sexta-feira, agosto 31, 2018

NAGUIB MAHFUZ, SARAH KOFMAN, REBECCA HORN, FRANCIS HIME, DOESBURG & JULIO CORREA


A TOCHA HUMANA – Imagem: The vertebra oracle in Napoli 2015, da artista visual alemã Rebecca Horn. - Estupefato fiquei sob o ardor inclemente do sol de meio dia em pleno mês de junho, normalmente aguaceiro de inverno. Era véspera de São João e tudo já deixava claro que algo inusitado estava por acontecer. Ademais, também era tempo das comemorações de emancipação política do município de Alagoinhanduba. Pleno feriado, dois dias encarreados só para os festejos onde tudo era envolvido com as casas ornadas com flores de variegados matizes nas janelas e o povo em polvorosa doido pela festança. Aquela correria pro ouriço. Logo cedo, acordava o povo com o desfile da banda de fanfarra, anunciando os outros eventos e desfiles de alunos das escolas agrupadas aos pelotões, malabarismos, autoridades num palanque engalanado, gente como a peste, prestigiando a efeméride. Os tiros de bacamarteiros na praça central, dava por iniciado ao tradicional ajuntamento de gente nas calçadas. As ruas ornamentadas de bandeirolas dum canto a outro de todas as ruas da localidade, expressavam o ar de festa que estufava o peito da patuleia alvoroçada, doida para ver a marcha garbosa dos meninos dos ginásios, os rapazes dos colégios e os marmanjos da polícia. O palanque das autoridades tinha mais caboeta que se engalfinhava por aparecer mais que o outro, acotovelando-se para ficar ao lado do maioral. Lá estavam o prefeito banguela, o usineiro desconfiado, o deputado zarolho, o bispo sabido e o estafe da babaovice com suas melindrosas madames mais pintadas e enfeitadas que as alegorias caricaturais das escolas. Um verdadeiro carnaval de exposição. Uma fogueira gigantesca, daquelas de alcançar o céu, queimava lenha no centro da praça principal. Outras tantas nas calçadas e uma outra numa rua ao lado, onde se daria a competição mais apreciada e afamada, a de pula fogueira. Era a hora da cerimônia mais respeitada do lugar. O momento que cada um se revestia do orgulho de ser alagoinhandubense até na alma, debaixo d´água ou torrando num fogaréu. E num instante tudo turvou, virara noite, escurecera. Os bombos silenciaram, o desfile paralisou e até a respiração foi suspensa. Só os galos cucuricavam meio encangados no poleiro, numa tristeza tumular. Não havia, por ali, quem soubesse ou tivesse notícias de qualquer eclipse lunar se sucedendo por enquanto, muito menos aquilo era hora noturna. Não havia uma só estrela no céu, tudo muito opaco. Aos poucos, uma inhaca insuportável alcançara os septos nasais, num bulício de fato nauseabundo. Que fedor filho da puta! Não havia fôlego atlético que conseguisse poupar daquele mau cheiro. Deveras, um desastre sem precedentes aquele. Ninguém descobrira, até então, por enquanto, a causa de tão fedorento mal-estar, visto que nenhum valetudinário seria capaz de tal fedentina. Será? Era bosta pura, daquelas bem catingosas de dias armazenados no bucho de prisão de ventre. O negócio enfeiou e a mundiça danou-se a correr para longe daquela tragédia, pisoteando o que se estirasse pela frente e comendo a quilometragem com sede de distância. A cidade ficara, duma hora para outra, deserta. Não havia um pé de gente para remédio. Tudo escafedido para as lonjuras limítrofes. Meia hora depois de tanta carreira, quase que todo mundo morre sufocado duma só vez, o oxigênio tornava a respiração normalizada e, devido fétida emanação, a comunidade se evadira do lugar, buscando ar puro longe dali mesmo. O que se sucedera, afinal? Depois de quinhentas mil continências, milhões de providências tomadas sob o rigor das autoridades, vasculhara-se em todos os logradouros e constatava-se, para infelicidade de todos, que nenhuma imundície se instalara pela redondeza para causar tamanho transtorno. Teria sido, então, um peido do céu? Ou uma explosão de alguma arma química bostal? Ou o quê? Com tal indagação, depois de muito se investigar pelos quatro cantos do mundo, desconfiaram, claro, todos já desconfiavam do Abinagildo, só faltava essa! Este sim, Abinagildo Mendes Sobrinho, um sujeitinho tísico, manemolente e tíbio, pífio e tacanho, todo macambúzio depois de uns ventinhos nababescos, que possuía o mau costume de, de vez em quando, emitir aquela emanação volátil do corpo, daqueles verdadeiros desmancha prazeres. Eita bicho da cloaca podre, meu. Ora, eu jamais que acreditara, entretanto, depoimentos muitos me fizeram crer naquela possibilidade de ter exatamente partido dele aquela podridão em plena festa. Era tiro e queda. Pois é, muito me estranhava Abinagildo morar isolado, fora dos domínios da cidade, numa casa de alvenaria, sem vizinhos, no ermo de um morro. Dava até pena vê-lo assim em abandono completo, tadinho. Tadinho, nada, vamos nessa. E muitas me contaram da razão de sua soturnidade, às vezes até lipemaníaco pela maldição que carregava. Depuseram-me aos mínimos detalhes suas presepadas corroborando seu exílio compulsório, seu desterro determinado. Tudo isso alimentava a vingança popular que lavou a alma naquele dia de festa. Pois bem, fuxicada solta, soube que uma delas entre as tantas outras, deixou o prefeito Desidério Silvino roxo de raiva, puto da vida! Relataram-me que foi no dia em que o Biriteiros Esporte Clube, escrete da maior representação futebolística da província, calor da torcida local, recepcionara em uma partida amistosa, o Clube Náutico Capibaribe, do Recife, atual hexa campeão pernambucano e vice campeão brasileiro, não se sagrando campeão por ter enfrentado o Santos Futebol Clube, com Pelé e companhia. O apito do juiz dera início a partida e o chute batendo o centro num foguetório colorido que tomou conta do estádio. No meio disso, os fogos de artifício foram acompanhados de uma podridão, um horrível eflúvio no ar, de suspender o jogo. O Náutico excomungara aquela cidade, arribando imediatamente daquelas imediações sem ao menos sequer fazer um ataque na defesa do Biriteiros. Só deu tempo bater o centro, pronto, tudo por água abaixo. O prefeito, incontinente, mandou prender Abinagildo que, culpado, se escondera longe para livrar-se do flagrante delito e da enfezada raiva da torcida local que prometera linchá-lo numa repulsa pública geral. Não era por menos, era mesmo um vício de nascença, já consultado médico especialista sobre o assunto, obtendo-se por diagnóstico tratar-se de rebento nascido de vento ruim, procedente de maus bofes. Nossa, a ciência não explicara direito, mas o de branco, asseverava que estava diante de um fato inusitado, pelo fato de que a tripa gaiteira do dito cujo deveria de ter algum defeito na fabricação da bosta ou o desgraçado já nascera podre mesmo, necessitando, invariavelmente, de uma intervenção através de clister para desobstruir a bosta retida. Só que o fabricante de bosta conseguia ser o maior peidão que já tivera notícia, fato até que se tentou colocar no Guiness, mas não foi possível por ser tratado como verdadeiro despropósito. Muito embora, hoje, depois do ocorrido, uma banda de gente da cidade se orgulhava de ter o maior peidão de todos os tempos. E até já se viu muito bate boca entre os que reverenciam a figura santificada do Abinagildo com os que detestavam qualquer lembrança de sua maledicente podridão. - Vôte! Ele nem cuidava da alma porque o corpo já era podre mesmo! Os enfurecidos do contra, numa reunião acalorada na Câmara de Vereadores, discutiam se homenageavam ou não tal figura polêmica, narrando na tribuna que nem davam por menos e lá vinha aquela ventosidade emitida pelo ânus de modos que, uma vez, até o locutor do telejornal tapara o nariz, levando a rede de tevê a suspender a transmissão alegando em letras garrafais: SUSPENDEMOS NOSSA PROGRAMAÇÃO POR MOTIVOS DE FLATULÊNCIAS INSOLENTES NO AR! E o que é pior era a descaradice dele Abinagildo: - Perde-se o amigo, nunca a piada nem o peido! Carta feita, contam enraivecidos, que numa praia vizinha, uma dor de barriga nele, levou o indecente a fazer as necessidades na água marinha, causando verdadeiro maremoto. O cara afundou-se na água para excretar, dando-se a perceber a bosta undívaga se aproximando das pessoas com uma quentura de ferver a água. Pois é, cagando, soltou um daqueles que as principais manchetes estamparam ferindo o rigor jornalístico: PEIDO CAUSA CATÁSTROFE NO MAR. Toda aquela imensidão adquirira uma cor escura com ondas de mais de vinte e cinco metros de altura, trazendo pra mais de dez mil surfistas no maior auê radical da paróquia. Eita, bôba torreiro! Este estava com a bexiga lixa. Doutra vez, fora demitido da empresa onde trabalhava porque suspendia as atividades e baixava a produtividade, vez que no calor do expediente vinha aquele odor de merda choca que invadia todas as dependências da corporação, expulsando clientes e funcionários esbaforidos. E o pior, onde ele ía, o peido vinha atrás. - Peido desse, lata de lixo é fragrância francesa! -, reclamavam todos unanimemente. Há quem ainda hoje reclame de manhã, de tarde e de noite, diuturnamente, vítima do seu cinismo, não se podendo manter a compostura ante a falta de decoro do descarado. Peta que fosse, vinha aquele verdadeiro mau hálito anal de torrar os pentelhos do cu, flagrando várias vezes aquele posudo confortavelmente agachado em bacias cheias de água esfriando as pregas, onde assoprava aquele ruído de coisa queimada. No início, consideravam, eram os modestos; depois, mais agudos. Daí, meu, surgiram, então, os de queimar sofás, colchões, cadeiras, não se dando conta dos prejuízos que causara aos amigos em suas furtivas visitas. Perdera, assim, ao longo dos tempos, os mais próximos, motivo que o levou a recorrer de uma ajuda superior, rezando, contrito e no meio da oração, soltou unzinho cavernoso, da imagem da santa protetora tapar o nariz, não aguentando a feijoada de ontem. Fora expulso dali pelo padre, avalie, excomungado até a centésima geração. Até uma outra, disseram vingativos, que ele mesmo já fora vítima de sua própria indecência, quando, em sua casa, certa vez, deitou-se em sua cama com o seu abafa-banana familiar, um daqueles cobertores de mais de cinco centímetros de largura, daqueles próprios para o frio polar, quando soltou um que ficou, o próprio, bêbo! Pode? Por causa disso, lá, na casa dele, não tinha inseto algum, bicho nenhum ficava nas imediações. Quem tivesse a oportunidade de ver o álbum de família dele, logo descobria porque ele era enjeitado por todos, vez que, em todas as fotos, mãos apertavam o nariz para não sentir o fedor. Verdade, era um peidorreiro desgraçado. Também pudera, minuciosamente contaram da sua dieta peculiar: feijão, fruta pão, ovo, cebola, jaca, fígado de boi, abacaxi, cachaça de cabeça, isso aos quilos todo santo dia. E era costume após a ceia, almoço ou hora de gororoba qualquer, imaginem, o cara massagear a pança e puuuuuuummmmm! Sorria satisfeito. Depois, chorava aos tombos, sentindo o ardor no procto. E quem estava perto nem podia socorrer, porque não suportava o gás assassino dele. Dando-se conta de sua peidorrada, ele mesmo encontrou um meio de coibir a fetidez: quando ocorria, riscava um fósforo bem nos fundilhos - repara só que presepada -, a ação era imediata, armado de fogo, investia mão em direção da bunda, fósforo aceso e logo queimava o gás indesejável. Resultado: seis calças, três cuecas, duas sungas, três bermudas, quatro calções, tudo com rombo de queimadura na bunda - não é pra menos, né? Por fim, depois de tantas emboanças e perseguições buscando a cura para o seu desígnio, achou de, por bem de seu senso meio lá meio cá, em plena festividade que ocorria justo às vésperas de São João, percebera, enfim, que chegara a hora da sua salvação, e dera de participar com outros mequetrefes da redondeza, dum festival inusitado de pular fogueira, onde soltaria um que o fogo abrasaria, acabando de vez com aquele mau costume. Certo de que sairia campeão esperou para ser o último participante. Pois é, enquanto o povo se espremia na rua central, afagados pela estridulante gritaria do locutor oficial da festa política, ele competia com outros buzuntões dali, numa pulada de fogueira, numa das adjacências do local. Chegou sua vez, nervoso, concentrado, treinou a impulsão, fez carreira e, determinado, é um, é dois, é três e zás! E aquele borborigmo mais parecia um jato queimando tudo. Lá se foi gritando estrada a fora, verdadeira labareda tomou conta dele. Sumiu cidade afora como uma tocha humana. A festa de São João acabada e ele sumido pegando fogo. Daí, todos vingados e com ar de bem feito, narram histórias da tocha humana, o cara que, ao que parece, foi acometido de uma combustão involuntária de deixá-lo torrado pro resto da vida. Dias depois, encontraram algo estranho na beirada de um chafariz, não se dando para identificar, mas presumiu-se seja os restos mortais dele. Ainda hoje está lá, aquele monturozinho de ossada queimada, local apropriado para cuspidas, mijadas e depósito de nojeiras outras impensáveis. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do cantor, compositor, maestro e arranjador Francis Hime: Ao Vivo, Atrás da porta & em dois shows ao vivo com Olívia Hime & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] Aquilo que se expressa positivamente na plasticidade moderna — uma proporção equilibrada do peculiar e da generalidade — manifesta-se mais ou menos também na vida do homem moderno e constitui a causa original da reconstrução social de que somos testemunhas. [...]. Pensamento do artista visual, designer gráfico, arquiteto e poeta neerlandês Theo van Doesburg (1883-1931).

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS – [...] A lógica do sonho é uma arqueo-lógica, operando com processos primários que regem o sistema inconsciente. Escrita de antes da linguagem da razão, seu melhor modelo se encontra na escrita artística, ela também irredutível a qualquer outra, obediente a leis estruturais próprias. Há um texto próprio ao sonho como há um próprio à obra de arte, texto simbólico e sintomático de um conflito de forças, cujo equilíbrio é regulado por um acupunturista invisível. [...] a arte ocupa uma situação intermediária entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, reconciliando um com o outro [...]. Trechos extraídos da obra A infância da arte (Relume-Dumará, 1996), da filósofa francesa Sarah Kofman (1934-1994).

SCHERAZADE - Dandan pediu permissão para ver sua filha Scherazade. Uma criada o conduziu ao quarto rosa, decorado com tapete e cortinas cor-de-rosa, bem como divãs e almofadas em matizes de vermelho. Ali, ele foi recebido por Scherazade e sua irmã Duniazade. Dandan disse: - Estou cumulado de felicidade, graças a Deus, o Senhor do universo. Scherazade fê-lo sentar-se a seu lado, ao passo que Duniazade se retirou para seu quarto. - Fui salva de um destino sangrento pela misericórdia de nosso Senhor - disse Scherazade. Mas o homem mal murmurava suas graças, quando ela acrescentou, amargurada: - Que Deus tenha piedade das virgens inocentes. - Como você é sábia, e como é corajosa! - Mas você sabe, pai - disse ela num sussurro: - eu sou infeliz! - Cuidado, filha, pois nos palácios os pensamentos assumem formas concretas e falam alto! - Eu me sacrifiquei - disse ela, triste - para interromper a torrente de sangue. - Deus tem a Sua sabedoria - murmurou ele. - E o diabo, os seus seguidores - disse ela, com raiva. - Ele ama você, Scherazade - disse o pai, suplicante. - A arrogância e o amor não podem se unir num mesmo coração. Ele ama a si mesmo acima de tudo. - O amor também tem seus milagres. - Cada vez que ele se aproxima de mim sinto o cheiro de sangue. - O sultão não é como o resto da humanidade. - Mas crime é crime. Quantas virgens ele matou, e quantos crentes fiéis ele exterminou? No reino ficaram somente os hipócritas. - Minha confiança em Deus nunca se abalou - disse ele, com tristeza. - Quanto a mim, sei que meu estágio espiritual está na paciência, como me ensinou o grande sheik. A isso, Dandan respondeu, com um sorriso: - Que excelente mestre e que excelente discípula! Extraído da obra Noites das mil e uma noites (Companhia das Letras, 2008), do escritor egípcio & Prêmio Nobel de Literatura de 1988, Naguib Mahfuz (1911-2006). Veja mais aqui.

O RIO É UM GRANDE POETA - É o rio um grande poeta / que vai cantando seus sonhos / de amor e de liberdade / com a guitarra do vento. / O rio, um grande poeta / que diz um poema imenso / numa linguagem de Deus. / Não o culpeis pelos mortos / que os bandidos lhe atiram / desesperados de medo, / para escapar ao castigo / que chegará justiceiro. / O rio, um grande poeta / que diz seu poema imenso. / É o rio grande poeta / que vai cantando... cantando... / e a magia de seu estro / está  gerando, amorosa, / o canto do homem novo, / como ranger de protestos / de todos os esqueletos / das vítimas que, covarde, / jogou em seu leito o ódio. / O rio, um grande poeta / Que cantará o canto novo. Poema do poeta paraguaio Julio Correa (1890-1953).

A ARTE DE REBECCA HORN
A arte da artista visual alemã Rebecca Horn.

AGENDA
XI Semana de Letras com o tema Contemporaneus – entre os dias 17 e 21 de setembro, na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) & muito mais na Agenda aqui.
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Outras do Abinagildo antes de bater as botas aqui e aqui