mata, do agreste e do sertão! Viva o povo do
Nordeste, viva o povo desse meu Brasilzão! Como não sou viajado, nem mesmo
versado em redondilhas, tenho feito um pé de verso e outro de cantiga, todo sem
jeito no dedilhado, imitando coisa antiga que muito ouvia falar: hoje tem
enredo de Nicandro e décimas de Aderaldo, vai ter pipoco de verso e rima pra
todo lado. O mourão de Fabião das Queimadas, a função de quantos Bentevis, quem
quiser que bata palma, quem quiser que peça bis. Os romances de Leandro, o dez
de queixo caído de Chagas, coisas que eram daqui e também de outras plagas. Tem
sextilha de Preto Limão, sete pés de Serrador, quem não passou pela vida e
nunca sofreu de amor. Tem ligeira de Ataíde, língua d’Angola de Hugolino, coisa
para gente grande, até o mais pequenino. Tinha dez de adivinhação dos irmãos
Batistas, tinha até louvação de Jessier, coisa de fazer a gente rir até não
mais querer. Saltava martelo de Braulio e Vilanova, ou dez de adivinhação, ou
um rojão pernambucano, outras muitas coisas então. Tinha quintilha de Romano,
mourão quebradinho de Pirauá, não fique mais abestalhado como quem não sabe o
que é que há. Deixe logo a mão aberta, não seja pirangueiro, só quem canta de
graça é galo no terreiro. Peça pros céus a justiça e pelo justo se advoga,
saiba que quando Deus não quer, não tem valia, nem voga. Chame pra perto a
mulher: venha cá, minha parelha. Hoje é dia de festa, deixe de me olhar de
esguelha. Cuidado que você cai e lá vai um, dois e três. Nunca olhe para trás e
lá vão quatro, cinco e seis. Vai ter quadrão de Maria Tebana, décima de Zefinha
do Chabocão, neste Brasil de caboco, de Mãe Preta e Pai João. Nos oito pés de
quadrão, vai rolar muito repente, vivi pior no passado do que vivo no presente.
Se for quadrão mineiro ou mesmo à beira-mar, para que serve o capote? Pra gente
se agasalhar. Pra que serve o serrote? Para a madeira serrar! E se for quadrão
trocado, meia quadra ou quadra meia, quadrão ou vai-e-vem, não seja cabra de
peia, ninguém sabe de onde o amor vem. Ainda tem Xica Barrosa e Inácio da
Catingueira, não se assuste nem solte os pés de banda pra não sair na carreira.
Quem sabe a largura, sabe o quanto a língua fura, pra quem sabe nadar não se
espanta com fundura. Quem ficar abestalhado ou de boca aberta de besteira, sem
saber do sucedido que vai solto na buraqueira, vão começar com colcheia, depois
das oitavas às parcelas de dez pés, vão puxar fogo no martelo no maior dos
revestrés. Que seja forte o leão, que seja maior o penedo, nunca achei um
rimador que me metesse algum medo. Poeta bom saiu da loca, outro igual nem ali
nem acolá. Solte o mote na hora pra poder então glosar. O violeiro que é
cantador ajeita a estrofe no pé ou linha, quando embolador de coco, faz melhor
que qualquer rinha! Quem canta bonito faz alegria do povo, quem sofre fica
apertado que nem um pinto no ovo. Se hoje é dia do Poeta de Literatura de
Cordel, é dia de muita função! Se hoje é dia de cantoria, vamos ajustar a
afinação! Segura os quatro pontos e oitavado, segura a cebolinha e cebolão! Orlando
Tejo falou Zé Limeira, o poeta do absurdo! Aqui tem lugar pra cego, pra mudo e
até pra surdo! Encontrei hoje chorando, quem riu de mim no passado. Todo velho
tabaquista tem nariz enferrujado. Cante lá que eu canto cá, já dizia Patativa. Se
botou mote que glose, não tem outra alternativa. Agora não é depois, não se
areie, nem faça troça, quem sabe fazer bonito nunca suja qualquer roça. Se falou
ou ficou calado, não se sabe quem é quem, ninguém sabe pronde é que a gente vai
quando a morte vem. É que todo ano
renasço e morro, só que este ano nasço, fico pra semente e desmorro. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do violinista, tecladista e
compositor Marcus Vianna: Suíte Pantanal, Música para os quatro elementos, Sinfonia
dos sonhos & Sete vidas, amores e guerras & muito mais nos mais de 2 milhões &
500 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
mais aqui, aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] A
rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga, elas formam o
nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente
orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou menos dependentes entre
si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde através da aprendizagem social,
da educação, socialização e necessidades reciprocas socialmente geradas, elas existem,
poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como pluralidades, apenas como configurações.
[...]. Trecho extraído da obra O processo civilizador: Uma história dos
costumes (Zahar, 1994), do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990).
Veja mais aqui.
O ESTADO & O CIDADÃO – [...] revela o caráter ambíguo do processo de onde
saiu o Estado moderno e desse próprio Estado: o processo de concentração (e de unificação)
é sempre, simultaneamente, um processo de universalização e um processo de
monopolização, sendo a integração a condição de uma forma particular de
dominação, esta que se realiza na monopolização do monopólio estatal (com a
nobreza de Estado). [...] A construção da
nação como território juridicamente regulado e a construção do cidadão ligado
ao Estado (e aos outros cidadãos) por um conjunto de direitos e deveres vão par
a par. Mas o campo burocrático é sempre mais o lugar e o objeto das lutas, e o
trabalho necessário para garantir a participação do cidadão na vida pública — e
em particular na política oficial, como dissenso regulado — deve se prolongar
numa política social, esta que define o Welfare State, visando garantir a todos
as condições mínimas econômicas e culturais (com a iniciação aos códigos
nacionais) do exercício do direito do cidadão, assistindo, econômica e
socialmente, e disciplinando. A edificação do Welfare State supõe uma
verdadeira revolução simbólica, que tem como centro a extensão da
responsabilidade pública no lugar da responsabilidade privada. Trecho extraído da obra Sobre o Estado (Schwarz,
2012), do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). Veja mais aqui.
O MORRO DOS VENTOS UIVANTES – [...] Vendo-os parar um instante diante da porta,
para olharem uma última vez para a lua — ou, melhor, um para o outro, banhados pelo
luar —, senti-me novamente impelido a ir embora; e, enfiando uma lembrança na
mão da Sra. Dean, não obstante os seus protestos, saí pela cozinha no exato momento
em que eles abriam a porta de entrada — e teria confirmado a opinião de Joseph
quanto às indiscrições da velha colega, se ele não tivesse considerado como
prova da minha respeitabilidade o soberano de ouro que lhe atirei aos pés. Meu
caminho de volta foi alongado por um desvio na direção da igreja. Uma vez
dentro dela, percebi quanto envelhecera em apenas sete meses: muitas janelas
mostravam buracos negros, destituídos de vidraças; e, aqui e ali, telhas saíam
fora da linha do telhado, candidatando-se a serem arrancadas pelas próximas
tempestades de outono. Procurei, e logo descobri, as três lápides na encosta
próxima à charneca: a do meio, cinzenta e meio enterrada na urze; a de Edgar
Linton, com a grama e o musgo trepando-lhe pela base — e a de Heathcliff, ainda
nua. Demorei-me a contemplá-las, sob aquele céu clemente, a ver as borboletas
esvoaçando por entre a urze e as campânulas, a ouvir a brisa suave soprando
através da relva e a pensar como poderia alguém imaginar, sequer, sonos
agitados sob aquela terra. [...] Trecho
extraído da obra O morro
dos ventos uivantes (Abril, 1971), da escritora inglesa Emily Brontë (1818 – 1848). Veja mais aqui.
TRES POEMAS - MULHER DIANTE DE UM BANCO - O banco é uma questão de colunas, / tal como.
a convenção, / e não a invenção; mas os frontões / lá estão sob o sol / para
acalmar as dúvidas / de investimentos "sólidos / como rocha" sobre os
quais o mundo / se firma, o mundo da finança,/ o único mundo: Logo ali, / conversando com outra mulher enquanto / embala
um carrinho de criança / de lá pra cá está uma mulher com um / vestido rosa de
algodão, sem meias / nem chapéu; as pernas nuas / são duas colunas sustentando /
seu rosto, como o de Lênin (o cabelo / frouxamente preso muito louro) ou / de
Darwin, e aí / está: / mulher diante de um banco. AS NOVAS NUVENS - A manhã quando eu primeiro te amei / tinha uma
qualidade de delicada divisão a respeito e / uma leveza e uma luz repleta de/ pequenas
nuvens todas crescendo sobre o / chão que as criou, uma luz de / palavras num
céu de papel, cada uma um significado / e todas juntas outro significado. Foi
uma fala / quieta, tranquila mas reminiscente / e de preces — com uma
perturbação / da espera. Sim! uma página grudada / por tudo aquilo não era, um
significado mais / que significado do que o do texto cujas / pontas separadas
eram as pontas do céu. ELA QUE VIRA A
CABEÇA - Ela vira a cabeça / para respirar o ar da manhã / o abril
brilhante em sua / face pálida / e seu cabelo amarelo / Ei, olhe! eles se viram
/ de sua brincadeira / Olhe! a recordação da / noite / atingida pelo dia / Como
alguém que veio / do baile / seminua sob as luzes / ela arranca / suas roupas
as joga / e luta para parecer / indiferente diante da / poderosa superioridade
/ desse / sonho extravagante. Poema do poeta estadunidense William Carlos Williams (1883-1963).
Veja mais aqui.
ORGANISMO
O filme Organismo,
de Jeorge Pereira, conta história de um jovem tetraplégico que se
vê sozinho em casa, após a morte fulminante da mãe, com a difícil missão de
sobreviver dias sem se alimentar até que alguém o socorra. Imobilizado devido a
sua condição física, busca em seu passado e em um possível futuro, num fluxo de
consciência atemporal de memórias da infância, relações amorosas, desejos
íntimos e conflitos pessoais, novos alicerces para uma vida que inicia na
aceitação de um novo corpo. Destaque para a atriz Bianca Joy Porte.
AGENDA
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Fui ali, já voltei, ói eu aqui traveiz, a literatura
de Graciliano Ramos, a educação de Edgar Morin & José Carlos Libâneo, o pensamento de Howard Becker
& José Roberto dos Santos Bedaque, a arte de Russell Kaplan, Sara Riches & Massimiliano Ligabue & muito
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