CARTA DE AGOSTO - A chuva lava a minha alma deserdada. Cada
pingo uma lembrança, a cachoeira da memória. A precária imaginação irrompe para
meu desalento: da minha terra com seus muitos riachos num só caudal - o Una.
Nada muda nessas paragens, caem todos por terra, vencidos e conquistados,
genuflexos, e eu ao deus dará, percursos e percalços, suando a camisa e às
pressas inimigas da perfeição: tudo muito aquém, só cabeça de menino de coração
velho, combalido, fora de hora. Digamos, liliputiano sem guarida, falações e
menosprezo, como era de se esperar. Nunca poderia ter sido nada além do que
sou, não me parecia jamais pudesse ser uma mina de ouro: um extravagante carregado
de precoce heterodoxia e dado à vida prosaica. Muito menos poderia me salvar do
defeito fatal de avesso às expectativas paternais que me queriam uma
proeminente unanimidade, como se pudesse ser diferente. Fui regiamente
agraciado com a parte que me cabia de sova na vida, surras memoráveis de quase
aniquilado, engolir pílulas amargas, sair rolando pela escadaria, a desconhecer
da glória e aplauso, nunca quis a fama imorredoura, melhor o desprezo mesmo,
sem embargo, aborrecia muitos. Via de regra, cresci e me criei desapadrinhado:
nunca alimentei esperanças de me tornar um ensoberbecido triunfante, aprendia
com a vida as lições do fracasso e a orar pelo pão nosso de cada dia. Sabia
sucumbente às inanidades da existência. Como um urso aprisionado numa jaula, sempre
busquei de livres paragens: pretendia por mais de tantas vezes largar tudo e, taciturno
irrequieto, trilhar qualquer caminho e sem saber nem para onde ir, sensações
rebeldes no coração ateado por irregulares pensamentos e hábitos. Esse sou eu
nessa chuva torrencial. Apesar das sucessivas quedas e imprevidência, nunca
invejei os afortunados ou não, comiserava de vê-los tão atarefados com os seus negócios,
enquanto eu padecia com a desgraça das crianças sem lar refugiadas nas lamas da
miséria. Enquanto saudavam felizes as celebrações de engalanado natal, outros
minguavam sem esperança na derrocada da fome. Não, não. Eu me molho na chuva,
lavo a alma. Apesar de tudo, ambicionei sim, um mundo melhor para mim e todos.
Hoje quase me vejo um velho cínico enojado com esse mundo de hipocrisia humana,
coitados, e eu sequer tenho como prover o meu próprio sustento. Nunca seria um
grande homem, graças a Deus. Sempre preferi o inexpressível, o inexprimível, o
visinvisível: o sorriso inocente da meninada, a calmaria de um rio profundo, a
flor desabrochando no jardim, a dança das estrelas ao luar. Por conhecer o
amor, desconheci muitas leis e coisas. E se fui poupado dos escândalos, ainda
bem, meus olhos cobiçosos sempre seguiram em muitas direções. A mim o prazer da
tortura de amar, não mais que um cadáver ambulante solidário com os apenados
que desdenham a felicidade material desse mundo. Junto meus trapos e já vou
sozinho, passos cambaleantes, entre beijos e abraços antigos que renovam um dia
quase perdido pelas dores extirpadas de quase não ter jeito de passar, como
quem dança para quem saiba amar. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] O céu como um envoltório do mundo e espaço
onde brilham os astros, não preocupa muito os camponeses nem os marinheiros.
Enquanto o Sol, a Lua, as estrelas e os meteoros suscitam uma literatura
abundante, sendo objeto de superstições e observações variadas, a curiosidade
popular parece não se estender à abobada celeste. [...] Em 30 de novembro de 1852, foi criada a
comissão examinadora dos livros vendidos por ambulantes. O objetivo declarado
dessa instituição é pôr fim a quatro séculos de difusão pelo interior, pelos
caixeiros-viajantes de livraria, de uma infinidade de livrinhos. Essa
literatura popular, também denominada “literatura azul”, é considerada
perniciosa: pode ser uma má influencia para os espíritos. Nessa produção, os
almanaques, pelo número e pela antiguidade, ocupam uma posição importante. Quase
todos acabaram, depois de proibidos pela comissão. [...] Desde sua publicação, em 1494, durante o
Carnaval, o Nef des fous, do humanista alemão Sebastian Brant (1458-1521), teve
um sucesso retumbante, tanto na Alemanha como no resto da Europa, como atestam
plágios e traduções. O autor faz todos os loucos da terra das delícias
embarcarem numa estranha nau que ruma para a “Bobagônia”, o reino da loucura.
Representantes de todas as classes sociais embarcam na Nau dos insensatos. A
cada um dos loucos, personificando um vício humano, é consagrado um capítulo.
Brant não podia deixar de falar na loucura de querer conhecer o céu. [...]
Trechos
extraídos da obra O céu, mistério, magia
e mito (Galimard, 1987), do astrônomo, historiador
e matemático Jean-Pierre Verdet. Veja mais aqui.
A POESIA DE LAURA RIDING
QUASE – Obscuridade quase expressa / que
nunca foi ainda mas sempre / era para ser a próxima e a próxima / caso o lapso
do ontem no amanhã / fosse reparado pelo menos até já, - pelo menos até já, até
ontem - / caos quase reconquistado / sem que a verdade, dessa vez / decaísse ou
progredisse - / o que há de novo? Qual é? / você nunca foi ainda / ou eu que
nunca sou até?
TERRA – Não tema tanto pela Terra: / seu nome
universal é “Lugarnenhum”. / Se é Terra para você, segredo seu. / Os registros
externos param ali, / e você pode descrevê-la como parece, / e como parece,
sê-la, / pretensa pausa / em meio à pretensa pressa.
SEM TÍTULO – Não é um muro, não é um poeta.
Não é um muro de mentira, não é uma palavra de mentira. É um limite escrito do
tempo. Não ultrapasse, ou em minha boca, meus olhos, você vai despencar. Chegue
perto, encare e olhe bem através de mim, fale enquanto você vê. Mas, oh,
rebanho de vidas totalmente apaixonadas, não ultrapasse agora. Senão em minha
boca, em meus olhos, vocês hão de cair, e não ser mais vocês.
Poemas da
obra The Poemas of Laura Riding
(Persea, 1980), da poeta estadunidense Laura
Riding (1901-1991), traduzidos por Rodrigo Garcia Lopes. Veja mais aqui e aqui.
A ARTE
DE SILVELENA GOMES
Quase toda ilustração nasce ou de uma profunda reflexão dolorosa ou de
um sentimento de necessidade da representação.
Desenho o que não consigo encontrar, crio o que não foi criado antes para
mulheres como eu. O feminismo de modo geral, em certas ocasiões, não consegue
abarcar as mulheres negras, gordas e lésbicas. Retratá-las é ir de
encontro a toda uma lógica visual de representação. É me ver, dar olhos e
assumir as próprias falhas, dores e vontades.
A arte da ilustradora e
estudante de Publicidade, Silvelena
Gomes. Veja mais aqui.
A OBRA DE IÇAMI TIBA
A felicidade é saber usufruir muito bem o que
se tem, sem ficar sofrendo pelo o que não se tem, é a boa autoestima que permiti
viver com esse feliz equilíbrio.