terça-feira, fevereiro 09, 2016

BAILE DE CARNAVAL



BAILE DE CARNAVAL

Luiz Alberto Machado

Inusitado fora aquele baile de carnaval, tão engalanado quanto desastroso. Pudera, Merindo Néscio e Florzinha Miranda faziam o casal exemplar de Alagoinhanduba, trinta anos dividindo o mesmo teto, as mesmas exuberâncias, os mesmos caminhos. É certo que Merindo dava aqui e ali umas escapulidas, mas nada que maculasse o matrimônio deles. Ela, não, resignada, católica fervorosa, nada lhe tinha por tirar um cisco da sua retidão feminina, mulher na vera que era.

Lá se iam cinquenta anos de convivência nos costados do casal. Data para lá de significativa por comemorar, mais valia uma suntuosa festa para parabenizar casal tão bem aquinhoado de felicidade. Mereciam. Além disso, havia um outro motivo: a formatura da filha médica. Oxe, duas festas numa só.

Inicialmente pensaram em realizar as comemorações na casa grande da fazenda: não, era muito longe, não viriam todos testemunhar o estandarte da alegria deles.

Depois sondaram um grupo escolar de amigos que lhe ofereceram o local: não, não era assim tão amplo quanto prometiam.

Veio então o clube da Associação Atlética Pilantrantes do Nó Cego: nãp, era um tanto pequeno.

Depois de vasculhar toda redondeza, por fim escolheram o clube dos Lenhadores, este sim, salão enorme de baile, que comportaria todo aparato, tradicional recinto de eventos festivos.

Pois sim, ali ficaria sendo o local ideal para a efeméride. Contrataram logo uma orquestra de frevo renomada, daqueles da gente dançar de perder as caçolas e o solado do sapato. Uma ornamentação de estardalhaço com tudo de fitas e coloridos para causar espasmos de admiração, até uma girândola com mais de dez mil fogos de artifícios e serviço de um bufê grã-fino e caríssimo, com bebidas de primeira nas mais de oitocentas mesas alugadas para o evento.

Foram pra mais de dois mil convites, do prefeito ao exator chefe da coletoria; do grão-mestre maçom ao bispo católico; do gerente do banco ao chefe da Rede Ferroviária Federal; do médico plantonista ao delegado de polícia; do tabelião de ofício ao farmacêutico juramentado; do presidente do Lions Clube ao chefe dos Escoteiros; do diretor do Ginásio Municipal ao presidente do Clube dos Lojistas; do agropecuarista abastado ao dono da usina açucareira; do chefe dos corretores de imóveis ao tesoureiro da prefeitura; do dono da transportadora Alagoinhandubense ao patrulheiro rodoviário; do diretor da subestação de abastecimento de água ao interventor do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial; do presidente da câmara ao responsável pela Ciretran; do agente da previdência social ao proprietário da funerária Vai Com Deus; era meio mundo de gente sendo convidado para partilhar da felicidade dos esponsais.

O maior de tudo, motivo maior de toda festança, seria o presente de formatura de Djanirita, a filha única do casal, que se formara na capital, em Medicina. Ela que sempre fora prendada, avançadinha para o seu tempo, cobiçada por todo imaginário masculino dali, estaria formada numa festa estrondosa. Ela que nos tempos de pré-adolescência se enrabichara por um tal Marquito Limeira, filho de um dono de lojas de eletrodomésticos, namorico bobo e que findou de forma arrepiada. É que namoraram quando eram meninos ainda, mas ele abandonara aquele amor praticamente infantil por causa das volubilidades dela em se mostrar demasiadamente fácil para os coleguinhas de escola. Marquito se mordia de ciúmes, mas ele mesmo nem chegara perto dela, era uma timidez medonha e, ela, danadinha, queria se enfronhar num sarro leve, como faziam as amigas mais velhas dela, que ensinavam-na a namorar agarrado.

Uma vez Marquito flagrou-a beijando a boca de outro. Vixe! O cara arrepiou-se, sentiu a gaia dando circuito no quengo e acabou o namoro ali mesmo, não antes deixar o sujeito com uma janelinha entre os dentes. Por conta disso, ela tomou um frasco de cachete com refrigerante e café, depois ingeriu creolina, veneno de rato, choramingou a noite toda e depois cortou os pulsos. Ele nem se fez de rogado, deixou-la para lá. Enfim, ela se safou e ele também, cada um pra banda das ventas diferente.

Quase vinte anos se passaram daquele idílio juvenil, acreditando todo mundo que não exista mais nada entre eles, claro. Mas ela ali, naquela festa, seria o centro das atrações. E assim fora.

Como era um baile à fantasia e os convidados não gozavam lá de bom senso e, muito menos, de bom gosto, apareceu de tudo! E como os caras eram ocrídios de feio, nem precisavam usar de máscaras: metiam medo mesmo com as suas próprias fisionomias. Mas, destá. Todo tipo de super-herói apareceu, desde uns inventados na hora a partir de figuras alvo de mangação, como coveiros, fuxiqueiros e outras ocupações duvidosas, até as glamorosas figuras de capas de revista, cinema e televisão. Não faltou quem tivesse o despropósito de aparecer desfantasiado! Barrado na porta, ou arrumava indumentária que fosse, ou não passaria da recepção.

Assim foi e como havia todo tipo de religião mandando ver no pedaço, o casal resolveu agradar a todos: um pastor presbiteriano fez um culto de abertura; um pai-de-santo achegado fez um despacho; um padre rezou uma missa; e depois dos eventos religiosos, o prefeito proferiu um discurso e os convidados em peso depositaram presentes e mais presentes valorizando a comemoração.

Merindo e Florzinha se riam como nunca no palco. Pudera, era babaovo, perueiro, pitaqueiro, puxa-saco, boateiro, caboetas, vassalos, fofoqueiros e similares, de mãos inflamadas a ponto de pegar fogo de tanto aplauso, num cordão de camaradagem sem fim. E como a festa era só para os graduados da cidade, não havia pé rapado, o negócio fedeu além do combinado.

O frevo comeu no centro e no primeiro intervalo Djanirita aparecera como uma artista de cinema, embalada por um concerto de Tchaikovski, sob um holofote e muito brilho. Nego quase perde o queixo de boca aberta. Ela desfilava um vestido longo branco, brilhoso, colado ao corpo bem torneado, um decote acentuado de quase pular os peitos fora e um olhar estonteante de deixar neguinho com as virilhas em ponto de bronca. Que rosto! Quanta beleza esbanjada assim para endoidar os babacas que sentiam logo uma quentura boa nas partes pudendas. Oxe, foi clique para todo lado, num sei quantas máquinas fotográficas apareceram de repente.

- Aquela se num levantar defunto eu cegue!

- Que fantasia é essa dela?

- É de artista de cinema, rapaz!

- É mermo.

Foi um rebuliço, todos queriam tocar-lhe as mãos, a sombra, os gestos. De olhos esbugalhados confirmavam o frisson que ela causava neles. Daí, uns foram logo beliscados, outros entabefados, puxados pela orelha, embolsados, empratados, encadeirados, encurralados, destambocados, empurrados pela ciumeira das esposas, quase acabando a festa no maior bafafá.

Foi nego como a praga a elogiar aquela que remexia todos os bocós presentes, aguçando a doideira dos marmanjos que babavam de dar nojeira nas suas senhoras. Novo renhenhém começava por surgir de se ver cadeira voando no quengo dum, sombrinha nas fuças, empurra-empurra, até que as madamas foram acalmadas e devidamente alojadas para segurança dos maridos inadvertidos!

- Hoje vai sair neguinho com a gaia empenada, por escrever!

Depois de tanto despautério, o locutor para afastar aquele impasse da grande noite, promoveu logo o chamamento da janta, fato que esqueceram a conversa mole com o anúncio do enorme bufê que os esperava.

Gente, dava para mais de dez mil. Os comparecentes avoaram feito praga de gafanhoto e fizeram uma nuvem em direção ao regabofe, devorando tudo em menos de cinco minutos. Alguns esconderam restos de comida nos bolsos, nas bolsas, nas frasqueiras, nos sutiãs, nas sacolas, nas perucas, no solado dos pés, nas meias, nas cuecas, nas calças, nas algibeiras, nos fundos falsos, nos porta luvas, nos estojos, nas mangas das roupas, nos embrulhos, nos biquinis, nas calcinhas, nas camisinhas, nas cartucheiras, nos coldres, nos cós das saias, nos abanhados das calças, nos umbigos, nas cintas anatômicas, nos braceletes, pendurado nas orelhas, entre os dedos dos pés, tudo armazenado para provar a avidez com que a fome devorava a todos.

É nessa hora chega seu Marquito Limeira fantasiado de presidiário gigolô, jovem promissor comerciante que fora convidado pela extensão do Clube dos Lojistas. Convite nominal não fora, mas informaram-no e como um convidado leva cem, ele apareceu acompanhado de uma penca drag espalhafatosa que logo debochara do saque faminto dos comparecentes ferindo a mais descabelada etiqueta.

O Marquito já estava para lá de Bagdad, mais para lá que para cá, trupicando nos próprios calcanhares e mangando até da leseira de Jesus Cristo ficar o tempo todo ali pregado na cruz. Foi uma reviravolta. Quando ele viu Djanirita, ficou branco na hora. O coração desceu-lhe pelo pé, ficou estatelado, hipnotizado. Ela veio-lhe esfuziante, cumprimentou com um boa noite sonoro de mexer-lhe as reminiscências. Mas, ao ver-lhe sem dizer nada, fitou-lhe seriamente e dispensou-lhe um tchau de desdém. Estava embasbacado.

Alguns jovens se aproximaram logo dela delatando algumas doideiras dele. Ela não queria ouvi-los, mas foi insistentemente molestada pelos maus linguarudos que, cientificando-lhes dos maus procedimentos dele, se aproveitavam da situação. O quê? Como é? Pois sim, ele é achegado a uma bicha, fuma uma maconha da gota e gosta de fazer escarcéu em todo canto. Se previna logo, aquilo não é flor que se cheire.

Todos estavam atônitos com aquela indesejável presença. Não que ele fosse violento, não, era um mangador nato inescrupuloso, apenas. 


Para salvação do impasse, o conjunto musical recebera o aceno do promotor do evento e tascou um frevo daqueles de arrepiar a maior danceira que já se viu. Os casais pulavam, rodopiavam e sacudiam os esqueletos, sem largavam mão duma atenção especial para a beleza estupenda de Djanirita e as doidices do Marquito.

Fugindo de seu marasmo o Marquito achou por bem de convidar Djanirita para dançar. Isto só ocorreu depois de uma lengalenga entre as bicholas que incentivou-lo a tal ousadia, convencendo-lhe que ela estava louquinha por ele e sairiam dali namorando firme. Ele esfregou os olhos, recompôs-se de sua embaraçosa mudez, expulsou a timidez e seguiu firme e determinado a convidá-la para a dança. Na presença dela, ele titubeou, quis desistir daquilo, mas já era tarde. E entre gaguejos e amnésias conseguiu balbuciar algo.

- Diga?

- Seria possível a gente dançar?

- Não!

- Por que?

- Porque não.

- Por que?

- Olha, Marquito, já sei tudo sobre você e ainda não esqueci aquele murro que você deu num menino por nada. Ainda estou muito magoada com você.

- Quer dizer que você queria que eu a visse namorando com outro, num beijo na boca, e eu num fizesse nada feito corno conformado, era?

- Não foi nada, a gente era menino, não tinha nada de sério. E além do mais, eu sempre achei você ferro frio, num chegava nem perto de mim, parece que já se debandava para as bichas mesmo, feito agora, marido de veado?

- O quê?

- Isso mesmo, mantenha-se longe de mim, não temos nada, fique lá com as suas mocréias que você só serve mesmo é para veadas loucas. Cai fora.

Aquilo doeu fundo. Bote fundura nisso. Ele ficou imóvel, pálido. Como podia aquela bela mulher usar de tanta grosseria num só momento? Como ela podia acusá-lo de inverdades máximas como aquelas, assim, sem o menor propósito? Ela disse o que disse e saiu impune, desfilando pelo salão. As palavras ferveram na cabeça dele, remoeram por dentro e atiçaram o seu gênio ruim. Fulo da vida, agarrou-se numa garrafa de uísque e bebeu no gargalo. Tonteou, ingeriu mais de meio litro e ficou olhando para todos. Os olhos quase lhe saltavam fora. Estava doido. Ele agarrou-se logo com Dona Irinéia, ríspida professora do Ginásio Municipal e esposa do chatíssimo Dilermando Noguerreira, engenheiro chefe da balança e tráfego da usina Pau Ôco. Agarrado com ela no maior frevo, deu quatrocentos passos para esquerda, mais oitocentos para a direita, deixou a distinta tonta a ponto de lhe soltar a saia e deixar à mostra a caçola bunda rica dela, cheia de babados. Risadagem geral. Eita, o circo começou! Depois ele passou a mão na bunda de Noenélia, deu uma dedada na priquita de Lisandora, pegou nos peitos de Margaridinha, esfregou-se com Joanilda, travou-se com Denaura num agarrado de querer enfiar-lhe a pomba no bregueço dela na frente de todo mundo, amuou-se depois num canto, sozinho, concatenando as ideias ébrias, foi aí que ele, para maior brilho do espetáculo, apossou-se do microfone, fez o conjunto parar depois de um murro na arcada dentária do cantor que esborrachou-se palco abaixo, e desferiu um discurso áspero aos homenageados, levantando podre do cônjuge e insinuando que sua esposa andava partilhando de gentilezas com o motorista do trator.

- E a filha deles é uma quenga que já fodeu com meio mundo de pilantra na capital!

Arrepiou tudo. Depois da inflamação, Marquito depositou um bezerro nos pés da irritadiça dona Crismélia, mandona esposa do passivo juiz de direito, Marcionilo Quenterém, num vômito misturado com comida de hoje, ontem, anteontem e antontontem. As drag subiram ao palco e começaram a fazer um verdadeiro streep tease escrachado e cheio de palavrões, esbugalhando os olhos da nobreza local. Nessa hora, Marquito levou um escorregão e dormiu com a cara enfiada no vômito que se espalhou pra todo lado e em todas as direções, atingindo as damas que, mais providentes, se limpavam dos detritos ocasionados pela náusea do intrépido, deixando um mau cheiro nas mais perfumadas anáguas dali.

Merindo e Florzinha se riam com riso falso, evitando desagrado. Procuraram a filha que se encontrava chorosa num canto escuro do salão. Os convivas, não, não se aguentavam em pé de tão estapafúrdia situação. Foi aí que se ouvira um estampido!

- Quem passou a mão na minha bunda eu mato!

Era o tabelião de notas, Dendinaldo Jacaré, mordido da gôta com raiva e de revólver em punho porque lhe passaram a mão no glúteo.

O escarcéu continuou madrugada adentro de quase não ter fim.

O casal homenageado e a filha coitada saíram dali escoltados pelo batalhão de choque enquanto a polícia descia o cacete para aplacar a fúria etílica dos convidados.

A resenha popular que excomungara a festa pelo não convite participativo, reprovava com todos os tons de indignação aquele feito.

- Bem empregado!

- Era de se esperar, tudo uns luxentos metidos à merda!

- Quanta nojeira, isso é a maior canalhice de grãfinagem!

E a festa entrou no frevo pela perna de pinto e saiu pela perna de pato.

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