A TOCHA HUMANA – Imagem: The
vertebra oracle in Napoli 2015, da artista visual alemã Rebecca Horn. - Estupefato
fiquei sob o ardor inclemente do sol de meio dia em pleno mês de junho,
normalmente aguaceiro de inverno. Era véspera de São João e tudo já deixava
claro que algo inusitado estava por acontecer. Ademais, também era tempo das
comemorações de emancipação política do município de Alagoinhanduba. Pleno
feriado, dois dias encarreados só para os festejos onde tudo era envolvido com
as casas ornadas com flores de variegados matizes nas janelas e o povo em
polvorosa doido pela festança. Aquela correria pro ouriço. Logo cedo, acordava
o povo com o desfile da banda de fanfarra, anunciando os outros eventos e
desfiles de alunos das escolas agrupadas aos pelotões, malabarismos,
autoridades num palanque engalanado, gente como a peste, prestigiando a
efeméride. Os tiros de bacamarteiros na praça central, dava por iniciado ao
tradicional ajuntamento de gente nas calçadas. As ruas ornamentadas de
bandeirolas dum canto a outro de todas as ruas da localidade, expressavam o ar
de festa que estufava o peito da patuleia alvoroçada, doida para ver a marcha garbosa
dos meninos dos ginásios, os rapazes dos colégios e os marmanjos da polícia. O
palanque das autoridades tinha mais caboeta que se engalfinhava por aparecer
mais que o outro, acotovelando-se para ficar ao lado do maioral. Lá estavam o
prefeito banguela, o usineiro desconfiado, o deputado zarolho, o bispo sabido e
o estafe da babaovice com suas melindrosas madames mais pintadas e enfeitadas
que as alegorias caricaturais das escolas. Um verdadeiro carnaval de exposição.
Uma fogueira gigantesca, daquelas de alcançar o céu, queimava lenha no centro
da praça principal. Outras tantas nas calçadas e uma outra numa rua ao lado,
onde se daria a competição mais apreciada e afamada, a de pula fogueira. Era a
hora da cerimônia mais respeitada do lugar. O momento que cada um se revestia
do orgulho de ser alagoinhandubense até na alma, debaixo d´água ou torrando num
fogaréu. E num instante tudo turvou, virara noite, escurecera. Os bombos
silenciaram, o desfile paralisou e até a respiração foi suspensa. Só os galos cucuricavam
meio encangados no poleiro, numa tristeza tumular. Não havia, por ali, quem
soubesse ou tivesse notícias de qualquer eclipse lunar se sucedendo por
enquanto, muito menos aquilo era hora noturna. Não havia uma só estrela no céu,
tudo muito opaco. Aos poucos, uma inhaca insuportável alcançara os septos
nasais, num bulício de fato nauseabundo. Que fedor filho da puta! Não havia
fôlego atlético que conseguisse poupar daquele mau cheiro. Deveras, um desastre
sem precedentes aquele. Ninguém descobrira, até então, por enquanto, a causa de
tão fedorento mal-estar, visto que nenhum valetudinário seria capaz de tal
fedentina. Será? Era bosta pura, daquelas bem catingosas de dias armazenados no
bucho de prisão de ventre. O negócio enfeiou e a mundiça danou-se a correr para
longe daquela tragédia, pisoteando o que se estirasse pela frente e comendo a
quilometragem com sede de distância. A cidade ficara, duma hora para outra,
deserta. Não havia um pé de gente para remédio. Tudo escafedido para as
lonjuras limítrofes. Meia hora depois de tanta carreira, quase que todo mundo
morre sufocado duma só vez, o oxigênio tornava a respiração normalizada e,
devido fétida emanação, a comunidade se evadira do lugar, buscando ar puro
longe dali mesmo. O que se sucedera, afinal? Depois de quinhentas mil
continências, milhões de providências tomadas sob o rigor das autoridades,
vasculhara-se em todos os logradouros e constatava-se, para infelicidade de
todos, que nenhuma imundície se instalara pela redondeza para causar tamanho transtorno.
Teria sido, então, um peido do céu? Ou uma explosão de alguma arma química
bostal? Ou o quê? Com tal indagação, depois de muito se investigar pelos quatro
cantos do mundo, desconfiaram, claro, todos já desconfiavam do Abinagildo, só
faltava essa! Este sim, Abinagildo Mendes Sobrinho, um sujeitinho tísico,
manemolente e tíbio, pífio e tacanho, todo macambúzio depois de uns ventinhos
nababescos, que possuía o mau costume de, de vez em quando, emitir aquela
emanação volátil do corpo, daqueles verdadeiros desmancha prazeres. Eita bicho
da cloaca podre, meu. Ora, eu jamais que acreditara, entretanto, depoimentos
muitos me fizeram crer naquela possibilidade de ter exatamente partido dele
aquela podridão em plena festa. Era tiro e queda. Pois é, muito me estranhava
Abinagildo morar isolado, fora dos domínios da cidade, numa casa de alvenaria,
sem vizinhos, no ermo de um morro. Dava até pena vê-lo assim em abandono
completo, tadinho. Tadinho, nada, vamos nessa. E muitas me contaram da razão de
sua soturnidade, às vezes até lipemaníaco pela maldição que carregava.
Depuseram-me aos mínimos detalhes suas presepadas corroborando seu exílio
compulsório, seu desterro determinado. Tudo isso alimentava a vingança popular
que lavou a alma naquele dia de festa. Pois bem, fuxicada solta, soube que uma
delas entre as tantas outras, deixou o prefeito Desidério Silvino roxo de
raiva, puto da vida! Relataram-me que foi no dia em que o Biriteiros Esporte
Clube, escrete da maior representação futebolística da província, calor da
torcida local, recepcionara em uma partida amistosa, o Clube Náutico
Capibaribe, do Recife, atual hexa campeão pernambucano e vice campeão
brasileiro, não se sagrando campeão por ter enfrentado o Santos Futebol Clube,
com Pelé e companhia. O apito do juiz dera início a partida e o chute batendo o
centro num foguetório colorido que tomou conta do estádio. No meio disso, os
fogos de artifício foram acompanhados de uma podridão, um horrível eflúvio no
ar, de suspender o jogo. O Náutico excomungara aquela cidade, arribando
imediatamente daquelas imediações sem ao menos sequer fazer um ataque na defesa
do Biriteiros. Só deu tempo bater o centro, pronto, tudo por água abaixo. O
prefeito, incontinente, mandou prender Abinagildo que, culpado, se escondera
longe para livrar-se do flagrante delito e da enfezada raiva da torcida local
que prometera linchá-lo numa repulsa pública geral. Não era por menos, era
mesmo um vício de nascença, já consultado médico especialista sobre o assunto,
obtendo-se por diagnóstico tratar-se de rebento nascido de vento ruim,
procedente de maus bofes. Nossa, a ciência não explicara direito, mas o de
branco, asseverava que estava diante de um fato inusitado, pelo fato de que a
tripa gaiteira do dito cujo deveria de ter algum defeito na fabricação da bosta
ou o desgraçado já nascera podre mesmo, necessitando, invariavelmente, de uma
intervenção através de clister para desobstruir a bosta retida. Só que o
fabricante de bosta conseguia ser o maior peidão que já tivera notícia, fato
até que se tentou colocar no Guiness, mas não foi possível por ser tratado como
verdadeiro despropósito. Muito embora, hoje, depois do ocorrido, uma banda de
gente da cidade se orgulhava de ter o maior peidão de todos os tempos. E até já
se viu muito bate boca entre os que reverenciam a figura santificada do
Abinagildo com os que detestavam qualquer lembrança de sua maledicente
podridão. - Vôte! Ele nem cuidava da alma porque o corpo já era podre mesmo! Os
enfurecidos do contra, numa reunião acalorada na Câmara de Vereadores, discutiam
se homenageavam ou não tal figura polêmica, narrando na tribuna que nem davam
por menos e lá vinha aquela ventosidade emitida pelo ânus de modos que, uma
vez, até o locutor do telejornal tapara o nariz, levando a rede de tevê a suspender
a transmissão alegando em letras garrafais: SUSPENDEMOS NOSSA PROGRAMAÇÃO POR
MOTIVOS DE FLATULÊNCIAS INSOLENTES NO AR! E o que é pior era a descaradice dele
Abinagildo: - Perde-se o amigo, nunca a piada nem o peido! Carta feita, contam
enraivecidos, que numa praia vizinha, uma dor de barriga nele, levou o
indecente a fazer as necessidades na água marinha, causando verdadeiro
maremoto. O cara afundou-se na água para excretar, dando-se a perceber a bosta
undívaga se aproximando das pessoas com uma quentura de ferver a água. Pois é,
cagando, soltou um daqueles que as principais manchetes estamparam ferindo o
rigor jornalístico: PEIDO CAUSA CATÁSTROFE NO MAR. Toda aquela imensidão
adquirira uma cor escura com ondas de mais de vinte e cinco metros de altura, trazendo
pra mais de dez mil surfistas no maior auê radical da paróquia. Eita, bôba
torreiro! Este estava com a bexiga lixa. Doutra vez, fora demitido da empresa
onde trabalhava porque suspendia as atividades e baixava a produtividade, vez
que no calor do expediente vinha aquele odor de merda choca que invadia todas
as dependências da corporação, expulsando clientes e funcionários esbaforidos.
E o pior, onde ele ía, o peido vinha atrás. - Peido desse, lata de lixo é
fragrância francesa! -, reclamavam todos unanimemente. Há quem ainda hoje
reclame de manhã, de tarde e de noite, diuturnamente, vítima do seu cinismo,
não se podendo manter a compostura ante a falta de decoro do descarado. Peta
que fosse, vinha aquele verdadeiro mau hálito anal de torrar os pentelhos do
cu, flagrando várias vezes aquele posudo confortavelmente agachado em bacias
cheias de água esfriando as pregas, onde assoprava aquele ruído de coisa
queimada. No início, consideravam, eram os modestos; depois, mais agudos. Daí,
meu, surgiram, então, os de queimar sofás, colchões, cadeiras, não se dando
conta dos prejuízos que causara aos amigos em suas furtivas visitas. Perdera,
assim, ao longo dos tempos, os mais próximos, motivo que o levou a recorrer de
uma ajuda superior, rezando, contrito e no meio da oração, soltou unzinho
cavernoso, da imagem da santa protetora tapar o nariz, não aguentando a
feijoada de ontem. Fora expulso dali pelo padre, avalie, excomungado até a
centésima geração. Até uma outra, disseram vingativos, que ele mesmo já fora vítima
de sua própria indecência, quando, em sua casa, certa vez, deitou-se em sua
cama com o seu abafa-banana familiar, um daqueles cobertores de mais de cinco
centímetros de largura, daqueles próprios para o frio polar, quando soltou um
que ficou, o próprio, bêbo! Pode? Por causa disso, lá, na casa dele, não tinha inseto
algum, bicho nenhum ficava nas imediações. Quem tivesse a oportunidade de ver o
álbum de família dele, logo descobria porque ele era enjeitado por todos, vez
que, em todas as fotos, mãos apertavam o nariz para não sentir o fedor.
Verdade, era um peidorreiro desgraçado. Também pudera, minuciosamente contaram
da sua dieta peculiar: feijão, fruta pão, ovo, cebola, jaca, fígado de boi,
abacaxi, cachaça de cabeça, isso aos quilos todo santo dia. E era costume após
a ceia, almoço ou hora de gororoba qualquer, imaginem, o cara massagear a pança
e puuuuuuummmmm! Sorria satisfeito. Depois, chorava aos tombos, sentindo o
ardor no procto. E quem estava perto nem podia socorrer, porque não suportava o
gás assassino dele. Dando-se conta de sua peidorrada, ele mesmo encontrou um
meio de coibir a fetidez: quando ocorria, riscava um fósforo bem nos fundilhos
- repara só que presepada -, a ação era imediata, armado de fogo, investia mão
em direção da bunda, fósforo aceso e logo queimava o gás indesejável.
Resultado: seis calças, três cuecas, duas sungas, três bermudas, quatro
calções, tudo com rombo de queimadura na bunda - não é pra menos, né? Por fim,
depois de tantas emboanças e perseguições buscando a cura para o seu desígnio,
achou de, por bem de seu senso meio lá meio cá, em plena festividade que
ocorria justo às vésperas de São João, percebera, enfim, que chegara a hora da
sua salvação, e dera de participar com outros mequetrefes da redondeza, dum festival
inusitado de pular fogueira, onde soltaria um que o fogo abrasaria, acabando de
vez com aquele mau costume. Certo de que sairia campeão esperou para ser o
último participante. Pois é, enquanto o povo se espremia na rua central,
afagados pela estridulante gritaria do locutor oficial da festa política, ele
competia com outros buzuntões dali, numa pulada de fogueira, numa das
adjacências do local. Chegou sua vez, nervoso, concentrado, treinou a impulsão,
fez carreira e, determinado, é um, é dois, é três e zás! E aquele borborigmo
mais parecia um jato queimando tudo. Lá se foi gritando estrada a fora,
verdadeira labareda tomou conta dele. Sumiu cidade afora como uma tocha humana.
A festa de São João acabada e ele sumido pegando fogo. Daí, todos vingados e com
ar de bem feito, narram histórias da tocha humana, o cara que, ao que parece,
foi acometido de uma combustão involuntária de deixá-lo torrado pro resto da
vida. Dias depois, encontraram algo estranho na beirada de um chafariz, não se
dando para identificar, mas presumiu-se seja os restos mortais dele. Ainda hoje
está lá, aquele monturozinho de ossada queimada, local apropriado para
cuspidas, mijadas e depósito de nojeiras outras impensáveis. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais abaixo e aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá especial
com a música do cantor, compositor,
maestro e arranjador Francis Hime: Ao
Vivo, Atrás da porta & em dois shows ao vivo com Olívia Hime & muito mais nos mais de 2
milhões & 600
mil acessos ao
blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] Aquilo que se expressa positivamente na
plasticidade moderna — uma proporção equilibrada do peculiar e da generalidade
— manifesta-se mais ou menos também na vida do homem moderno e constitui a
causa original da reconstrução social de que somos testemunhas. [...]. Pensamento do artista visual, designer gráfico,
arquiteto e poeta neerlandês Theo van
Doesburg (1883-1931).
INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS – [...] A lógica
do sonho é uma arqueo-lógica, operando com processos primários que regem o
sistema inconsciente. Escrita de antes da linguagem da razão, seu melhor modelo
se encontra na escrita artística, ela também irredutível a qualquer outra, obediente
a leis estruturais próprias. Há um texto próprio ao sonho como há um próprio à
obra de arte, texto simbólico e sintomático de um conflito de forças, cujo
equilíbrio é regulado por um acupunturista invisível. [...] a arte ocupa uma situação intermediária
entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, reconciliando um com o
outro [...]. Trechos extraídos da obra A
infância da arte (Relume-Dumará, 1996), da filósofa francesa Sarah Kofman (1934-1994).
SCHERAZADE - Dandan
pediu permissão para ver sua filha Scherazade. Uma criada o conduziu ao quarto
rosa, decorado com tapete e cortinas cor-de-rosa, bem como divãs e almofadas em
matizes de vermelho. Ali, ele foi recebido por Scherazade e sua irmã Duniazade.
Dandan disse: - Estou cumulado de felicidade, graças a Deus, o Senhor do
universo. Scherazade fê-lo sentar-se a seu lado, ao passo que Duniazade se
retirou para seu quarto. - Fui salva de um destino sangrento pela misericórdia
de nosso Senhor - disse Scherazade. Mas o homem mal murmurava suas graças,
quando ela acrescentou, amargurada: - Que Deus tenha piedade das virgens
inocentes. - Como você é sábia, e como é corajosa! - Mas você sabe, pai - disse
ela num sussurro: - eu sou infeliz! - Cuidado, filha, pois nos palácios os
pensamentos assumem formas concretas e falam alto! - Eu me sacrifiquei - disse
ela, triste - para interromper a torrente de sangue. - Deus tem a Sua sabedoria
- murmurou ele. - E o diabo, os seus seguidores - disse ela, com raiva. - Ele
ama você, Scherazade - disse o pai, suplicante. - A arrogância e o amor não
podem se unir num mesmo coração. Ele ama a si mesmo acima de tudo. - O amor
também tem seus milagres. - Cada vez que ele se aproxima de mim sinto o cheiro
de sangue. - O sultão não é como o resto da humanidade. - Mas crime é crime.
Quantas virgens ele matou, e quantos crentes fiéis ele exterminou? No reino
ficaram somente os hipócritas. - Minha confiança em Deus nunca se abalou -
disse ele, com tristeza. - Quanto a mim, sei que meu estágio espiritual está na
paciência, como me ensinou o grande sheik. A isso, Dandan respondeu, com um
sorriso: - Que excelente mestre e que excelente discípula! Extraído da obra
Noites das mil e uma noites (Companhia
das Letras, 2008), do escritor egípcio & Prêmio Nobel de Literatura de
1988, Naguib Mahfuz (1911-2006). Veja mais aqui.
O RIO É UM GRANDE POETA - É o rio um grande poeta / que vai cantando
seus sonhos / de amor e de liberdade / com a guitarra do vento. / O rio, um
grande poeta / que diz um poema imenso / numa linguagem de Deus. / Não o
culpeis pelos mortos / que os bandidos lhe atiram / desesperados de medo, /
para escapar ao castigo / que chegará justiceiro. / O rio, um grande poeta /
que diz seu poema imenso. / É o rio grande poeta / que vai cantando...
cantando... / e a magia de seu estro / está gerando, amorosa, / o canto
do homem novo, / como ranger de protestos / de todos os esqueletos / das
vítimas que, covarde, / jogou em seu leito o ódio. / O rio, um grande poeta /
Que cantará o canto novo. Poema do poeta
paraguaio Julio Correa (1890-1953).
A ARTE DE REBECCA HORN
A arte da artista visual alemã Rebecca Horn.
AGENDA
XI
Semana de Letras com o tema Contemporaneus – entre os dias 17 e 21 de setembro,
na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) & muito mais na Agenda
aqui.
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