quinta-feira, agosto 30, 2018

PETRARCA, CAIO ABREU, ADRIANA CALCANHOTO, HABERMAS, VATTIMO, ALDEMIR MARTINS, PESQUISA & ZEBEDEU


O BOI DE ZEBEDEU - Imagem: arte do ilustrador, pintor e escultor Aldemir Martins (1922-2006). - Foi assim: numa manhã ensolarada de sábado estival, apareceu Zebedeu todo enfeitado de tampas, botões, moedas, adereços e outros brebotes reluzentes apregados no gibão e no chapéu de vaqueiro, exaltando o boi Glorioso que mugia acompanhando a sua cantoria. Ele danou-se a embolar coco, puxando firme na versejada, de ajuntar gente para acompanhar o apólogo de interminável falação desde cedinho até a noitinha. Cantava ele a majestade miraculosa do animal, das peçonhas que inoculara, das doenças que curara, das mortes que ressuscitara, das vidas que salvara, afora outras tantas espetaculares virtudes, adivinhações e medicações do afamado bovino que ali estava comendo flores, todo ornado de fitas do pescoço à cauda. Todo sábado ali, já era costume. Vez por outra aparecia uma empreitada: um menino com febre braba, quase desfalecido de tão franzino, com maleita incurável. Zebedeu não teve dúvida, foi só chegar nas orelhas do Glorioso e cochichar, do bicho levantar-se e derramar uma mijada estrondosa numa vasilha ali colocada. Ele pegou do mijo, entregou num frasco providenciado e entregou à mãe aflita. Quanto é? Sábado que vem, se o menino tiver curado, traga só um dicomer pra saciar a fome da gente. Assim foi. E no sábado seguinte, a genitora do restabelecido, chegou toda ancha a lhe dar de não sei quantas galinhas, preás, perus e uma marmita com o melhor que havia de cosido na sua casa, afora um molho de mato do bom para alimento do santificado animal. A multidão curiosa aplaudia e presenciava mais uma divina intervenção dele. Logo apareceu outra senhora abalada com o reumatismo de um ancião acamado de meses, morre mas num morre, Zebedeu prontamente, cochichou na orelha dele que levantou-se, deu uma cagada esparramada que recolhida num recipiente na hora, recomendou fazer uma garrafada pro enfermo incruado tomar em jejum por três dias encarreados. Quanto é? Sábado que vem, se o seu pai estiver curado, traga só um dicomer pra matar a fome da gente. Assim se repetiu. Na semana seguinte, estava ela toda às risadagens com presentes e mais brindes pro cantador e pro salvador bicho. Ficou curado? Oxe, bastou tomar dois dias da garrafada em jejum, como o senhor mandou, e logo ficou bonzinho da silva, olhele aqui, espie! Era salva de palmas! O ancião de tão bom estava aos pulos. Assim era, aparecesse a bronca que fosse de saúde ou de maus espíritos, era só usar de raspas do chifre, tacos das patas, sebo da bimba, pingo do suor dos bagos, cabelo do rabo, catota da venta, meleca dos olhos, gozo da punheta, tudo milagroso, um santo remédio. O paciente que fizesse uso, morto que tivesse num sepultamento, tornava vivinho na hora! Se tivesse desaparecido desenvultava no instante! Escondido reaparecia, desencantado tomava gosto na vida, raquítico engordava, cego via, aleijado andava, adoecido sarava e assim por diante. Por conta disso, juntava gente, a maior romaria de penitentes e retirantes, e o boi obrando milagres pra cima e pra baixo. Até as vacas namoradeiras ficavam flertando o milagreiro. Descuidou-se, oxe, estava lá ele amontado nos quartos duma faceira, tanto é que os bezerros é tudo famigerado: Jauaraicica, Pintadinho, Serapião, touro Rei, Espácio, até as vacas Mordaça e a Estrela do boi Fubá, tudo cantado em folhetos de cordel de todas as espécies de cantadores e repentistas de norte a sul, leste a oeste do Nordeste desse Brasilzão véio, arrevirado e de porteira escancarada. Certo dia, vinha ele pelas quebradas se dirigindo pra feira da cidade mais próxima, quando o boi amuou no meio da rodagem. Que é que é isso, Glorioso? O povo está lá esperando a gente pra novas ações, vamos que vamos. E o boi nada de se desapregar do chão, ronceiro, acanhado. Que é que tá havendo? E o Glorioso todo desconfiado, nada de se arrastar pra canto nenhum. Assim demorou-se. Lá longe já vinha o povaréu crente impaciente e requerente descendo a ladeira: Cadê o boi, homem? Ah, Glorioso está cheio de pantim. Conversa vai e vem, e agora? Tá todo mundo lá na feira esperando pras sessões! Nessa hora, o boi, assim do nada, deu um carreirão de se perder na poeira mato adentro. O povo atrás, pé na bunda. Correram chão que só, quando avistaram lá na beira do brejo uma criança inocente brincando e prestes a ser atacada por uma cobra Pico-de-jaca. A peçonhenta surucucu estirada em “S” com mais de metros, vibrava a cauda no chão, parecia mais que cuspia fogo, armou o bote e a cabroeira toda só: Valha-me, Deus! O boi travou-se com a surucucu e levou picada até umas horas, da gente só ver o boi gemendo e cheio de bolhas onde a danada mordia. Foi um combate feroz da poeira comer no centro. Lá pras tantas, enfim, a criança sorria salva e o boi caiu com a serpente enrolada nele: morreram os dois. O boi santificado começou a levitar aureolado e saiu voando, ascendendo aos céus para nunca mais. Lá se foi o santo Glorioso! PS: recriação recolhida da obra Sertão do Boi Santo (Clube do Livro, 1968), do escritor Paulo Dantas (1922-2007). © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais  aqui.

RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música da cantora e compositora Adriana Calcanhoto: Senhas, Loucura, Micróbio Vivo & Público & muito mais nos mais de 2 milhões & 600 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.

PENSAMENTO DO DIA – [...] Porque a violência social dos capitalistas se institucionaliza na forma do contrato particular de trabalho como relação de troca, e a compensação da mais-valia privadamente disponível ocupou o lugar da dependência política; o mercado, além da sua função cibernética, assume uma função ideológica: a relação de classe pode, na forma apolítica da dependência salarial, assumir uma forma anônima. [...] Trecho extraído da obra A crise de legitimação do capitalismo tardio (Tempo Brasileiro, 1980), do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Veja mais aqui.

MORTE DA ARTE – [...] é aquela que de fato já vivemos na sociedade da cultura de massa, em que se pode falar de estetização geral da vida na medida em que a mídia, que distribui informação, cultura, entretenimento, mas sempre sob critérios gerais de beleza (atração formal dos produtos), assumiu na vida de todos um peso infinitamente maior do que em qualquer outra época [...]. Trecho extraído de O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (Martins Fontes, 1996), do filósofo italiano Gianni Vattimo. Veja mais aqui e aqui.

ONDE ANDARÁ? - [...] Uma loura cinquentona, com muitas joias douradas e um vestido decotado imitando onça, debruçou-se na máquina quando passei. Poderia ser vulgar, mas qualquer coisa no pescoço esticado demais e nos ombros rígidos, jogados para trás, revelava certa aristocracia. Quem sabe uma recém-divorciada tentando começar de novo, uma ex-bailarina russa fascinada pelos trópicos e obrigada a fazer sórdidas traduções para sobreviver. [...] Antes que eu pudesse discar, ela estendeu sobre a mesa a mão cheia de anéis e longas unhas escarlates. – Prazer – disse, sem nenhum sotaque russo. Ao contrário, com suas vogais abertas soava levemente baiano. – Sou Teresinha O’Connor. – Teresinha como? – O’Connor – ela repetiu, caprichando na pronúncia – De origem irlandesa, sabe? Sou cronista social. Quando tiver alguma nota, você me passa? Pessoal que lida com arte sempre tem. – Pode deixar – eu disse. E comecei a discar. [...] Até encontrar um táxi, passei por dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, mais um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas, dias gêmeas mongoloides, de braço dado, e tantos mendigos que não consegui contar. A cenografia eram sacos de lixo com cheiro doce, moscas esvoaçando, crianças em volta. [...]. Trechos extraídos da obra Onde andará Dulce Veiga (Nova Fronteira, 1990), do escritor, jornalista e dramaturgo Caio Fernando Abreu (1948-1996). Veja mais aqui e aqui.

TRIUNFO DA MORTE - Aquela bela dama e gloriosa, / Que hoje é nu 'spírito e pouca terra, / E foi alta coluna e valorosa; / Tornava com grande honra de sua guerra, / Deixando já vencido o grande inimigo, / Que com seu doce fogo o mundo aterra. / Não com mais armas que respeito altivo, / Honestidade em rosto e pensamento, / Coração casto e de virtude amigo. / Grande espanto era ver tal vencimento, / As armas d'amor rotas e desfeitas, / E os vencidos dele em mor tormento. / A bela dama e as outras eleitas / Se vinham gloriando da vitória, / Em bela esquadra juntas e restreitas. / Poucas eram, que rara é vera glória, / Mas dinas, da primeira à derradeira, / De claríssimo poema e de história. / Traziam, por insígnia, na bandeira / Em campo verde um branco armelino / D'ouro fino, e topazes a coleira. / Não humano, certamente, mas divino / Era o seu doce andar, e o que diziam: / Ditosa é a que nasce a tal destino. / Estrelas e sol em meio pareciam, / Em cujo resplendor o seu consiste; / De rosas coroadas todas iam. / Como nobre coração que honra aquiste, / Cada uma em sua virtude se alegra, / Quando outra insígnia vi escura e triste, / E uma fera dona em veste negra. / Com tal furor, qual eu não sei se atrás, / No tempo dos gigantes fosse em Flegra. / Chamou, e disse: donzela, tu que vás / De beleza e virtude alterada, / De tua vida o termo não saberás? / Eu sou a importuna acelerada, /Chamada de vós, gente surda e cega, / A quem morte vem antecipada. / Eu sou a que matei a gente grega / E troiana, e no último os romãos, / Que todos minha foice corta e cega. / Não deixo povos gentios nem cristãos, / Chego quando por mim menos se espera, / Atalho mil pensamentos, todos vãos. / E a vós, quando mais ledo o viver era, / Endereço meu curso, antes que a fortuna / Misture em vossa doce a sua fera. / Já nestas tu não tens razão alguma, / E em mim pouca, que em minha morte, / Respondeu a que no mundo foi uma, / Outrem sei a quem mais dura é a sorte, / Cuja vida do meu viver depende, / Que o morrer, quanto a mim, será deporte. / Qual é quem grave coisa e nova entende, / Ou vê o que no princípio não lembrou, / E ora se maravilha, ora resprende. / Tal foi a cruel; e depois que cuidou / Um pouco em si, disse: bem conheço eu / Se dá o meu golpe em cheio ou se errou. / Depois, com melhor / semblante e menos seu / Disse: tu que a fremosa esquadra guias, / Inda não experimentaste o tosco meu. / Mas, se de meu conselho algo te fias, / Que forçar te posso: por melhor se tem / Fugir velhice e os seus tristes dias. / Eu sou disposta a te fazer um bem / Que não costumo; e é que tua alma vá / Sem aquele medo e dor que a morte tem. / Como apraz ao Senhor, que em cima está, / E rege o céu, e a terra, e o abisso, / Farás de mim o que dos outros será. / Em respondendo assi, eis d'improviso / De mortos se cobriu toda a campanha, / De multidão que excede o humano siso. / A índia, o Cataio, África e Espanha, / Tudo estava coberto até os extremos / Daquela infinita turba manha. / Entre eles, os que por felices temos, / Pontífices, e reis, e imperadores, / Que ora são nus e pobres, como vemos. / Que foi de suas riquezas e primores? / Dos ceptros e vestiduras reais? / Das mitras e das purpúreas cores? / Triste o que a esperança põe em bens mortais! / Mas quem a não põe? Que se depois se achar / Enganado, o remédio é por demais. / Ó cegos que aproveita o afadigar? / Que logo vos tornais à madre antiga, /E muito pouco o vosso nome há-de durar. / E se alguma há, entre vós, útil fadiga, / Ou se são todas puras vaidades, / Qual mais souber de vós esse mo diga. / Que val ganhardes reinos e cidades, / Fazerdes tributárias muitas gentes, / Forçardes nações livres e vontades? / Que achais nessas vitórias eminentes? / Trocar sangue por terra e por tesouro? / Melhor sabe na paz aos prudentes / O pão e água no pau, que a vós no ouro. / Mas por não prosseguir tão longo tema / Acabarei, e a meu lavor me torno. / E digo que já era na hora extrema / Aquela breve vida gloriosa, / No passo em que nenhum há que não trema. / Com ela estava outra valerosa / Companhia de donas, que esperava / Saber se alguma morte há piedosa. / Atentas eram quantas ali estavam / A contemplar o fim que ela fazia, / Que tal convém fazer aos que acabam. / Estando assi a nobre companhia, / Da loura cabeça, morte lhe cortou, / A trança que seus cabelos tecia. / Assi do mundo a mais bela flor levou, / Não por ódio, mas por mais cedo mostrar / Que para reinar na glória se criou. / Tristes prantos e querelas ouvi dar, / Sendo os seus belos olhos já enxutos, / De cujo nome me soía abrasar. / Entre gritos e lágrimas e lutos / Estava ela só leda e calada, / De seu casto viver colhendo os frutos. / Vai-te em paz, alma bem- aventurada, / Diziam, e era assi; mas nada val / Contra a morte cruel e acelerada. / Que será de nós? Pois esta que era tal / Ardeu em tão breve tempo e acabou / falsa e cega esperança humanal / Se de lágrimas a terra se banhou, / Com piedade daquela alma gentil, / Sabe-o quem o viu e experimentou. / Na hora prima do dia sexto d'Abril, / Em que fui preso a morte me desatou; / Que assi muda fortuna o seu estilo vil. / Quem de dura servidão mais se queixou, / Ou da morte, como eu da liberdade / E da vida, que sem ela me ficou? / Devido era ao mundo e à idade / Não preceder a da véspera ao da prima, / Nem tirar-se-lhe a ele a dignidade. / Qual fosse a sua dor que não se estima / Ousado só a cuidá-lo eu não seria, / Quanto mais a escrevê-lo em prosa ou rima. / Acabada é a virtude e a cortesia / Se ouvia lamentar junto do leito / Pelas donas e amigas que ali havia. / Quem verá mais em dama auto perfeito, / Quem ouvirá seu falar de saber cheio, / E a voz de tão suave deleito? / O espírito, por deixar o doce seio / Com todas as virtudes, anojado, / Fazia em toda a parte o ar sereio. / Nenhum dos adversários foi ousado / De aparecer ali com vista escura, / Até que a morte o assalto houve acabado. / Deposto já o medo e a tristura, / Ao belo rosto cada uma olhava, / Por desesperação feita segura. / Não como chama, que por força acaba, / Mas que por si se gasta e consume, / Se foi dentre nós a que o mundo ornava. / A modo de um suave e claro lume, / A que falta sustância e nutrimento, / a Que no fim tem usado costume; / Mais alva que a neve que sem vento / Em gracioso campo se vê cair, / Estava ela no fim do passamento. / Quase em belos olhos um doce dormir, / Sendo o espírito já partido dela! / Parecia o seu morrer o ressurgir, / E o seu lindo rosto morte bela! Poema extraído da obra Triunfos (Hedra, 2006), do escritor, intelectual humanista e filosofo italiano Francesco Petrarca (1304-1374). Nesta obra, conforme a escritora Gertrudre Moakley (1905-1998) e recolhido da obra Jung e o tarô: uma jornada arquetípica (Cultrix, 1980), de Sallie Nichols, cada uma de uma série de personagens alegóricos combate e vence o seu predecessor, adaptando as ilustrações dos poemas do autor para a sua amada Laura, dividindo-a em seis partes: Triunfo do Amor, Triunfo da Castidade, Triunfo da Morte, Triunfo da Fama, Triunfo do Tempo e Triunfo da Eternidade. Nesses poemas o amor vence todos os homens, inclusive o próprio poeta, no entanto, é derrotado por Laura, que se vale da castidade. Ela comemora sua vitória, mas ainda precisará enfrentar a Morte, e ser eternizada pela Fama e pelo Tempo, que por fim são vencidos pela Eternidade, o reino de Deus, último Triunfo. Veja mais aqui.

A ARTE DE ALDEMIR MARTINS
A arte do ilustrador, pintor e escultor Aldemir Martins (1922-2006). Veja mais aqui.

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