TRÍPTICO DQC: QUADROS DO ENSAIO (LENDO
BOULEZ) - Ao som de Répons - dois
pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica (1980-84), de Pierre Boulez, Ensemble intercontemporain,
conduct Matthias Pintscher. – Solidão, ah, solitude: as lembranças no pequeno
cortejo dos antepassados, um diálogo de sombra dupla para quem experimentou as
necessidades da época, a minha e dos demais. Sou eu, perfil único e
insubstituível, e outro eu mesmo dos muitos eus que sou na fluidez dos devires.
Se poesia, não sei; ausência, álbum em cotejo. Não sei com precisão, solto rabisco
no imprevisto um esboço de mensagens de nenhum sentimento, o que me toca e
toco, o conflito, fragmento, e sucessões de pedaços de mim se revelam na narrativa
escorrida a disparar ao incerto, porque eu dobrei de acordo com a dobra do
rosto nupcial, um martelo sem mestre e o inconcluso. Nem a morte, a vida.
Renasço e persigo o que toco e me toca, mesmo que seja só entre indiferenças e
incompreensões, mediocridade no varejo. Recomeço sempre e saio jeito que for
por aí e o que disse o antropólogo francês Pierre Sansot (1928-2005): Ai dos seres mundanos
que brilham em suas réplicas, que não se aprofundam, que se expressam com
respeito natural! Cada um de nós está ameaçado pela contaminação do já
dito, do já visto, do já sentido, cuja escrita parece tão fácil. Não se pode
dizer, portanto, que escolhi existir pelo tédio, mas antes que o tédio
constitui para mim um meio de usar o mundo com lealdade, de me aproximar dele,
de renunciar a ele, de tentar de novo saboreá-lo. O que não sei, mesmo assim, o dedo aponta e vou
se não tiver o que precise dizer. Digo e pronto, está feito, saiu, escapou. Se
em silêncio, escuto o escritor inglês Nick
Hornby: Todo
mundo sabe como falar, e ninguém sabe o que dizer. A vida pode ser dramática
para qualquer um; não é preciso ser viciado em drogas ou poeta para
experimentar sentimentos extremos. Você apenas precisa amar alguém. Sim, o
amor é a vida. E amo e até demais da conta, aprendo e reaprendo e sigo adiante
até que a noite governe o reino dos sonhos perdidos.
DOIS: ASSIM, SEM
PERDER A TERNURA - Imagem: Ninfa, aquarela sobre marfim (1898), do
pintor, ilustrador e fotógrafo estadunidense William Jacob Baer
(1860–1941), ao som das Cartas Celestes,
de Almeida Prado, na interpretação
do pianista Fernando Lopes - Dadinha menina nem se deu conta e debutou, olhos
se encheram nela. A mãe, Predestinação de Ascenso, coração na mão: Valei-me meu Jesuisinho! E ela, aceno pra
vampirada que subia a ladeira só pra vê-la e amolar os dentes: colírio aos
olhares atrevidos. Prevendo o pior, a genitora pegou a danada e levou pro
coronel tirar o cabaço: Antes que seja tarde demais, melhor pro ganho! Ela
freou: Vou não! O grandão quase teve um troço: Te pego, safada! A mãe: Mas,
minha filha... E tanto rodou, ele e uma tuia de marmanjo tudo aboticado atrás
das suas pegadas e tudo o mais dela. Nem, nem. Ela crescia e se fazia robusta esperando
seu príncipe encantado, coitada, enquanto o juízo da marmanjada maldizente fugia
pro mocotó: Ela me paga! Aí ela deu um breque: engraçou-se por um parrudo e
contraiu núpcias, assim, sem mais delongas. Está feito. Coração materno aos
prantos por todos os devotados e mãos pendentes. O escolhido além de não ter
onde cair morto, não aguentou o repuxo e bateu as botas: enviuvou pra repúdio
das senhoras e pretendentes. Trancou-se para se livrar da fúria alheia: Sou
gente, não sou objeto. Se passasse na rua, ou era desaforo, ou era lábia
injuriada. Amadurecia na preferência pelo altruísmo, mesmo sob todas as
condições adversas. Deu-se então uma enchente e toda cidade teve que subir o
morro, lá só ela e a mãe solidárias. O povo reticente virou-lhe as costas,
mal-agradecidos: Dessa nem mesmo pintada a ouro. Recusavam-lhe dádivas, odientas
de sua boa vontade. Mais dia, menos dia, nada da água baixar, a ruindade se
acovardava e já achegavam aos mimos dissimulados. Mantimentos em socorro
chegaram de fora, general condicionou a assistência: Haverá fartura para todos
se com ela me casar! Ela fitou o desafiante, fez careta e disse não.
Foi-um-deus-nos-acuda! Que mulher mais ranzinza! Tantos paparicados, promessas
e louvações. Lá vai ela ao cadafalso depois de todo tipo de pedintório geral. Diante
de tantos rogos, cedeu. O graduado nela pintou e bordou, mas quando se fartou:
Já sou casado! E zarpou. Ela lá ficou. E o que era paraíso voltou a ser o
inferno de antes, como se ela fosse a Bolo de Sebo de Maupassant ou Geni da ópera do Chico. A vida tem dessas coisas e dela jamais perder a ternura.
TRÊS: CRÔNICA DE AMOR POR ELA - Imagem: arte da premiada artista sueca Sofia Hultén, ao som da Hungarian
Fantasy, do compositor e
flautista ucraniano Albert Franz
Doppler (1821–1883), na interpretação da flautista
israelense Sharon Bezaly, no Flute Festival Korea (2017). – Ontem ela não deu as caras, nem anteontem. Para quem dava o ar da
graça todo santo dia e o dia todo, entra e sai, vai e volta, agora era um
castigo daqueles de não se saber qual a culpa ou dolo. Foi. A porta se abria,
não era ela. Era Germaine Greer: A tristeza é a matriz da qual surgem o humor
e a ironia; a tristeza é desconfortável e criativa, razão pela qual a sociedade
de consumo não pode tolerá-la. Se pudermos encontrar meios de colher a energia
da dor oceânica das mulheres, moveremos montanhas. Ficou
do lado acompanhando meus passos. Da janela, outros passos na calçada. Era a
escritora polonesa Grazyna Miller
(1957-2009): Entre a vida e a morte - um
horizonte. Abraçando Ontem e Amanhã - não sabia que você era o meu Hoje.
Precisamos de um caminho: o caminho do amor. Sim, o caminho do amor e o
pior era a solidão do abandono. Ao lado dela apareceu Colleen McCulough sorridente e contando uma história: Existe uma lenda
acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade do que qualquer
outra criatura sobre a Terra. A partir do momento em que deixa o ninho, começa
a procurar um espinheiro, e só descansa quando o encontra. Depois, cantando
entre os galhos selvagens, empala-se no acúleo mais agudo e mais comprido. E,
morrendo, sublima a própria agonia e solta um canto mais belo que o da cotovia
e o do rouxinol. Um canto superlativo, cujo preço é a existência. Mas o mundo
inteiro para para ouvi-lo, e Deus sorri no céu. Pois o melhor só se adquire à
custa de um grande sofrimento. Comovente
história para um pássaro ferido como eu, as três riram e me pediram para cantar
da Crônica de amor por ela. Até mais
ver.
ARTISTA, DE HELTON & VERTIN
Esse álbum tem uma coisa viva, visceral, orgânica. Muita música ficou do
jeito que foi cantada de primeira, respeitando muito a expressão e a emoção
daquele momento em que foi gravada. Não tem muitos elementos, mas muita
expressão. Fizemos esse disco totalmente independente de governo, mas muito
dependente das estratégias de como fazer... e dos amigos também, de pessoas que
a gente admira e que a gente queria ali.
O álbum
Artista (2020), dos multiartistas irmãos Moura, Helton & Vertin. Helton
Moura é cantautor, ator, instrumentista, diretor musical e artístico, autor
dos álbuns Maquete
Sonora (2010) e Círculo, ao vivo
(2017), atua no teatro e no cinema, além de já ter participado de shows, saraus
e festivais, como Fliporto, Recitata, Sesc Pompeia/SP, FIP, FLIOS-IlhéusBA,
Pernambuco Nação Cultural, EXPOIDEA, entre outros. Vertin Moura é cantautor, poeta, ator, compositor, estudante de
Filosofia da UFPE, é autor do livro Maria; Duo Artista e Filhosofia
(2012), do álbuns musicais Filhosofia (2012) e Pássaro
Só (2018).Imagem: arte (capa do CD) da artista visual Cyane Pacheco. Veja mais aqui, aqui & aqui.