TRÍPTICO DQC: UM PASSO DE CADA VEZ NA
FOGUEIRA DO MUNDO (PARAFRASEANDO JACKSON POLLOCK) - Ao som do álbum Torcendo a
terra (2017), do violonista Ricardo Herz Trio. - Escrevo. Escrevo sem rascunhos. E, para falar a verdade,
não estou bem certo do que escrevo. Só escrevo. Só depois de pronto, às vezes,
vejo. Não sei bem o que faço, sei que escrevo, e isso é só, apenas. Essa a
minha forma de existir, escrevo porque é a minha vida, meu ato de estar só e
viver. Deixo correr, minha cabeça é uma bagunça, depois organizo, ou deixo como
estiver. Tento ordenar, mas deixo que flua livre e tão somente. Assim abordo o
minúsculo mundo ao meu redor; tentando, a partir dessa miniatura, enxergar tudo
que há pelas imensidões, o que há e não. O que invento pode ser tido por
perturbador: é o que me sai, talvez seja um monstro ou muitos o que habita em mim,
os meus tantos e muitos eus e as suas brincadeiras de criança. Apenas brinco
como o menino que sempre fui e nunca deixei de ser. Talvez tenha uma noção geral,
o resultado é imprevisível. Só se sabe do que se brinca e eu brinco só. Não
tenho amigos: o de verdade sabe de tudo que pensamos com uma única palavra, mínima
frase. O que falo ninguém entende. Hoje as pessoas me entediam e, às vezes, me
assustam, muito embora tenha visto muita coisa de arrepiar. Chegou uma hora que
não conheço mais ninguém, coisas que vi de me fazer ficar na concha. O ser
humano é mesmo muito estranho. Cada coisa! Não sei o que realizei, acho que
nada, ou se algo, com certeza, nada demais. Não importa quantas palavras sejam
jogadas ou ditas, vale apenas o que ficou dito, isso por bem ou mal. Tento contar
uma história. Nunca temi nada, nem de mudar, iconoclasta sou, isso eu sei de
mim. Não ligo pra moda nem pra convenção disso ou daquilo, não há o que me
representa nem quero representar nada. A literatura é uma forma de morrer, como
toda arte. Pra falar a verdade ainda nem sei mesmo da literatura porque não escrevo
a natureza, eu sou ela, minha autodescoberta. Escrevo o que sou, meu estado de
ser. Como só sei o que sou, não sei o que gostaria de ser. Sou um eterno
estudante e ouço Pollock dizer: Amor é amizade transformada em música. É isso, em tudo que faço e vejo e toco e
sinto: há muita música.
DOIS: CELEBRAÇÃO
DE NADA - Imagem do pintor expressionista abstrato americano Jackson Pollock
(1912-1956), ao som da Symphony nº.1 in D-major (1901),
do compositor, violinista, maestro e teórico mexicano Julián Carrillo (1875-1965),
com a L'Orchestre
Lamoureux. - Da minha janela posso ver: estão todos à mesa
num salão sofisticado, o palco para o absurdo, a arena para o ritual de
agressões: a fala oculta sentimentos, uma batalha corrosiva para provar que
cada um é melhor que o outro. Há quem comemore aniversário de matrimônio ou
sucesso pessoal. Há quem felicite as bodas escondendo a grosseria insensível e
a afetação vulgar, afora relacionamentos incestuosos. Há quem destile asco
pelos perdedores e fracassados, fedorentos miseráveis. Há quem julgue
aquelaquele segundo seu próprio juízo. Há muito mais e entre eles não se
economiza sarcasmo e agressão, assim entre endinheirados individualistas e
solitários, entre os que se acham melhores e os estúpidos, uns aos outros a se
meterem na vida alheia para suprir suas próprias falências. Que haja maitres e maitresses solícitos e sorridentes para servi-los e quantos
garçons, inclusive um mitômano para interferir com as façanhas avoengas e
soltar pilhérias para risadagem folgada. Há quem se embriague senão todos nas
embaraçosas situações, quanta alienação e hipocrisia, o ridículo e a estupidez,
a superficialidade e o esfacelamento das aparências, a cumplicidade na mentira.
Entre si o que é o mundo? O que você fizer dele, joga no ventilador. O sentido
da vida? Nenhum, afora o escracho de ter o que tem sobre os que nada possuem,
matando de inveja. Quanta falsidade, tantas obsessões, sexo, dinheiro, poder, o
desrespeito consigo próprio e com os outros é muito maior. Não há razão para direitos
humanos, nem necessidade de liberdade de pensamento, todos donos da razão e os
demais equivocados. Celebrar o quê mesmo? O fracasso humano e do mundo. A saída?
Só a imaginação. É o que sugere o dramaturgo, ator, poeta, roteirista, ativista
político britânico e Prêmio Nobel de Literatura de 2005, Harold
Pinter (1930-2008), na sua Celebração
(2000): Não existem distinções rígidas
entre o que é real e o que não é, tampouco entre o que é verdadeiro e o que é
falso. Uma coisa não é necessariamente verdadeira ou falsa; ela pode ser
verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Às vezes você sente que tem a verdade de um
momento nas mãos, então ela escapa pelos seus dedos e se perde. Eu acho que nós
até comunicamos muito bem, no nosso silêncio, no que não é dito, e que o que
ocorre é uma evasão contínua, enquanto tentamos desesperadamente manter-nos a
nós próprios para nós próprios. A comunicação é muito alarmante. Entrar na vida
de outra pessoa é algo assustador. Divulgar aos outros a pobreza que está
dentro de nós é uma possibilidade muito assustadora. O passado é tudo aquilo
que você lembra, imagina que se lembra, se convence que se lembra, ou finge que
se lembra. Para mim, nenhuma celebração
possível. E José Martí me diz
severamente: Quem não
se sentir ofendido com a ofensa feita a outros homens, quem não sentir na face
a queimadura da bofetada dada noutra face, seja qual for a sua cor, não é digno
de ser homem. Uma pitada de poesia é suficiente para perfumar um século inteiro. Sim,
só a poesia tornará a vida suportável.
TRÊS: AMANTE NA VIDA SEM FRONTEIRAS - Imagem: arte do fotógrafo
estadunidense Vincent Serbin, ao som Concert Live at Colorado Brazil Fest 2014, do compositor, arranjador, professor e violonista Alessandro
Penezzi. - A ausência dela,
o que me faz falta, há dias não aparece. Ela ainda não chegou, nem sei se virá.
Talvez, nunca mais. Não sei. Na solidão ouço o escritor e jornalista italiano Dino Buzzati (1906-1972): Tudo se esvai, os homens, as estações, as
nuvens; e não adianta agarrar-se às pedras, resistir no topo de algum escolho,
os dedos cansados se abrem, os braços se afrouxam, inertes, acaba-se arrastado
pelo rio, que parece lento, mas não para nunca. Acreditamos que à nossa volta
existem criaturas semelhantes a nós e, ao contrário, só há gelo e pedras que
falam uma língua estranha; nos preparamos para cumprimentar um amigo, mas o
braço recai inerte, o sorriso se apaga, porque percebemos que estamos
completamente sós. Os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre
distantes; que, se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode
tomar para si uma mínima parte dela; que, se alguém sofre, os outros não vão
sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso o que causa a solidão
da vida. Olho a janela, imagino a porta se abrindo e ela se
achegando como costumeiramente. Acho que não será dessa vez. Lembro o que me dissera Ismail Kadaré: Podemos escavar com facilidade o seu solo,
mas penetrar sua alma, isso jamais. A minha está com todas as demais, eu sinto,
sou todos e sinto essa imensa solidão desde não sei quando. Foi o que me disse o
escritor islandês Arnaldur Indriðason:
A história da humanidade nada mais foi do que uma
sucessão de crimes e infortúnios... Bem, é também uma sucessão de mentiras inteligentemente
construídas. A verdade e as mentiras são apenas meios para um fim. Sei disso porque vivi tudo isso, está em
mim, minha pele, meu coração, minha vida, desde sempre. Sou do primevo ao que
acabou de nascer, seu choro arrebentando o futuro que começou agora acordando a
noite. Só sinto a falta dela, não apareceu e fiquei só no mundo. Até mais ver.
A ARTE DE CÍCERO DIAS
Num clarão estranho, rompendo tudo, num ruído metálico de suas grandes
asas, os poderosos arcanjos vão paliando pelas costas do Nordeste os corais.
Corais e mais corais. Belos, rosas, vermelhos. Sabiam da luz das estrelas.
Estrelas cadentes, bem vivas, a mostrar o caminho da vida eterna. E, ao abrigo
de uma esfera celeste, colorida de um azul de anil, as formas e as cores se
ajustavam.
A arte
do pintor Cícero Dias (1907-2003). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui
& aqui.