TRÍPTICO DQP – Nós e as próprias arapucas... - Ao
som de And Suddenly It's Evening, Op. 66, (Argo ZRG 2008), da compositora
inglesa Elisabeth Lutyens (1906-1983),
Herbert Handt, BBC Symphony Orchestra. – E de repente é noite. Agoraté, das
máscaras, nenhumencontrei. Perdi todas, inclusive os traços fisionômicos e me
tornado um prosopagnósico; ou, talvez, melhor dizendo: acometido de uma fuga
dissociativa, acho. Por aí. Nenhuma memória, nem de mim mesmo, nem de nada. Noite
sem lua, inclemente breu; e se caminhos havia, não se saberia: às ruas, se esta
é minha cidade, passantes estrangeiros de feição nenhuma nem pareciam dali com
a cabeça noutro mundo, ou universo paralelo. Tanto perguntei sobre a localidade
onde estava e, de um solícito e menos apressado, ouvi por resposta: Ignorance
do The phantom tollbooth (Random
House, 1988), descoberta pelo escritor estadunidense Norton Juster (1929-2021). Quem? Logo tomei ciência: aqui ninguém
fala porque o Eterno Rouba-Palavras toma tudo que sai da boca das pessoas. Além
do mais, somos todos atacados pelo ogro dos esforços inúteis e monstro do
hábito, o Terrível Trivium; e o Demônio da Insinceridade prende todos os
estrangeiros num buraco profundo e nunca diz a verdade nem é o que parece ser. Então,
fuja! Como assim? E logo percebi que o meu atencioso interlocutor estava ficando
informe, assumindo as proporções de pedra que mais se avolumava formando um
pico que emergiu repentinamente. Alguém gritou para que eu corresse, pois se
tratava do feroz gigante Gelatinoso. Segui às pressas aquele que me avisou e ao
inquiri-lo a respeito insistiu que eu corresse. Por quê? Os três Demônios do Compromisso
vinham em círculos e que eu me salvasse do arrogante Sabe-Tudo que é apenas uma
boca que só dá informações erradas. Na correria percebi que o meu companheiro
ficara mudo e desaparecia a olhos vistos. Como não adiantava perguntalguma, parei
e era uma encruzilhada: para onde, não sei. Ouvi pisada e outro pedestre
açodado se avizinhou procurando então saber dele: Atvatabar! O quê? The Goddess
of Atvatabar: being the history of the discovery of the interior world, and
conquest of Atvatabar (Leonaur, 2010) e só depois de longo tempo que ele sumiu
foi que entendi tratar-se do lugar das narrativas do escritor irlandês William Richard Bradshaw (1851–1927). Nossa!
Lembro que li a respeito de um imenso país subterrâneo que se estende do Canadá
ao Equador, e para entrar só se pode se chegar diante de uma enorme caverna
cuja entrada é no pólo norte. Parecia mesmo, deu para visualizar lá longe um sol
interior que parecia mesmo nunca se pôr e foi quando dei pela presença de
transeuntes distantes, bem apessoados em tons amarelo-dourado e carregando
máquinas de fazer chover em bicicletas sem rodas. Averiguei bem a paisagem e
havia também um ar de aparência com a minha cidade. Aguçando melhor, logo
constatei e fiquei impressionado com a aproximação de uma linda mulher que logo
se mostrou poeta e me disse trechos que já lera com sotaque conterrâneo: Um
desejo incontrolável de transformar a palavra em círios de eterno, de diluir-se
em letras como se a marca da escrita representasse o ponto original da
existência... A vida latejando nas veias, a fazer-se múltipla, fragmentada,
uma; ora uma coisa, ora outra, invariavelmente paradoxal, nunca a mesma...
Vulcânica, inquieta, revolta. E em paz... Não, não era louca. E
sim, tais palavras já foram por mim lidas, lembro bem, e a certidão delas me ocorreu
quando vi entre suas mãos o livro A mulher e a família no final do século XX
(Fundaj/Massangana, 2005), da escritorantropóloga Fátima Quintas, autora de uma obra vastíssima e de relevo. Isso
mesmo. É você? Ela me sorriu lindamente. Onde estamos? Nem deu tempo para
qualquer resposta: Vem! E saímos às pressas por um longo caminho, enquanto eu
divagava noutras pensagens entre a mundanidade e o efêmero, a escassez e a
aniquilação da coisa, pudibunda situação, lúgubre e decadente, e nada havia para mitigar o iminente, nada mais a fazer
porque era tarde demais e o que seria de mim até tombar desacordado não sei
onde.
A passagem, à noite... - Imagem:
Le difficile équilibre de la Justice, da artista francesa Brigitte Nahon. - Restou-me, apenas, solitalteregoutro. Quem?
Sequer identifiquei, ser vagantapenas. Sabia-me rejeiçassombro de coisas bem ou
malsucedidas no zoohumano – retroexposições etnológicas degradantes, equívocos
desdantes, dagora e sempre, no bojalerta dinclusão humanatureza. Valha-me não
sei quem! Preferi relaxar, meditabundo: lá fora o barulho da cidade, vozerio,
passos. Tive que imprimir a vontade para conseguir meu intento: fechei os
olhos, coluna ereta, mãos sobre as coxas, pés equidistantes, respiração
profunda. Nada ouvia, não antes aparecer repentinamente lindesconecida: O que
sucedia, só por vaga resposta pareceu-me coisa do tipo One Man's Bible: a novel
(HarperCollins, 2009), do premiado escritor chinês Gao Xingjian. Não se lembra de mim? Sim, aliás, não. Foi preciso
durar o tempo: era Elisabeth, uma judia germana que, em nome do presente,
rememorava todas as dores e péssimas lembranças vividas - era a forma que
encontrara para ocultar a ausência de liberdade. E depois de muitas coisas
contadas, narrou detalhada e veemente o deplorável caso em que fora vítima
tantas e muitas vezes: o recorrentestupro sofrido enquanto modelo de um
artista. Como pode? Baixou os olhos e afastou-se. Foi até a janela e ali se
demorou. Voltou-se outra, era como se fosse o reencontro com Lin que sequer
sabia quem, mas revelou-me ter sido o primeiro amor e que hoje casada e muito
bem, por sinal, mesmo assim, disse jamais ter-me esquecido e ainda queria
desfrutar dos nossos momentos íntimos na sua alma chinesa. Não poderia escapar,
jurou-me, enquanto se despia e já se transformava noutra: logo veio de nem
saber quem Sylvie – a francesa de espírito livre e nenhuma convicção política,
a desabafar suas experiências emotivas. Desnuda, deitou-se ao meu lado, passou
o braço sobre o meu peito e, o outro, sobre o meu sexo, enquanto me contava da
morte da mãe e de uma amiga, e de como tudo isso afetou sua vida profundamente.
Por consolo, mencionei que da minha família também poucos ou quase ninguém mais
restava. Levantou-se de repente e comiserada, abriu uma bolsa sobre o divã e me
entregou dois livros: A Montanha da Alma (Dom Quixote, 2002) e Uma Cana de Pesca
para o Meu Avô (Dom Quixote, 2001). Recostei-me na poltrona e comecei a ler o
primeiro. Enquanto lia, ela acomodou-se apoiada entre as minhas coxas. Foi aí
que ela me falou do escritor e dramaturgo polaco Witold Gombrowicz (1904-1969): A normalidade é um equilibrista no
abismo da anormalidade. Quantas loucuras escondidas a ordem diária contém! Quem
entre nós saberia admirar grandes gênios, se na escola não lhe tivesse ensinado
que são grandes gênios? Não se deixe enganar pela sua própria sabedoria... O
que tinha a ver com os livros, nada. Ué? Fitei-a profunda e demoradamente. Logo
ela se levantou para complementar: Excelente! Escrevi algo estúpido, mas não
assinei contrato com ninguém para produzir obras apenas sábias e perfeitas. Eu
dei vazão à minha estupidez... e aqui estou eu, renascida... Indaguei se havia
algum problema atormentando-a. E a resposta seca, usando das palavras do
filósofo espanhol itinerante, Eduardo
Subirats: Depende de quem está olhando. Se você é uma alma sensível, uma
inteligência desperta e uma consciência resplandecente de sua própria
existência, ou seja, um espírito romântico, encontrará um livro para navegar
nas águas profundas do coração poético do Brasil e da América Latina, que hoje
morrendo em um mundo burocrático e moribundo. Este livro nada mais é do que
isso: uma viagem pelo imaginário latino-americano do século XX, escrita por um
filósofo hispano-alemão itinerante que se exilou nas Américas... Quase
interrompo e daí, preferi calar. Referia-se ela agora à obra A penúltima visão
do paraíso: ensaios sobre memória e globalização (Studio Nobel, 2001). Inquieto:
o que queria dizer? É tarde. E vestiu-se apressada como quem fugia dalgum
delito. Fiquei só com as leituras e me rendi ao sono.
Paradoxia & adúlteros anônimos... - Um sonho
medonho fez predomínio, a ponto de despertar um tanto atordoado com a
panorâmica equivocada e nada libertária: era a convergência entre o vetusto
liberalismo ao doentio conservadorismo, a monumental vigência da animalidade e
do artifício. Que coisa! Estava encurralado com meu desavergonhado paganismo,
sabia. Do que foi de tortuoso e anômalo, a perspectiva impressa estava
assentada na escatologia repugnante. Nada mais restava e nem tinha para onde
ir. A surpresa dela ao chegar às pressas e sobrecarregada de livros e sacolas, foi
para lá de alvissareira. Como um tornado avassalador, ela me beijou recitando um
trecho do Lives of Wives (Londres: Cassell, 1939), da Laura Riding: Na hora da cama só se conhece vertigem... Voltou-se à
mesa da sala ignota, arrumando o que trouxera, enquanto dizia do The Idea of
God - Essays from Epilogue (Carcanet, 2001): Que segundo amor ela poderia fazer
com o seu primeiro amor arruinado? O segundo amor que a maioria das mulheres
faz do primeiro amor pelos maridos surge de uma tristeza mútua e tácita tanto
no marido quanto na esposa, de que ele é apenas em raros momentos o homem que
ambos gostariam que ele fosse... O que
quer dizer com essa citação? Virou-se para mim e complementou: Eu então diria
que existem dois tipos de sentimento. A primeira é sentir no sentido de
concentrar suas emoções em algo imediatamente disponível para sua compreensão:
você faz sua compreensão a partir das emoções que tem a respeito. A segunda é
sentir no sentido de ser afetado sem tentar compreender: algo se sente, você
não sabe o quê, e é mais importante sentir do que tentar compreender, pois uma
vez que você tenta compreender você não mais sentir isso... Estava assaz enigmática e prosseguiu com a tarefa de
colocar os volumes nas estantes e armários nunca vistos antes. Depois, mãos às
costas, esforçou-se em escorregar o zíper do vestido e foi se desnudando. Tomava
com isso as aparências da bailarina e atriz suíça Ursula Vian-Kübler (1928-2010), para pretextar do polímata francês Boris Vian (1920-1959): Sexualmente,
quer dizer, com a minha alma. Seria melhor aprender a fazer amor corretamente,
em vez de nos embrutecermos com um livro de história... E enquanto se despia dançante
arrematou: O trabalho é o ópio do povo, e eu não quero morrer drogada... Já completamente nua, dirigiu-se à estante e pegou uma
encadernação espiralada. Mostrou-me de longe e era a tese acadêmica Nem santas
nem putas, apenas mulheres: espacialidades de mulheres prostitutas de baixa
renda no exercício de maternagens em Ponta Grossa – PR -, da professora doutora
Juliana Przybysz. Abriu uma página e
leu da conclusão: Quando a mulher assume o papel de sustento
dos filhos, não seguindo o padrão da família tradicional e ainda escolhe a prostituição
como forma de sustento há uma soma de condições de estigmas e marginalização
feminina. A dificuldade em terminar os estudos, a situação de pobreza e a
necessidade de sustentar os filhos sozinhas, é o que levou a escolha da
prostituição. Há uma soma de fatores e a escolha ou não da prostituição vai
estigmatizar estas mulheres de qualquer forma, pois a falta de um emprego leva
a dificuldade de sustento dos filhos, tornando-as 'más' mães e a escolha da
prostituição para então conseguir sustentar os filhos, ainda sim, torna-as
'más' mães. Entendeu? Aguardei para que dissesse a razão daquilo, ao me
chamar a atenção para ouvir a dedicatória constante no texto: Dedico esta tese a todas as putas,
prostitutas, profissionais do sexo, garotas de programa que tive o prazer de
encontrar, conhecer e conviver nesta trajetória, que não se acaba aqui. Dedico
esta tese a todas aquelas prostitutas que nos deixaram, que durante estes
quatro anos de pesquisa perderam a batalha para a AIDS e para a violência.
Dedico também a todas as putas que eu tive o prazer de conviver em Barcelona. “Somos
todas putas”. E sorriu, largando o volume sobre a mesa
e correndo nua para me agarrar aos beijos toda com seu jeito da cantorescritoratriz
estadunidense Lydia Lunch: Eu sou
uma buscadora total de prazer. Não busco nada que me satisfaça. Eu geralmente
me entendo. Tenho necessidades específicas e sei quais são para poder obter
satisfação... E se
entregou profusa e me fez rolar por seus caprichos, carícias e horas, e o que
foi preciso para que dali pudéssemos enfim usufruir o máximo da vida. Merecíamos,
insistia: Vamos viver e muito mais. Até mais ver.
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