O BOI DE ZEBEDEU - Imagem: arte do ilustrador, pintor e escultor Aldemir Martins (1922-2006). - Foi
assim: numa manhã ensolarada de sábado estival, apareceu Zebedeu todo enfeitado
de tampas, botões, moedas, adereços e outros brebotes reluzentes apregados no
gibão e no chapéu de vaqueiro, exaltando o boi Glorioso que mugia acompanhando
a sua cantoria. Ele danou-se a embolar coco, puxando firme na versejada, de
ajuntar gente para acompanhar o apólogo de interminável falação desde cedinho
até a noitinha. Cantava ele a majestade miraculosa do animal, das peçonhas que
inoculara, das doenças que curara, das mortes que ressuscitara, das vidas que
salvara, afora outras tantas espetaculares virtudes, adivinhações e medicações
do afamado bovino que ali estava comendo flores, todo ornado de fitas do
pescoço à cauda. Todo sábado ali, já era costume. Vez por outra aparecia uma
empreitada: um menino com febre braba, quase desfalecido de tão franzino, com
maleita incurável. Zebedeu não teve dúvida, foi só chegar nas orelhas do
Glorioso e cochichar, do bicho levantar-se e derramar uma mijada estrondosa
numa vasilha ali colocada. Ele pegou do mijo, entregou num frasco providenciado
e entregou à mãe aflita. Quanto é? Sábado que vem, se o menino tiver curado,
traga só um dicomer pra saciar a fome da gente. Assim foi. E no sábado
seguinte, a genitora do restabelecido, chegou toda ancha a lhe dar de não sei
quantas galinhas, preás, perus e uma marmita com o melhor que havia de cosido
na sua casa, afora um molho de mato do bom para alimento do santificado animal.
A multidão curiosa aplaudia e presenciava mais uma divina intervenção dele. Logo
apareceu outra senhora abalada com o reumatismo de um ancião acamado de meses,
morre mas num morre, Zebedeu prontamente, cochichou na orelha dele que
levantou-se, deu uma cagada esparramada que recolhida num recipiente na hora,
recomendou fazer uma garrafada pro enfermo incruado tomar em jejum por três dias
encarreados. Quanto é? Sábado que vem, se o seu pai estiver curado, traga só um
dicomer pra matar a fome da gente. Assim se repetiu. Na semana seguinte, estava
ela toda às risadagens com presentes e mais brindes pro cantador e pro salvador
bicho. Ficou curado? Oxe, bastou tomar dois dias da garrafada em jejum, como o
senhor mandou, e logo ficou bonzinho da silva, olhele aqui, espie! Era salva de
palmas! O ancião de tão bom estava aos pulos. Assim era, aparecesse a bronca
que fosse de saúde ou de maus espíritos, era só usar de raspas do chifre, tacos
das patas, sebo da bimba, pingo do suor dos bagos, cabelo do rabo, catota da
venta, meleca dos olhos, gozo da punheta, tudo milagroso, um santo remédio. O
paciente que fizesse uso, morto que tivesse num sepultamento, tornava vivinho na
hora! Se tivesse desaparecido desenvultava no instante! Escondido reaparecia,
desencantado tomava gosto na vida, raquítico engordava, cego via, aleijado
andava, adoecido sarava e assim por diante. Por conta disso, juntava gente, a
maior romaria de penitentes e retirantes, e o boi obrando milagres pra cima e
pra baixo. Até as vacas namoradeiras ficavam flertando o milagreiro.
Descuidou-se, oxe, estava lá ele amontado nos quartos duma faceira, tanto é que
os bezerros é tudo famigerado: Jauaraicica, Pintadinho, Serapião, touro Rei,
Espácio, até as vacas Mordaça e a Estrela do boi Fubá, tudo cantado em folhetos
de cordel de todas as espécies de cantadores e repentistas de norte a sul,
leste a oeste do Nordeste desse Brasilzão véio, arrevirado e de porteira
escancarada. Certo dia, vinha ele pelas quebradas se dirigindo pra feira da
cidade mais próxima, quando o boi amuou no meio da rodagem. Que é que é isso,
Glorioso? O povo está lá esperando a gente pra novas ações, vamos que vamos. E o
boi nada de se desapregar do chão, ronceiro, acanhado. Que é que tá havendo? E
o Glorioso todo desconfiado, nada de se arrastar pra canto nenhum. Assim demorou-se.
Lá longe já vinha o povaréu crente impaciente e requerente descendo a ladeira:
Cadê o boi, homem? Ah, Glorioso está cheio de pantim. Conversa vai e vem, e
agora? Tá todo mundo lá na feira esperando pras sessões! Nessa hora, o boi, assim
do nada, deu um carreirão de se perder na poeira mato adentro. O povo atrás, pé
na bunda. Correram chão que só, quando avistaram lá na beira do brejo uma
criança inocente brincando e prestes a ser atacada por uma cobra Pico-de-jaca. A
peçonhenta surucucu estirada em “S” com mais de metros, vibrava a cauda no
chão, parecia mais que cuspia fogo, armou o bote e a cabroeira toda só:
Valha-me, Deus! O boi travou-se com a surucucu e levou picada até umas horas,
da gente só ver o boi gemendo e cheio de bolhas onde a danada mordia. Foi um
combate feroz da poeira comer no centro. Lá pras tantas, enfim, a criança sorria
salva e o boi caiu com a serpente enrolada nele: morreram os dois. O boi
santificado começou a levitar aureolado e saiu voando, ascendendo aos céus para
nunca mais. Lá se foi o santo Glorioso! PS: recriação recolhida da obra Sertão do Boi Santo (Clube do Livro,
1968), do escritor Paulo Dantas
(1922-2007). © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá especial
com a música da cantora e compositora Adriana
Calcanhoto:
Senhas, Loucura, Micróbio Vivo & Público & muito mais nos mais de 2
milhões & 600
mil acessos ao
blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] Porque
a violência social dos capitalistas se institucionaliza na forma do contrato particular
de trabalho como relação de troca, e a compensação da mais-valia privadamente disponível
ocupou o lugar da dependência política; o mercado, além da sua função cibernética,
assume uma função ideológica: a relação de classe pode, na forma apolítica da dependência
salarial, assumir uma forma anônima. [...] Trecho extraído da obra A crise de legitimação do capitalismo tardio
(Tempo Brasileiro, 1980), do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Veja
mais aqui.
MORTE DA ARTE – [...] é
aquela que de fato já vivemos na sociedade da cultura de massa, em que se pode
falar de estetização geral da vida na medida em que a mídia, que distribui
informação, cultura, entretenimento, mas sempre sob critérios gerais de beleza
(atração formal dos produtos), assumiu na vida de todos um peso infinitamente
maior do que em qualquer outra época [...]. Trecho extraído de O fim da
modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (Martins
Fontes, 1996), do filósofo italiano Gianni Vattimo.
Veja mais aqui e aqui.
ONDE ANDARÁ? - [...] Uma
loura cinquentona, com muitas joias douradas e um vestido decotado imitando
onça, debruçou-se na máquina quando passei. Poderia ser vulgar, mas qualquer
coisa no pescoço esticado demais e nos ombros rígidos, jogados para trás,
revelava certa aristocracia. Quem sabe uma recém-divorciada tentando começar de
novo, uma ex-bailarina russa fascinada pelos trópicos e obrigada a fazer
sórdidas traduções para sobreviver. [...] Antes que eu pudesse discar, ela estendeu sobre a mesa a mão cheia de anéis
e longas unhas escarlates. – Prazer – disse, sem nenhum sotaque russo. Ao contrário,
com suas vogais abertas soava levemente baiano. – Sou Teresinha O’Connor. –
Teresinha como? – O’Connor – ela repetiu, caprichando na pronúncia – De origem
irlandesa, sabe? Sou cronista social. Quando tiver alguma nota, você me passa? Pessoal
que lida com arte sempre tem. – Pode deixar – eu disse. E comecei a discar.
[...] Até encontrar um táxi, passei por
dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro
maneta, mais um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um
velho de muletas, dias gêmeas mongoloides, de braço dado, e tantos mendigos que
não consegui contar. A cenografia eram sacos de lixo com cheiro doce, moscas
esvoaçando, crianças em volta. [...]. Trechos extraídos da obra Onde
andará Dulce Veiga
(Nova Fronteira, 1990), do escritor,
jornalista e dramaturgo Caio Fernando
Abreu (1948-1996). Veja mais aqui e aqui.
TRIUNFO DA MORTE - Aquela
bela dama e gloriosa, / Que hoje é nu 'spírito e pouca terra, / E foi alta
coluna e valorosa; / Tornava com grande honra de sua guerra, / Deixando já
vencido o grande inimigo, / Que com seu doce fogo o mundo aterra. / Não com
mais armas que respeito altivo, / Honestidade em rosto e pensamento, / Coração
casto e de virtude amigo. / Grande espanto era ver tal vencimento, / As armas
d'amor rotas e desfeitas, / E os vencidos dele em mor tormento. / A bela dama e
as outras eleitas / Se vinham gloriando da vitória, / Em bela esquadra juntas e
restreitas. / Poucas eram, que rara é vera glória, / Mas dinas, da primeira à
derradeira, / De claríssimo poema e de história. / Traziam, por insígnia, na
bandeira / Em campo verde um branco armelino / D'ouro fino, e topazes a
coleira. / Não humano, certamente, mas divino / Era o seu doce andar, e o que
diziam: / Ditosa é a que nasce a tal destino. / Estrelas e sol em meio
pareciam, / Em cujo resplendor o seu consiste; / De rosas coroadas todas iam. /
Como nobre coração que honra aquiste, / Cada uma em sua virtude se alegra, / Quando
outra insígnia vi escura e triste, / E uma fera dona em veste negra. / Com tal
furor, qual eu não sei se atrás, / No tempo dos gigantes fosse em Flegra. / Chamou,
e disse: donzela, tu que vás / De beleza e virtude alterada, / De tua vida o
termo não saberás? / Eu sou a importuna acelerada, /Chamada de vós, gente surda
e cega, / A quem morte vem antecipada. / Eu sou a que matei a gente grega / E
troiana, e no último os romãos, / Que todos minha foice corta e cega. / Não
deixo povos gentios nem cristãos, / Chego quando por mim menos se espera, / Atalho
mil pensamentos, todos vãos. / E a vós, quando mais ledo o viver era, / Endereço
meu curso, antes que a fortuna / Misture em vossa doce a sua fera. / Já nestas
tu não tens razão alguma, / E em mim pouca, que em minha morte, / Respondeu a
que no mundo foi uma, / Outrem sei a quem mais dura é a sorte, / Cuja vida do
meu viver depende, / Que o morrer, quanto a mim, será deporte. / Qual é quem
grave coisa e nova entende, / Ou vê o que no princípio não lembrou, / E ora se
maravilha, ora resprende. / Tal foi a cruel; e depois que cuidou / Um pouco em
si, disse: bem conheço eu / Se dá o meu golpe em cheio ou se errou. / Depois,
com melhor / semblante e menos seu / Disse: tu que a fremosa esquadra guias, / Inda
não experimentaste o tosco meu. / Mas, se de meu conselho algo te fias, / Que
forçar te posso: por melhor se tem / Fugir velhice e os seus tristes dias. / Eu
sou disposta a te fazer um bem / Que não costumo; e é que tua alma vá / Sem
aquele medo e dor que a morte tem. / Como apraz ao Senhor, que em cima está, / E
rege o céu, e a terra, e o abisso, / Farás de mim o que dos outros será. / Em
respondendo assi, eis d'improviso / De mortos se cobriu toda a campanha, / De
multidão que excede o humano siso. / A índia, o Cataio, África e Espanha, / Tudo
estava coberto até os extremos / Daquela infinita turba manha. / Entre eles, os
que por felices temos, / Pontífices, e reis, e imperadores, / Que ora são nus e
pobres, como vemos. / Que foi de suas riquezas e primores? / Dos ceptros e
vestiduras reais? / Das mitras e das purpúreas cores? / Triste o que a
esperança põe em bens mortais! / Mas quem a não põe? Que se depois se achar / Enganado,
o remédio é por demais. / Ó cegos que aproveita o afadigar? / Que logo vos
tornais à madre antiga, /E muito pouco o vosso nome há-de durar. / E se alguma
há, entre vós, útil fadiga, / Ou se são todas puras vaidades, / Qual mais
souber de vós esse mo diga. / Que val ganhardes reinos e cidades, / Fazerdes
tributárias muitas gentes, / Forçardes nações livres e vontades? / Que achais
nessas vitórias eminentes? / Trocar sangue por terra e por tesouro? / Melhor
sabe na paz aos prudentes / O pão e água no pau, que a vós no ouro. / Mas por
não prosseguir tão longo tema / Acabarei, e a meu lavor me torno. / E digo que
já era na hora extrema / Aquela breve vida gloriosa, / No passo em que nenhum
há que não trema. / Com ela estava outra valerosa / Companhia de donas, que
esperava / Saber se alguma morte há piedosa. / Atentas eram quantas ali estavam
/ A contemplar o fim que ela fazia, / Que tal convém fazer aos que acabam. / Estando
assi a nobre companhia, / Da loura cabeça, morte lhe cortou, / A trança que
seus cabelos tecia. / Assi do mundo a mais bela flor levou, / Não por ódio, mas
por mais cedo mostrar / Que para reinar na glória se criou. / Tristes prantos e
querelas ouvi dar, / Sendo os seus belos olhos já enxutos, / De cujo nome me
soía abrasar. / Entre gritos e lágrimas e lutos / Estava ela só leda e calada,
/ De seu casto viver colhendo os frutos. / Vai-te em paz, alma bem- aventurada,
/ Diziam, e era assi; mas nada val / Contra a morte cruel e acelerada. / Que
será de nós? Pois esta que era tal / Ardeu em tão breve tempo e acabou / falsa
e cega esperança humanal / Se de lágrimas a terra se banhou, / Com piedade
daquela alma gentil, / Sabe-o quem o viu e experimentou. / Na hora prima do dia
sexto d'Abril, / Em que fui preso a morte me desatou; / Que assi muda fortuna o
seu estilo vil. / Quem de dura servidão mais se queixou, / Ou da morte, como eu
da liberdade / E da vida, que sem ela me ficou? / Devido era ao mundo e à idade
/ Não preceder a da véspera ao da prima, / Nem tirar-se-lhe a ele a dignidade.
/ Qual fosse a sua dor que não se estima / Ousado só a cuidá-lo eu não seria, /
Quanto mais a escrevê-lo em prosa ou rima. / Acabada é a virtude e a cortesia /
Se ouvia lamentar junto do leito / Pelas donas e amigas que ali havia. / Quem
verá mais em dama auto perfeito, / Quem ouvirá seu falar de saber cheio, / E a
voz de tão suave deleito? / O espírito, por deixar o doce seio / Com todas as
virtudes, anojado, / Fazia em toda a parte o ar sereio. / Nenhum dos
adversários foi ousado / De aparecer ali com vista escura, / Até que a morte o
assalto houve acabado. / Deposto já o medo e a tristura, / Ao belo rosto cada
uma olhava, / Por desesperação feita segura. / Não como chama, que por força
acaba, / Mas que por si se gasta e consume, / Se foi dentre nós a que o mundo
ornava. / A modo de um suave e claro lume, / A que falta sustância e nutrimento,
/ a Que no fim tem usado costume; / Mais alva que a neve que sem vento / Em
gracioso campo se vê cair, / Estava ela no fim do passamento. / Quase em belos
olhos um doce dormir, / Sendo o espírito já partido dela! / Parecia o seu
morrer o ressurgir, / E o seu lindo rosto morte bela! Poema extraído da
obra Triunfos (Hedra, 2006), do
escritor, intelectual humanista e filosofo italiano Francesco Petrarca
(1304-1374). Nesta obra, conforme a escritora Gertrudre Moakley (1905-1998) e
recolhido da obra Jung e o tarô: uma
jornada arquetípica (Cultrix, 1980), de Sallie Nichols, cada uma de uma
série de personagens alegóricos combate e vence o seu predecessor, adaptando as
ilustrações dos poemas do autor para a sua amada Laura, dividindo-a em seis
partes: Triunfo do Amor, Triunfo da Castidade, Triunfo da Morte, Triunfo da
Fama, Triunfo do Tempo e Triunfo da Eternidade. Nesses poemas o amor vence
todos os homens, inclusive o próprio poeta, no entanto, é derrotado por Laura,
que se vale da castidade. Ela comemora sua vitória, mas ainda precisará
enfrentar a Morte, e ser eternizada pela Fama e pelo Tempo, que por fim são
vencidos pela Eternidade, o reino de Deus, último Triunfo. Veja mais aqui.
A ARTE DE ALDEMIR MARTINS
A arte do ilustrador, pintor e escultor Aldemir Martins (1922-2006). Veja mais
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