Ao som dos álbuns Sangue negro (Independente, 2016) e Rasif (Far Out Recording, 2018), do pianista e compositor Amaro Freitas.
TRÍPTICO
DQP: - O rio é seu, una-se... - O que da hora não havia, o canto sobrevoou o dia e esborrei no peito:
asas para que te quero! Nada mais, pelos tombos quem diria: um espantalho desce
a correnteza. Algo me dizia que tudo poderia acontecer. E se o que nubla
esconde a luz, por trás das nuvens os olhos de Beuys perdidos na Crimeia: eu amo o mundo e o mundo me ama. Ou quase
assim, faz de conta, valia o aprendizado de enxergar no escuro, coisas de quem
sabe o visinvisível. Como se fosse o possível estava ali a Bomba de mel no
local de trabalho, A matilha diversa, O terno de feltro e o canto gorduroso
para os sete mil carvalhos resgatados pelos tártaros, a reputação em migalhas e
as controvertidas situações desacademizadas, afora como explicar desenho a uma
lebre morta e etcéteras. De tudo vesti
nas desmistificações antroposóficas, aprendia do paradoxo inventando hestórias
e me divertindo com mentiras de nada, até ouvi-lo in loco sussurrar: Tornai
os segredos produtivos... Arte
para mim é a ciência da liberdade... Aí desci outra vez pés no chão e não me contive apenas em observar nem só assistir
o que passava, pus as mãos à obra e se o mundo fosse outro eu não seria quase
nada. Para quem não sabia o que tinha, só o rio e a fundura das acontecências...
A
mulher do por do Sol... – Imagem: arte do artista visual Ricardo Aidar, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. – Assim foi, deixa então eu
contar: Hera Consuelo sempre foi a mais solitária de todas as mulheres. Não
sabia como ela conseguia se exibir vestida constantemente de verde escuro e
como tal se via homérica e sonhava com seu temperamento irritadiço, quando não vingativo,
os olhos vivos na cauda de pavão. Desde que me entendo por gente que sei dela
moradora do lendário casarão do Alto do Inglês. Agora ela era a mais recente lenda: a da adoradora do pôr do Sol. De
seus antepassados apenas soubera ter sido ela abandonada pelo marido na segunda
prenhez, já que os nervos à flor da pele destilava a fúria pelas traições
maritais. Saiu, dizem, foi ali e não voltou mais. Restaram-lhe o viúvo pai, o
primogênito e uma irmã caçula viageira. Não demorou muito e, prestes a dar à
luz, um segundo baque: o chato ricaço metido a poeta levou um coice dum cavalo indômito
e era uma vez o pai, bateu as botas. Herdou dele uma fortuna inestimável e
todos os bafos da prepotência, mantendo-se cada vez mais em vestes verdes
escuras quase pretas, o seu luto perene. Quando pariu, nem se livrou do
resguardo e tomou providências inadiáveis: construiu um trono suntuoso para si,
fechou-se em copas e segurou as lágrimas, uma vez que viu malogrado o sonho de
ter muitos filhos, quatro pelo menos, não deu, teve de se contentar com apenas dois.
Elaborou todo um código moral para lá de estranho e só justificável por sua
própria conduta: a dona da razão. Tornou-se então a matriarca da nona lunação, sem
saber que todos, inclusive os filhos, sonhavam que ela tivesse o fim de
Jesabel: jogada pela janela. O tempo passou e o mais novo consegue fugar sob o
argumento de estudar na capital, dolorosa separação. Segurou o mais velho
oferecendo algumas regalias. Um ano e meio depois, o caçula foi estrangulado
por obra de não se sabe quem, cogitou-se suicídio, mas não. Nem bem passara dez
meses, o primogênito foi abatido pelo infortúnio. A desgraça rondava e ela pensou
abdicar de tudo e se tornar uma Noiva do Cordeiro; nada, era rica demais para
tais austeridades: Para ir pro céu, sabia, não precisava de tudo isso. A irmã que
não parava quieta em lugar algum havia se hospedado num hospício, ao receber
sua visita não resistiu: foi-se o último parentesco. E começou a remoer Madame de Staël: A consciência é uma pequena lanterna que a
solidão acende à noite... E mais ainda Érico Veríssimo: A gente foge da solidão
quando temos medo dos próprios pensamentos... Estava verdadeiramente só, o mundo girava na sua cabeça, afora outros
acontecimentos que teimava não relembrar e quase nem conseguia mais dormir:
sonhava uma cobra mordendo um dos seus seios. E só revigorava repetindo Louisa Lawson: Não há poder no mundo como o de uma mulher... Solitária de ferro e de décadas, o mando madeira de lei, só se rendia
ao medo de envelhecer e à dúvida claustrofóbica guardou os versos do pai e as memórias
do suposto marido tido por falecido nas ideias dela. Assim se reinventava na
solidão.
Aura
de Fuentes... - Imagem: Aura, arte da designer e ilustradora chilena Alejandra Acosta. – O surpreendente nasce do quase impossível. E lá
estava eu envolvido ao que parece em uma trama de Carlos Fuentes recorrentemente: Há coisas que sentimos na pele, outras
que vemos com os olhos, outras que apenas pulsam no coração... Atendi ao chamado e, por incrível que pareça, ouvia dela as
recomendações: era para reunir e organizar os sonetos paternos e as memórias
maritais. Não fora fácil aquele encontro e se deu não sei como: a dificuldade
de acesso pela escuridão, a voz guiando os degraus das escadarias, o trato
quase imprevisível, o mistério do que poderia acontecer. A minha aceitação só ocorreu
na hora em que Aura apareceu para me encaminhar aos aposentos laborais. Deveras,
ela era um anjo, só podia ser. Não acreditava nisso, mas eu adivinhava. O encanto,
a chave, os olhos verdes, a papelada do baú e as horas das refeições. E ao meu
ouvido o escritor: Devemos imaginar o passado para
que o futuro, quando vier, também seja lembrado, evitando assim a morte dos
eternamente esquecidos... E não podia imaginar nada porque ela era mesmo um anjo, e tive a certidão quando caiu sobre o meu telhado, nua
do céu. Tive de removê-la até o meu quarto, arrastá-la pela escadaria, deitá-la
sobre a minha cama. O difícil era ter que cuidar dela, nunca fizera aquilo: as
feridas nos cotovelos e joelhos, a roncha inchada na face esquerda. Aquela nudez
angelical, ela espalmada era um encanto pros meus olhos ateus, os seios para o
carinho da minha mão atrevida, as coxas para que eu deslizasse minha
concupiscência. E na minha cabeça, o autor soava: Ninguém
tem nada a perder...
A beleza só pertence a quem a compreende,
não a quem a possui... Retomava os
meus afazeres e vez em quando dava pela presença de um coelho de uma brancura
brilhante pelos recantos da casa. Saía a procurá-lo e desaparecia em direção ao
quarto onde ela estava acomodada. Quase o peguei, escapou-me não sei como. Vasculhava
a casa e, de repente, dei com os olhos de Aura completamente restabelecida. Vi-lhe
as asas armadas ao voo, mas não, ela reacomodou-se e me disse da vida e da
morte, e o que estava acontecendo. Fui por ela levado, adormeci sobre seu corpo
e sonhei as tantas noites que nela estive outras vezes e as duas faces de uma
mesma mulher a mim se revelaram: ora a jovem sedutora, ora a anciã solitária. Ambas
viajantes sob a pele de um coelho mágico. Como podia ou foi me acontecer, eu
não sei nem será preciso. Até mais ver.
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