TRÍPTICO DQC: O SEGREDO DO ENCONTRO - Ao som
de Stravinsky:
Petrouchka (Universal/Decca,
2019), com a pianista e compositora francesa Yvonne Loriod (1924-2010) & Orchestre Des Cento Soli, Rudolf
Albert. - Seja bem-vinda, pode entrar sem bater. Eis-me aqui, em
carne, ossos e fracassos. Sou porta ao escancaro e não repare a bagunça, a
anárquica arrumação e o lastimável desamparo. Não sou bem assim, levo a vida e
nem sei direito, sinto além do que consigo suportar. Celebro meus defeitos, não
posso negá-los, nem ser diferente do que sou: vou muito além do que posso. Sou
um homem comum e qualquer, não guardo mágoas nem rancor; asseguro de antemão:
não tenho a menor coerência. Não desafio a sabedoria das ruas, ando sempre
apressado e de sorriso aberto, muito embora ninguém tenha me avisado como foi
que dormiu a noite anterior. Saúdo os vivos e os mortos, que os tenha em bom
lugar. Carrego a culpa de sonhar demais e, invariavelmente, quebrar a cara: sou
mais onírico que real; quando não, patético. Sei que o que é ruim
inevitavelmente tende a piorar como se não tivesse mais jeito, mas sou
refratário a resmungos - para ter o que tenho tive que levar na marra, sangue e
suor à beça e desconfio que se escapar com vida farei tudo que penso e desejo.
A vida, como soube de Deleuze & Guattari: A vida está sempre em aberto: seu impulso não é
alcançar um fim, mas continuar seguindo em frente. A planta, o músico ou o
pintor, ao seguirem em frente, arriscam uma improvisação. Assim voo, como a jornalista indiana Qurratulain Hyder
(1926-2007), com: Estudos em uma cultura
agonizante. Minha preocupação com os valores da civilização sobre os quais
continuo escrevendo pode parecer ingênua, confusa e simplista. Mas então,
talvez, eu seja como aquele passarinho que estupidamente levanta suas garras,
esperando que isso impeça o céu de cair. Sim, satisfeito ninguém está, nem dou
crédito ao que se fala por aí, pro gasto exilado lá estou por aí, até lá.
DOIS: ARDISTÃO
& A CIDADE DOS MORTOS – Ao som de Inori, adorations for one or two solists and orchestra (1973/1974), de Karlheinz Stockhausen, com Elizabeth Clarke e Alain
Louafi, solisti Suzanne Stephens, Japanese rin Maria Bergmann, pianoforte The
Symphony Orchestra of the Southwest German Radio. – Despertava no meio da noite,
um lugar estranho: que lugar é este, não sei. Olhei em volta e ao longe uma
cidade aos pés de um morro, parece, não dá pra ver direto. Observei intrigado.
Ao tentar me levantar do chão, toquei a mão em dois volumes do Ardistan und Dschinnistan (1909 -
IGEL Verlag
Literatur & Wissenschaft, Hamburg, 2013), do escritor alemão Karl May (1842-1912).
Hem? Ao folhear um dos volumes, um mapa escapuliu ao vento. Fui pegá-lo e era a
reprodução de um outro que se encontrava impresso no livro. Comparei os dois, a
mesma dimensão. No do livro, apenas indicava o nome Ardistan e tudo o mais em
branco; enquanto no mapa avulso, Takistan, com nomeação de outras partes. Mais
adiante encontrei uma foto tirada da mesma posição onde eu estava. Intrigado,
comecei a ler: Quando o rio Suhl secou, a
cidade ficou deserta e uma nova foi construída. Durante séculos, a velha
capital ficou vazia, tendo apenas um ou dois prédios usados como prisão. Poucas
pessoas, além dos líderes religiosos, visitavam-na e ela nunca foi
completamente descrita. Indaguei novamente: que lugar é este, ainda não
sei. Nas páginas adiante: A cidade dos
Mortos contém muitos segredos importantes, alguns dos quais conhecidos somente
do alto clero de Ardistão. Passagens subterrâneas e antigos canais oferecem
meios de acesso escondidos à cidadela. Caminhei até me deparar com um lago
que, pelo mapa, deveria ser o Maha-Lama, cercado por paredões íngremes de pedra.
Ah, isso mesmo, o que vi e a foto. Foi aí que constatei ali ser a Cidade dos
Mortos mesmo: A área é temida e evitada
pelas poucas pessoas que visitaram a cidade, talvez porque está ligada a
antigas lendas demoníacas. Diz-se que o lago foi criado pelo diabo que teria
dito a um antigo sumo sacerdote de Maha-Lama que ele viveria mais cem anos se
afogasse no lago todos os que o insultassem. Embora fosse outrora amado por seu
povo, o Maha-Lama tornou-se impopular. Centenas de pessoas foram afogadas no
lago, que ficou tão entupido de cadáveres que o sacerdote não pôde mais cumprir
sua promessa e foi finalmente levado pelo diabo. Fiquei estarrecido com a
leitura do relato. Além do mais fui surpreendido com a presença inesperada do
bioquímico francês Jacques Monod (1910-1976)
que me disse com ar de intimidade: Neste
momento não temos motivos legítimos para afirmar ou negar que a vida teve um
único começo na terra, e que, como consequência, antes de aparecer, suas
chances de ocorrer eram quase nulas. … O destino é escrito simultaneamente com
o evento, não antes. O universo não estava grávido de vida, nem a biosfera do
homem. Nosso número surgiu no jogo de Monte Carlo. É surpreendente que, como a
pessoa que acabou de ganhar um milhão no cassino, nos sintamos estranhos e um
pouco irreais? Sem saber o que dizer, dei de ombros e segui seus passos até
vê-lo desaparecer diante dos paredões íngremes de pedra. O reinado da Lua confirmava
que eu estava perdido, ainda restava muito para saber dali.
TRÊS: ELA BAILAVA ENTRE AS ESTRELAS - Imagem:
a arte da coreógrafa, dançarina, fotógrafa e diretora de curtas-metragens
francesa Karine Saporta, ao som do Brasil Guitar Duo, formado pelos
violonistas João Luiz Rezende Lopes
e Douglas Lora. – Olhava o céu
naquela paragem insólita, quando a vi bailando entre as estrelas e levitava
dançando por toda imensidão, até lindamente tocar o chão e se aproximar com seu
olhar firme em mim: Sou Anatália, a potiguar Anatália de Souza Melo Alves (1945-1973). E o meu trabalho com os
trabalhadores rurais da Zona da Mata de Pernambuco, me levou para Recife,
Campina Grande, Palmeira dos Índios e Gravatá, até ser presa pela repressão.
Disseram que ateei fogo ao corpo, me suicidando com uma tira de couro. Mentira.
Naquele dia, descalça, trajava um estampado vestido de algodão vermelho e
calças de jersey cor de rosa, que
foram parcialmente queimados por eles mesmos. Fui vitima de violências sexuais
quando me encontrava psicologicamente abalada pelas torturas e pelo clima de
terror no cárcere, por isso queimaram-me a região pubiana para que meu corpo não
denunciasse as sevícias sofridas e me enforcaram. Sou mais uma entre as filhas da dor. Ao término da encenação,
suas lágrimas lavaram meu ombro enquanto o nosso abraço solidário era a
expressão da paixão mais que vivida. Assim, um tanto desolada, recitou-me Ernesto Cardenal: Ao perder-te eu a ti / tu e eu teremos perdido. / Eu, porque tu eras / o
que eu mais amava; / tu, porque era eu / que te amava mais. / Mas, de nós dois /
tu perdes mais do que eu. / Porque eu poderei amar a outras / como amava a ti, /
Mas a ti não te amarão mais / do que te amava eu! E foi ali na Cidade dos
Mortos que celebramos a vida com o amor que nos fez unos em nós e com tudo e
todas as coisas. Até mais ver.
A ARTE DE KAMILLE CARVALHO
A arte da bailarina,
dançarina profissional, professora, coreógrafa, personal dancer e dancing
coach, Kamille Carvalho. Veja mais
aqui e aqui.