domingo, dezembro 12, 2021

GAO XINGJIAN, SUBIRATS, GOMBROWICZ, JULIANA PRZYBYSZ & FÁTIMA QUINTAS

 

 

TRÍPTICO DQP – Nós e as próprias arapucas... - Ao som de And Suddenly It's Evening, Op. 66, (Argo ZRG 2008), da compositora inglesa Elisabeth Lutyens (1906-1983), Herbert Handt, BBC Symphony Orchestra. – E de repente é noite. Agoraté, das máscaras, nenhumencontrei. Perdi todas, inclusive os traços fisionômicos e me tornado um prosopagnósico; ou, talvez, melhor dizendo: acometido de uma fuga dissociativa, acho. Por aí. Nenhuma memória, nem de mim mesmo, nem de nada. Noite sem lua, inclemente breu; e se caminhos havia, não se saberia: às ruas, se esta é minha cidade, passantes estrangeiros de feição nenhuma nem pareciam dali com a cabeça noutro mundo, ou universo paralelo. Tanto perguntei sobre a localidade onde estava e, de um solícito e menos apressado, ouvi por resposta: Ignorance do The phantom tollbooth (Random House, 1988), descoberta pelo escritor estadunidense Norton Juster (1929-2021). Quem? Logo tomei ciência: aqui ninguém fala porque o Eterno Rouba-Palavras toma tudo que sai da boca das pessoas. Além do mais, somos todos atacados pelo ogro dos esforços inúteis e monstro do hábito, o Terrível Trivium; e o Demônio da Insinceridade prende todos os estrangeiros num buraco profundo e nunca diz a verdade nem é o que parece ser. Então, fuja! Como assim? E logo percebi que o meu atencioso interlocutor estava ficando informe, assumindo as proporções de pedra que mais se avolumava formando um pico que emergiu repentinamente. Alguém gritou para que eu corresse, pois se tratava do feroz gigante Gelatinoso. Segui às pressas aquele que me avisou e ao inquiri-lo a respeito insistiu que eu corresse. Por quê? Os três Demônios do Compromisso vinham em círculos e que eu me salvasse do arrogante Sabe-Tudo que é apenas uma boca que só dá informações erradas. Na correria percebi que o meu companheiro ficara mudo e desaparecia a olhos vistos. Como não adiantava perguntalguma, parei e era uma encruzilhada: para onde, não sei. Ouvi pisada e outro pedestre açodado se avizinhou procurando então saber dele: Atvatabar! O quê? The Goddess of Atvatabar: being the history of the discovery of the interior world, and conquest of Atvatabar (Leonaur, 2010) e só depois de longo tempo que ele sumiu foi que entendi tratar-se do lugar das narrativas do escritor irlandês William Richard Bradshaw (1851–1927). Nossa! Lembro que li a respeito de um imenso país subterrâneo que se estende do Canadá ao Equador, e para entrar só se pode se chegar diante de uma enorme caverna cuja entrada é no pólo norte. Parecia mesmo, deu para visualizar lá longe um sol interior que parecia mesmo nunca se pôr e foi quando dei pela presença de transeuntes distantes, bem apessoados em tons amarelo-dourado e carregando máquinas de fazer chover em bicicletas sem rodas. Averiguei bem a paisagem e havia também um ar de aparência com a minha cidade. Aguçando melhor, logo constatei e fiquei impressionado com a aproximação de uma linda mulher que logo se mostrou poeta e me disse trechos que já lera com sotaque conterrâneo: Um desejo incontrolável de transformar a palavra em círios de eterno, de diluir-se em letras como se a marca da escrita representasse o ponto original da existência... A vida latejando nas veias, a fazer-se múltipla, fragmentada, uma; ora uma coisa, ora outra, invariavelmente paradoxal, nunca a mesma... Vulcânica, inquieta, revolta. E em paz... Não, não era louca. E sim, tais palavras já foram por mim lidas, lembro bem, e a certidão delas me ocorreu quando vi entre suas mãos o livro A mulher e a família no final do século XX (Fundaj/Massangana, 2005), da escritorantropóloga Fátima Quintas, autora de uma obra vastíssima e de relevo. Isso mesmo. É você? Ela me sorriu lindamente. Onde estamos? Nem deu tempo para qualquer resposta: Vem! E saímos às pressas por um longo caminho, enquanto eu divagava noutras pensagens entre a mundanidade e o efêmero, a escassez e a aniquilação da coisa, pudibunda situação, lúgubre e decadente, e nada havia para mitigar o iminente, nada mais a fazer porque era tarde demais e o que seria de mim até tombar desacordado não sei onde.

 


A passagem, à noite... - Imagem: Le difficile équilibre de la Justice, da artista francesa Brigitte Nahon. - Restou-me, apenas, solitalteregoutro. Quem? Sequer identifiquei, ser vagantapenas. Sabia-me rejeiçassombro de coisas bem ou malsucedidas no zoohumano – retroexposições etnológicas degradantes, equívocos desdantes, dagora e sempre, no bojalerta dinclusão humanatureza. Valha-me não sei quem! Preferi relaxar, meditabundo: lá fora o barulho da cidade, vozerio, passos. Tive que imprimir a vontade para conseguir meu intento: fechei os olhos, coluna ereta, mãos sobre as coxas, pés equidistantes, respiração profunda. Nada ouvia, não antes aparecer repentinamente lindesconecida: O que sucedia, só por vaga resposta pareceu-me coisa do tipo One Man's Bible: a novel (HarperCollins, 2009), do premiado escritor chinês Gao Xingjian. Não se lembra de mim? Sim, aliás, não. Foi preciso durar o tempo: era Elisabeth, uma judia germana que, em nome do presente, rememorava todas as dores e péssimas lembranças vividas - era a forma que encontrara para ocultar a ausência de liberdade. E depois de muitas coisas contadas, narrou detalhada e veemente o deplorável caso em que fora vítima tantas e muitas vezes: o recorrentestupro sofrido enquanto modelo de um artista. Como pode? Baixou os olhos e afastou-se. Foi até a janela e ali se demorou. Voltou-se outra, era como se fosse o reencontro com Lin que sequer sabia quem, mas revelou-me ter sido o primeiro amor e que hoje casada e muito bem, por sinal, mesmo assim, disse jamais ter-me esquecido e ainda queria desfrutar dos nossos momentos íntimos na sua alma chinesa. Não poderia escapar, jurou-me, enquanto se despia e já se transformava noutra: logo veio de nem saber quem Sylvie – a francesa de espírito livre e nenhuma convicção política, a desabafar suas experiências emotivas. Desnuda, deitou-se ao meu lado, passou o braço sobre o meu peito e, o outro, sobre o meu sexo, enquanto me contava da morte da mãe e de uma amiga, e de como tudo isso afetou sua vida profundamente. Por consolo, mencionei que da minha família também poucos ou quase ninguém mais restava. Levantou-se de repente e comiserada, abriu uma bolsa sobre o divã e me entregou dois livros: A Montanha da Alma (Dom Quixote, 2002) e Uma Cana de Pesca para o Meu Avô (Dom Quixote, 2001). Recostei-me na poltrona e comecei a ler o primeiro. Enquanto lia, ela acomodou-se apoiada entre as minhas coxas. Foi aí que ela me falou do escritor e dramaturgo polaco Witold Gombrowicz (1904-1969): A normalidade é um equilibrista no abismo da anormalidade. Quantas loucuras escondidas a ordem diária contém! Quem entre nós saberia admirar grandes gênios, se na escola não lhe tivesse ensinado que são grandes gênios? Não se deixe enganar pela sua própria sabedoria... O que tinha a ver com os livros, nada. Ué? Fitei-a profunda e demoradamente. Logo ela se levantou para complementar: Excelente! Escrevi algo estúpido, mas não assinei contrato com ninguém para produzir obras apenas sábias e perfeitas. Eu dei vazão à minha estupidez... e aqui estou eu, renascida... Indaguei se havia algum problema atormentando-a. E a resposta seca, usando das palavras do filósofo espanhol itinerante, Eduardo Subirats: Depende de quem está olhando. Se você é uma alma sensível, uma inteligência desperta e uma consciência resplandecente de sua própria existência, ou seja, um espírito romântico, encontrará um livro para navegar nas águas profundas do coração poético do Brasil e da América Latina, que hoje morrendo em um mundo burocrático e moribundo. Este livro nada mais é do que isso: uma viagem pelo imaginário latino-americano do século XX, escrita por um filósofo hispano-alemão itinerante que se exilou nas Américas... Quase interrompo e daí, preferi calar. Referia-se ela agora à obra A penúltima visão do paraíso: ensaios sobre memória e globalização (Studio Nobel, 2001). Inquieto: o que queria dizer? É tarde. E vestiu-se apressada como quem fugia dalgum delito. Fiquei só com as leituras e me rendi ao sono.

 


Paradoxia & adúlteros anônimos... - Um sonho medonho fez predomínio, a ponto de despertar um tanto atordoado com a panorâmica equivocada e nada libertária: era a convergência entre o vetusto liberalismo ao doentio conservadorismo, a monumental vigência da animalidade e do artifício. Que coisa! Estava encurralado com meu desavergonhado paganismo, sabia. Do que foi de tortuoso e anômalo, a perspectiva impressa estava assentada na escatologia repugnante. Nada mais restava e nem tinha para onde ir. A surpresa dela ao chegar às pressas e sobrecarregada de livros e sacolas, foi para lá de alvissareira. Como um tornado avassalador, ela me beijou recitando um trecho do Lives of Wives (Londres: Cassell, 1939), da Laura Riding: Na hora da cama só se conhece vertigem... Voltou-se à mesa da sala ignota, arrumando o que trouxera, enquanto dizia do The Idea of God - Essays from Epilogue (Carcanet, 2001): Que segundo amor ela poderia fazer com o seu primeiro amor arruinado? O segundo amor que a maioria das mulheres faz do primeiro amor pelos maridos surge de uma tristeza mútua e tácita tanto no marido quanto na esposa, de que ele é apenas em raros momentos o homem que ambos gostariam que ele fosse... O que quer dizer com essa citação? Virou-se para mim e complementou: Eu então diria que existem dois tipos de sentimento. A primeira é sentir no sentido de concentrar suas emoções em algo imediatamente disponível para sua compreensão: você faz sua compreensão a partir das emoções que tem a respeito. A segunda é sentir no sentido de ser afetado sem tentar compreender: algo se sente, você não sabe o quê, e é mais importante sentir do que tentar compreender, pois uma vez que você tenta compreender você não mais sentir isso... Estava assaz enigmática e prosseguiu com a tarefa de colocar os volumes nas estantes e armários nunca vistos antes. Depois, mãos às costas, esforçou-se em escorregar o zíper do vestido e foi se desnudando. Tomava com isso as aparências da bailarina e atriz suíça Ursula Vian-Kübler (1928-2010), para pretextar do polímata francês Boris Vian (1920-1959): Sexualmente, quer dizer, com a minha alma. Seria melhor aprender a fazer amor corretamente, em vez de nos embrutecermos com um livro de história... E enquanto se despia dançante arrematou: O trabalho é o ópio do povo, e eu não quero morrer drogada... Já completamente nua, dirigiu-se à estante e pegou uma encadernação espiralada. Mostrou-me de longe e era a tese acadêmica Nem santas nem putas, apenas mulheres: espacialidades de mulheres prostitutas de baixa renda no exercício de maternagens em Ponta Grossa – PR -, da professora doutora Juliana Przybysz. Abriu uma página e leu da conclusão: Quando a mulher assume o papel de sustento dos filhos, não seguindo o padrão da família tradicional e ainda escolhe a prostituição como forma de sustento há uma soma de condições de estigmas e marginalização feminina. A dificuldade em terminar os estudos, a situação de pobreza e a necessidade de sustentar os filhos sozinhas, é o que levou a escolha da prostituição. Há uma soma de fatores e a escolha ou não da prostituição vai estigmatizar estas mulheres de qualquer forma, pois a falta de um emprego leva a dificuldade de sustento dos filhos, tornando-as 'más' mães e a escolha da prostituição para então conseguir sustentar os filhos, ainda sim, torna-as 'más' mães. Entendeu? Aguardei para que dissesse a razão daquilo, ao me chamar a atenção para ouvir a dedicatória constante no texto: Dedico esta tese a todas as putas, prostitutas, profissionais do sexo, garotas de programa que tive o prazer de encontrar, conhecer e conviver nesta trajetória, que não se acaba aqui. Dedico esta tese a todas aquelas prostitutas que nos deixaram, que durante estes quatro anos de pesquisa perderam a batalha para a AIDS e para a violência. Dedico também a todas as putas que eu tive o prazer de conviver em Barcelona. “Somos todas putas”. E sorriu, largando o volume sobre a mesa e correndo nua para me agarrar aos beijos toda com seu jeito da cantorescritoratriz estadunidense Lydia Lunch: Eu sou uma buscadora total de prazer. Não busco nada que me satisfaça. Eu geralmente me entendo. Tenho necessidades específicas e sei quais são para poder obter satisfação... E se entregou profusa e me fez rolar por seus caprichos, carícias e horas, e o que foi preciso para que dali pudéssemos enfim usufruir o máximo da vida. Merecíamos, insistia: Vamos viver e muito mais. Até mais ver.

 

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CHRISTINA VASSILEVA, KATHERINE JOHNSON, MARTÍN-BARÓ, JOÃO CABRAL & MATA SUL INDÍGENA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Mistérios do Rio Lento (The Voice of Lyrics, 1998), Santiago de Murcia: a portrait (Frame,...