Claro, há momentos aqui e ali que eu mudaria. Mas ter esse sucesso - apesar de esmagador naquele momento, e seria a
qualquer momento, eu acho - me deu liberdade artística e a chance de continuar
fazendo músicas que pareciam boas para mim. Sou muito
grato por isso; não há razão para eu não estar.
VALUNA: UM PASSO A MAIS & ELA, A MULHER DA SOMBRINHA - Era Camocituba e eu sozinho em Camocim quase ia pra Santa
Luzia, já era 29 de dezembro no sitio
São João da Barra, onde uma frondosa Guabiraba que se chamou Itapecó, passava
pelo Seco e Tanque de Piabas. Os dias tão mesmos como lá e cá, ou acolá:
o carro-de-boi moía o silêncio na rodagem entre cercas, gritaria de meninos
espalhando o brejo e a espionagem de capangas que tudo espreitavam: olhos
invisíveis no matagal. Eu nem nem, fui dar na Casa Nova pela Aba da Serra do
Monte que era Camaratuba, lá pras bandas da Barra do Riachão e Santana do São
Joaquim. Passei pelo Seco e do Sapo, até a Barragem Cianinha. Cheguei em Laje
Grande, já era terra de Catende. Eu que fui jundiá que saí das águas para ser
homem feito, fui danado pra Catende com vontade de chegar: Isso é planta que
brilha ou pulga do mato? É o trem das Alagoas, alesado! Eita! Lá vou eu para a terra
da morena do cabelo cacheado. – Se assunte, seu cabra! É tupi ou do Congo?
Larga de ser folgado, bestão! Ué, se vem de Palmares, fique certo, só é macho
se tiver furunfado de saia por aqui! Oxe, tais pensando que tais aonde, hem? É
cana-caiana, maior canavial, haja da boa pra gente chupar! Ih, já chegou! E
pelo Camevô, pelo Limão. E lá ia eu já do Leão XIII para a Árvore da Vida, só
pra ver a Mulher da Sombrinha sair meia noite do cemitério, na sexta de
Zé-Pereira. Coisa mais bonita de se ver. Ah, como era bão! Saía trocando as
pernas pelo arruado da usina até subir pra Serra da Prata e de lá vê o Caudal
de Pelópidas, jogando conversa fora nos copos e meiotas de Marcos Catende com leros
de nem se lembrar, até findar no mundo perdido: - Onde é que eu estou? Ah, isso
aqui é bom demais! – Te aquieta, fuleiro! Lá eu namorava as estrelas de todas
as constelações! Tinha moça bonita para passar troco e ficar todo trocado! Uma
infieira de sestrosas e de tuia! Cada uma mais linda que a outra! Valei-me que
assim eu folgo! – Segura o jipe, safado, essa tua cachaça já está passando da
conta! Ah, quanto seio bonito, quanta coxa de perna jeitosa, ah, é embaixo duma
saia dessa que eu quero me esconder! Eu quero é mandar ver até me perder no
trevo pra correr bicho em Lage Grande. – Ah, já passou, tais quase é em
Agrestina! Danou-se! Ah, se não tem história, eu invento. Faz a volta,
cambiteiro, que o paraíso é lá pra trás. Vambora pra terra de mulher vistosa!
Eu só espichando o pixaim, metido a poetar: se o mundo está de pernas pro ar,
não sou eu que sozinho vou essa zona consertar. Né, não? E se tudo está troncho
de tão desfigurado, é que fazem dum redondo findar mais que quadrado! U-hu! A
coisa está bisonha e cheia dos tremeliques, é que não tem nada de sério, vai se
ver, é só trambique! O pencó está engrossando, chega mudar de figura! Pois é,
tanta chatice tola pra pouca criatura. É gente como a praga de gravata lavada,
tem até enxerido sem lenço só dizendo: É o descontramantelo da desembestação! Isso
é lá prosopopeia, meu? É a maior danação! Eu só largando os meus motejos, todo
cheio de tantos brocardos, haja quantos adágios entre fogos e ventos, pelos
raios dos trovões, pelas clareiras e coivaras. Todo bacurau feito flecha entre
cunhatãs e cunhãs, era eu: quando aparecia a papaceia na boquinha da noite é
que as mocinhas biqueiras faziam as onze e eu lá só espiando, mutuca no roçado,
só curtindo o cheiro das calcinhas estufadas minando nas intimidades. Ah,
quanto cangote cheiroso de moça namoradeira que passa toda reboladeira e eu na
tubiba pra fazer sopa. Só se ouvia as mães aflitas gritando: - Segura chinela
na sola do pé, menina! E eu só ali amoitando o gingado delas. – Se ajeite,
sem-vergonha! Oxe, nunca fui desses mecos! Mentira, foi sim. Vixe! Querem
queimar meu filme? Destá! Estou ligado é no percurso dos pés andejos dessas
reboculosas que querem se perder por aí, preu achar agorinha! E quanto mais ela
ia pra lá e pra cá, mais eu queria era ficar. E de vez! Nem vontade de voltar deu,
esqueci. Só me perder num fungado e ficar agarrado nela de nunca mais largar,
só na cantiga do trem: vou danado pra Catende, Ascenso, vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende, com vontade de chegar. Naquela segunda feira tomei
conhecimento de que corria um boato de décadas, de que uma linda mulher dava
sumiço nos trabalhadores da Usina. Ela sensual pelas ruas, mas ninguém via. Como
é que pode? Só se davam conta quando desaparecia um entre os homens, funcionários
da usina canavieira, para logo atribuírem a ela o seu desaparecimento. Todos
falavam, porém, jamais tinham sequer visto. Só se sabia que apenas os
escolhidos enxergavam a sua sedução. Anos e anos se passaram e eu lá, a cada
safra, sempre às sextas-feiras, desapareciam os homens. E eu? Fizeram
vigilância na cidade para flagrar seus passos e dar cabo desses desaparecimentos,
todas investidas infrutíferas. No final de semana, sempre havia o alvoroço de
acontecimentos similares. E todos logo diziam: - Foi a mulher da sombrinha! Certa
feita, acertando passagem, dei de cara: era um semblante inenarravelmente bonito,
se destacava na multidão. Tinha certeza de que já vira aquelas fascinantes
faces outras vezes. Aliás, sempre que eu visitava a localidade, me deparava com
aquele ser que logo impactava no meu íntimo, trazendo-me sensações
desconhecidas. Qualquer volta que eu desse por quaisquer das vias dali, eu me
pegava assuntando sua presença a me provocar. Até que um dia no Leão XIII, do
palco pude vê-la na plateia; uma sensação de presença familiar. E eu já
obsessivo por encontrá-la, ou pelo menos vê-la de qualquer forma, lá estava, ali,
linda como sempre, bem pertinho. Mais uma vez ela estava ali e eu não sabia
como fazer para tê-la ao meu alcance, isso eu já tentara diversas vezes sem
êxito, sempre que estava por ali. Era, inclusive, vigente o ditado de que
naquela cidade os habitantes eram majoritariamente femininos, na proporção de trinta
por um. E isso devido ao desaparecimento costumeiro das sextas dos marmanjos
por mais de uns não sei quantos anos ou mais. Pois bem, de sopetão, aquela bela
mulher encheu-me de vida e prazer. Agarrou-me num beijo inesquecivelmente
demorado. Senti seu hálito de flor, seu perfumado corpo elegantemente
assimétrico com curvas e saliências estonteantemente sedutoras, e sua
respiração ofegante de fatal e exuberante insaciável. Remexeu-me as entranhas,
o sexo e todas as veias do meu corpo, dominando-me num beijo longo para lá de
anímico e sideral. Era como se estivesse voando pelo universo agarrado às
carnes suculentas de um ser sobrenatural. Foi demais, tão demais, de eu me
perder de tudo, quando, depois do beijo, ela fitou-me, passou as mãos ternas e
requerentes por meus cabelos, faces, pescoço, tórax, até descer ao meu sexo
rijo e acariciá-lo deliciosamente. Suspirou e me disse: - Mais tarde quero
vê-lo. Venha ao meu encontro. E saiu tal como entrou. Tive que passar um certo
tempo para me recompor, embalado por aquele momento, não vá, por favor, ela
sumira e eu desolado, a me recompor daquele encontro fortuito que fincara forte
sua marca por todo meu corpo e alma. Saí e queria reencontrá-la. Onde? Nada,
ninguém por ali. Vasculhei todos os cantos, nenhum sinal dela. A bexiga
apertou, precisa da micção. E fiz ali, onde pude, quando uma mão delicada me
pegou pelo braço. Era ela, flagrou-me a imediata inflação do meu membro com sua
presença. Ela viu, passou a mão na protuberância que de mim se insinuava para ela
e disse: - Venha, estava esperando. Puxou-me e seguimos andando pelas ruas, até
darmos no cemitério da cidade. Hem? Ela virou-se agarrada ainda à minha mão,
encarou-me com o olhar mais sensual que já vira e me disse: - Venha, preciso da
sua ajuda, venha me salvar. E me levou entre as catacumbas até atrás de uma
capela onde havia uma gruta que se iluminara de repente. Tremi, mas encarei. E me
deparei com uma alcova cujo perfume inebriante me dominava. Ao chegar à sua
cama, ela de forma materna e amante, me deitou e fez-se tudo a maior escuridão.
A partir daí o maior prazer do universo me contemplou num gozo de orgasmo
infindável. Viajei céus, infernos e paraísos, até ver-me restituído à vida como
se vivendo num sonho perene que nunca mais me deixara acordar. Ao dar por mim, despertei
e passei a ter a sensação de que ela vivia em mim, dentro de mim, acariciando
meu coração e fazendo o meu ser sentir-se para sempre ao seu comando. Ela nunca
mais saiu de dentro de mim, morando comigo em meu próprio corpo para nunca mais
sair nem atormentar a cidade com desaparecimentos. Só as sextas
pré-carnavalescas que ela fugia um tantinho de mim, para desfilar impune pelas
ruas da cidade e com a madrugada já sábado, ela voltava pros meus sonhos,
retornando aos seus domínios. E isso até o dia em que... Da primeira vez o
menino nem sabia. Ouviu o apito: o que é isso? Na rodagem não havia ninguém pra
dizer o que era. Outro assobio mais longo, olhos nos quatro cantos: tudo
quieto, como sempre fora. Mais outro: que droga é nove? Alguém viu lá detrás do
morro, algo que vinha na maior barulhada. Danou-se! Será o fim do mundo? E mais
vinha: vou daqui, vou praí, vou te pegar! Vou daqui praí, vou te pegar! Se
assunte menino! Pernas pra que te quero. Lá vem a geringonça! Escondeu-se de
nada mais vê-lo, só o desmantelo e o povo acenando. Ué, ninguém correu não?
Depois que o troço passava, era que ia ver. Era a Maria Fumaça, soube. E no
segundo dia, não ficou não, as pernas tremiam: esse povo é tudo doido. Toda vez
que apontava: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Com o tempo achou de topar e
lá vinha: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Que venha! E veio, vinha virada na
gota! Segura o pipoco, olha a coisa! Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Vixe!
Tudo parecia se desmanchar com a zoada! Eita, lá vem mesmo, passou. Ufa! É só
isso? Já foi. Então todo dia, ele ali esperava: cadê o estrupício? E na hora de
todo dia, lá vinha a danada: Vou daqui, vou praí, vou te pegar! Nem mais tinha
medo, até acenava pro condutor! Ê maquinista! E ele acenava sorrindo puxando o
apito: piuí, piuí. Isso era todo dia da meninice, até quase rapaz. É que havia
crescido e precisava ir pra cidade trabalhar. Passaram-se os anos, décadas
esquecidas. Até um dia, muitas invernadas de nem se lembrar, deu cara com a
locomotiva na exposição: é ela. Oxe, ela mesma! E era aquela que passava todo
dia. Os olhos de homem feito, virou menino outra vez. O céu, o canto dos
pássaros, os campos, a rodagem, o povo converseiro, a vida fagueira. Ô tempo
bom! Ficou admirando aquilo no mais fundo do peito, lembrando o tempo em que
ela passava fazendo tudo tremer ao redor: Ô coisa bonita de se vê. Alguém falou
perto: Por muito tempo, ela ia e vinha, levando gente e coisas. Era. E mais
confidenciou: E eu era o maquinista. Virei-me, não havia ninguém. Procurei ao
redor, nem sinal. Arrodeei a locomotiva, não tinha um pé de gente. Meio
assustado, resolvi ir embora. Aí, alguém chamou: Ei, menino, lembra quando eu
passava apitando e você gritava na beira da rodagem do engenho? Voltei-me de um
pulo e era ele: o maquinista sorridente que acenava todos os dias na infância
perdida. E danou-se a relatar o medo que dava a passagem do trem, até se
acostumar com coisa tão medonha. Vi que falava sozinho e saí à procura dele,
até chegar à recepção: Você viu o maquinista? Ah, ele morreu há mais de vinte
anos, mas sempre aparece pra quem se aproxima dela. Ah é? É. Então esperei
encostado nela, nunca mais ele reapareceu, a infância ficou no coração. Até que
ela foi quem veio, aquela bela mulher me contou tudo. Aí, por isso fui tantas
vezes danado pra Catende glosando o mote de Ascenso, muitas vezes para saudar
Pelópidas e seu caudal, para abraçar Maurício e todos os Melos tataritaritatá,
Davi e Ideais, Marcos agora em Maceió e a Mulher da Sombrinha sempre tão bela desaparecida
e que me fazia sair a procura-la pela Serra da Prata entre os operários agora
do fogo morto, e de quem nem lembro mais das sessões do cine Diamante e que
passavam por mim em cada passada noite adentro. Fui danado pra Catende outras
vezes como se cantasse para ninguém nunca chorar por mim – uma balada de quem ia
sempre embora -, e encontrei os passageiros de ontens e os desabrigados
moradores de rua de hoje inventando seu abrigo com os fantasmas da locomotiva
primeva, as vítimas do preconceito, os malvistos de qualquer esquina, os anjos
caídos, os doidos e fogueteiros, os que se escondiam para queimar suas
fogueiras, os invisíveis das noites e dias entre guenzos e bichanos famintos. Fui
uma vez e fui de novo porque havia uma festa de todas as tribos, porque o
imaginauta supercultor Gugha Távora urdia o bem pintando o sete com todas as
cores criatinovadoras no espaço que era a secretaria para a biblioteca da
cultura catendense, e Aprisco riscava o grafite que branquinho HenriqueTeixeira
recitava no baque do DJ Passarinho e nas mandalas de Henrique Bem; porque de
Caruaru, Zé Galdino embolava as cores do Vale do Una de Profeta e Durán y Durán;
os bonecos de Epifânio, as artes de Cicinho e o passeio teatral da Paula
aplaudidas pelos de Fenelon, João Paulo e Mary que viam da Cyane os traços dos
desenhos no meio das performances de todas as utopias subversivas dos que ali
dançavam com frases do papo cabeça e de quantos passavam para vários encontros
e vastos desencontros, tantos vivos e outros mortos no que foi estação de
antanho e isso e aquilo, entre chiques e chocantes até a rebeldia boco-moca dos
que se recusavam a viver aquela ousadia de festa pra seguirem as regras sociais
que são suas verdades e nem sabiam de qual das mentiras virou sectária dum
dogmatismo, porque tudo era apenas um pedaço da história que os olhos não
compravam por levarem pra depois o que foi e o que estava lá e me chegava bem
danado sem vontade até de voltar. Quando dei fé estava na serra do Cruzeiro e
fui Prata de Batateiras em Belém de Maria, criado na mata. Nem sabia que era 31
de dezembro, o ano novo que não é o meu, na rota dos escravos que iam pro
Quilombo e ficavam em Macaco. Era Aurora com a passagem das tropas de um
marechal que ficou admirado com o amanhecer do lugar e conseguiu convencer os
habitantes pela mudança do nome. Foi ali que ouvi um xexéu que me enganava em
Campos Frios e tinha de ir para Palmares, não sei a razão ou motivo, mas tinha.
© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e
aqui.
DITOS & DESDITOS - Só
existe um sonho que vale a pena ter: viver enquanto você está vivo e morrer
apenas quando estiver morto. Nossos sonhos foram
medicados. Nós não pertencemos a nenhum lugar. Navegamos sem ancoragem em mares
turbulentos. Podemos nunca ter permissão para desembarcar. Nossas tristezas
nunca serão tristes o suficiente. Nossas alegrias nunca são felizes o
suficiente. Nossos sonhos nunca são grandes o suficiente. Nossas vidas nunca
são importantes o suficiente. Para importar... O modo de vida estadunidense não
é sustentável. Não reconhece que existe um mundo além da América. Quem sabe
pela palavra adeus que tipo de despedida nos espera. Mas em momentos como
esses, apenas as pequenas coisas são ditas. Grandes coisas estão escondidas por
dentro. É isso
que as palavras descuidadas fazem. Fazem as pessoas gostarem um pouco menos de
nós. Pensamento da
escritora e ativista indiana Arundhati
Roy. Veja mais aqui.
ALGUÉM FALOU: Aquilo
que fizemos ontem continua conosco hoje. O gosto é resultado de mil desgostos.
Trabalhamos com as fontes de vida: jogar e perder. Quando se pode alternar o
humor com a melancolia, alcança-se o sucesso, mas quando as mesmas coisas são
alegres e melancólicas em simultâneo, é simplesmente maravilhoso. Sempre
preferi a reflexão da vida à própria vida. Três filmes por dia, três livros por
semana e discos de boa música seriam suficientes para me fazer feliz com o dia
da minha morte. A verdade de uma criança é realmente algo absoluto. Pensamento
do cineasta francês François Truffaut
(1932-1984). Veja mais aqui.
O AMOR - O amor é a prova
da existência de outros e da existência deste mundo soberanamente real: o
futuro que, sozinho, dá sentido ao presente. Amar um homem ou uma mulher é
descobrir uma dimensão nova da vida, um novo e imprevisível futuro. O amor,
como a prece, é para ser despertado, preparado para a oferenda, como aberto ao
acolhimento. Este amor total não separa o corpo e a alma, que são apenas duas
abstrações, dois ângulos de tomada de vista sobre uma realidade única. O amor
começa quando preferimos o outro a nós mesmo, quando aceitamos a diferença e a
sua imprescritível liberdade. Ser capaz de acolher no outro aquilo mesmo que
desperta o ciúme animal, que é sinal de amor próprio e não de amor. Nada é
maior que essa partilha da verdadeira personalidade de cada um. Um amor que não
seja essa criação continuada de um pelo outro, mesmo ao preço dos
dilaceramentos trágicos, é o contrário do amor. Quem não estiver preparado para
enfrentar tudo isso não é digno do amor. A poesia e o amor são, com efeito, as
formas mais imediatamente apreensíveis da transcendência do ser. Pensamento
do filósofo francês Roger Garaudy (1913-2012). Veja mais aqui, aqui
& aqui.
O ESCRITOR & A LITERATURA – [...] O escritor parou de conceber seu trabalho
como a reprodução mais ou menos fiel, da qual a linguagem seria o instrumento
mais ou menos dócil, de uma realidade preexistente, idéia ou sentimento,
natureza ou sociedade. A linguagem é para ele a única realidade, ao mesmo tempo
aquela de onde ele parte e para onde ele tende, da qual ele fala e que lhe
serve para falar. Trechos
extraídos da obra La Littérature en
France depuis 1945 (Bordas, 1970), de Bruno Vercier, Jacques Lecarme,
Michel Autrand e Jacques Bersani.
Imagem recolhida de Helga Rackel.
O CASAMENTO DA PORCA COM ZÉ DA LASCA
Manoel Caboclo e Silva
Leitores eu vou contar
Uma estória que passou
No Juazeiro do Norte
Esta noticia vagou:
“Uma mulher virou porca
Porque à mãe açoitou”.
Era desobediente
No dia que se danava
Não tomava os conselhos
Que a sua mãe lhe dava
Saia à boca da noite
À madrugada voltava.
Um dia ela disse à mãe:
- Hoje é o dia de eu beber
E dançar agarradinha
Até o dia amanhecer
Quando voltar, por favor
Não venha me aborrecer.
E não tardou muito tempo
A mãe dar conselho a ela
Ela igual a uma cobra
Pegou a mãe pela goela
Derrubou, montou-se em cima
Começou a bater nela.
Depois que açoitou a mãe
Foi na bodega beber
A velha disse: - Eu confio
Em Deus, no grande poder
Tu vais virar uma porca
Pra toda noite correr.
Aquela filha maldita
Foi ficando diferente
Crescendo as duas orelhas
E logo rapidamente
Se transformou numa porca
E correu ligeiramente.
Balançou o esqueleto
Preto, da cor de cavalo
E em cada mocotó
Criou logo um esporão
Saia fogo dos olhos
Que parecia um dragão.
No dia de sexta-feira
O lobisomem corria
Pegava cachorro novo
Rasgava o fato e comia
Sangrava jumento velho
Tirava o sangue e bebia.
Corria sete cidades
Que a poeira levantava
Ia à praia comer peixes
Mortos que a maré jogava
Nas águas do oceano
Onde a porca se banhava.
Tinha um tal de Zé da Lasca
Um cabra de vida errada
Que não temia o perigo
Não acreditava em nada
Não gostava de mulher
Nunca teve namorada.
O José sempre dizia
- Feitiço é para o demente
Essa estória de feitiço
É uma imprensa da mente
Existe é truque bem feito
Para enganar muita gente.
Estória de lobisomem
Eu não posso acreditar
Como seja, aquela mossa
Numa porca se virar?
Acho ela bonitinha
Com ela vou me casar.
E falou em casamento
Com esta tal Mariquinha
Sentou-se pertinho dela
Achando-a engraçadinha
Começou a namorar
No mesmo dia à tardinha.
Numa noite enluarada
Saíram a passear
De braços dados, um no outro
Começaram a conversar.
Ele disse: - Já é tarde
Pra casa vamos voltar?
Ela disse: - Não senhor!
Vou descansar um bocado
Deitar-me agora em seu colo
Fazer carinho e agrado
Ainda mais hoje mesmo
Vamos casar noutro estado.
Com estas palavras o moço
Desconfiou da cilada
Foi olhando para ela
Estava desfigurada
Se virando numa porca
Com a mão dele abraçada.
Ele quis correr, não pôde
Porque estava agarrado
Deu um pulo para cima
Desceu, ficou enganchado
E a porca fez carreira
Levando ele montado.
E fez logo parafuso
Que a poeira cobria.
Correram em sete estados
Por cidade e freguesia
Foram na praia e voltaram
Antes de amanhecer o dia.
Fora para o Rio Grande
Voltaram pro Ceará
Seguiram pro Piaui
Maranhão e o Pará
Visitaram Amazonas
De lá foram ao Paraná.
Saltou no meio da rodagem
Atacou um caminhão
Quebrou os feixos de mola
Entortou a transmissão
Deu meia-volta e quebrou
A barra da direção.
Torceu os dois semi-eixos
Quebrou a longarina
Furou o radiador
Desmantelou a bobuna
Passou os dentes, cortou
A correia ventulina.
Arrancou todas as válvulas
Pistão, coroa e pinhão
Espatifou a biela
Freio de pé e de mão
Quebrou o diferencial
E co cano de escapação.
Mexeu em todos os parafusos
Fez a maior confusão
Cortou os fios de velas
Arrancou a instalação
Amassou o platinado
Caixa-de-marcha e tampão.
A porca rangia os dentes
Fazendo grande chacina
Subiu na carroçaria
Mijou dentro da cabina
Tomou um banho a seu gosto
No tanque de gasolina.
O motorista correu
Deixando o carro quebrado
O ajudante ficou
Dando grito esfarrapado
Só pôde sair dali
Depois que tinha mamado.
A porca saiu correndo
Com Zé da Lasca montado
Foi parar em um chiqueiro
Perto de um curral de gado
Na lama tomou um banho
Com Zé da Lasca agarrado.
Em uma cidade na frente
Foi avistando um cruzeiro
A porca entrou na igreja
Fez o maior desespero
Sacudiu uma pedrada
Na terra do padroeiro.
Deu um pulo de costas
Derrubou São Severino
Peitou em Santa Teresa
Brigou com São Guilhermino
Mordeu santa Catarina
E bateu em São Firmino.
Subiu a igreja acima
Desceu pelo patamar
De novo entrou na igreja
Deu três coices no altar
Neste grande rebuliço
Fizeram o sino tocar.
Nisto o vigário chegou
Chamou por Nossa Senhora
A porca se transformou
Em mulher na mesma hora
E foi dizendo: - Seu padre
Queremos casar agora.
O padre disse: – Está certo
O casamento se faz
Nem precisa dar os nomes
Da moça, nem do rapaz
Por mim já estão casados
Podem ir viver em paz.
Quem duvidar desta estória
Diz que não é verdade
Não acreditando em mim
Pergunte a Pedro Bandeira
Foi ele com Expedito
Que escreveram a primeira.
MANOEL CABOCLO E SILVA – O poeta, editor, tipógrafo e almanaquista cearense de Juazeiro do Norte, Manoel Caboclo e Silva (1916-1996), também foi agricultor e astrólogo, tendo uma trajetória que, segundo Gilmar Carvalho, fundiu cultura oral e escrita, ciência e magia, passado e futuro na trama de um texto tão rico quanto as experiências que acumulou. Para o poeta: "Cordel não é aquele que está depundurado num cordão, é aquele que foi feito com as cordas do coração".
FONTES:
ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado de Letras, 1999.
ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Folhetos - A literatura de cordel no NE brasileiro.. São Paulo: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, USP, vol. 1, 1979.
BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal: Fundação José Augusto, 1977.
CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Cordel. São Paulo: Hedra, 2003.
CARDOSO, Tania Maria de Sousa; Elementos para uma biografia de José Pacheco e Rodolfo Coelho. Natal: UERN, s/d.
CARVALHO, Gilmar. Manoel Caboclo e Silva. São Paulo: Hedra, 2000.
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global Editora, 2002.
LOPES, Ribamar (org.). Literatura de cordel — Antologia. Fortaleza, Ministério do Interior/Banco do Brasil, 1983.
MEYER, Marlyse. Autores de cordel. São Paulo: Abril, 1980.
SANTOS, Olga de Jesus; VIANA, Marilena. O negro na literatura de cordel. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1989.
VEJA MAIS:
LITERATURA DE CORDEL
Veja
mais sobre:
Jung
& Holística, André Malraux, Leilah Assumpção, Haroldo
Marinho Barbosa, Antonín Mánes, Coletivo Chama, Viúvas de marido vivo,
Maria de Fátima Monteiro, Pedro Cabral Filho & Goretti Pompe aqui.
E mais:
Cordel Aos poetas clássicos, de Patativa do Assaré aqui.
A poesia
de Clauky Boom aqui.
Moro num
pais tropicaos, de Marcio Baraldi aqui.
Cordel Eu vi o brasí jogá, de Zé Brejêro aqui.
As
olimpíadas do Fecamepa aqui.
A arte
de Ana Luisa Kaminski aqui.
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Leitora Tataritaritatá!!!
CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital
Musical Tataritaritatá - Fanpage.