segunda-feira, fevereiro 20, 2023

FUENTES, BEUYS, LOUISA LAWSON & UNA-SE

 

 Ao som dos álbuns Sangue negro (Independente, 2016) e Rasif (Far Out Recording, 2018), do pianista e compositor Amaro Freitas.

 

TRÍPTICO DQP: - O rio é seu, una-se... - O que da hora não havia, o canto sobrevoou o dia e esborrei no peito: asas para que te quero! Nada mais, pelos tombos quem diria: um espantalho desce a correnteza. Algo me dizia que tudo poderia acontecer. E se o que nubla esconde a luz, por trás das nuvens os olhos de Beuys perdidos na Crimeia: eu amo o mundo e o mundo me ama. Ou quase assim, faz de conta, valia o aprendizado de enxergar no escuro, coisas de quem sabe o visinvisível. Como se fosse o possível estava ali a Bomba de mel no local de trabalho, A matilha diversa, O terno de feltro e o canto gorduroso para os sete mil carvalhos resgatados pelos tártaros, a reputação em migalhas e as controvertidas situações desacademizadas, afora como explicar desenho a uma lebre morta e etcéteras. De tudo vesti nas desmistificações antroposóficas, aprendia do paradoxo inventando hestórias e me divertindo com mentiras de nada, até ouvi-lo in loco sussurrar: Tornai os segredos produtivos... Arte para mim é a ciência da liberdade... Aí desci outra vez pés no chão e não me contive apenas em observar nem só assistir o que passava, pus as mãos à obra e se o mundo fosse outro eu não seria quase nada. Para quem não sabia o que tinha, só o rio e a fundura das acontecências...


 

A mulher do por do Sol... – Imagem: arte do artista visual Ricardo Aidar, integrante do Grupo Ateliê Virtual 2022. – Assim foi, deixa então eu contar: Hera Consuelo sempre foi a mais solitária de todas as mulheres. Não sabia como ela conseguia se exibir vestida constantemente de verde escuro e como tal se via homérica e sonhava com seu temperamento irritadiço, quando não vingativo, os olhos vivos na cauda de pavão. Desde que me entendo por gente que sei dela moradora do lendário casarão do Alto do Inglês. Agora ela era a mais recente lenda: a da adoradora do pôr do Sol. De seus antepassados apenas soubera ter sido ela abandonada pelo marido na segunda prenhez, já que os nervos à flor da pele destilava a fúria pelas traições maritais. Saiu, dizem, foi ali e não voltou mais. Restaram-lhe o viúvo pai, o primogênito e uma irmã caçula viageira. Não demorou muito e, prestes a dar à luz, um segundo baque: o chato ricaço metido a poeta levou um coice dum cavalo indômito e era uma vez o pai, bateu as botas. Herdou dele uma fortuna inestimável e todos os bafos da prepotência, mantendo-se cada vez mais em vestes verdes escuras quase pretas, o seu luto perene. Quando pariu, nem se livrou do resguardo e tomou providências inadiáveis: construiu um trono suntuoso para si, fechou-se em copas e segurou as lágrimas, uma vez que viu malogrado o sonho de ter muitos filhos, quatro pelo menos, não deu, teve de se contentar com apenas dois. Elaborou todo um código moral para lá de estranho e só justificável por sua própria conduta: a dona da razão. Tornou-se então a matriarca da nona lunação, sem saber que todos, inclusive os filhos, sonhavam que ela tivesse o fim de Jesabel: jogada pela janela. O tempo passou e o mais novo consegue fugar sob o argumento de estudar na capital, dolorosa separação. Segurou o mais velho oferecendo algumas regalias. Um ano e meio depois, o caçula foi estrangulado por obra de não se sabe quem, cogitou-se suicídio, mas não. Nem bem passara dez meses, o primogênito foi abatido pelo infortúnio. A desgraça rondava e ela pensou abdicar de tudo e se tornar uma Noiva do Cordeiro; nada, era rica demais para tais austeridades: Para ir pro céu, sabia, não precisava de tudo isso. A irmã que não parava quieta em lugar algum havia se hospedado num hospício, ao receber sua visita não resistiu: foi-se o último parentesco. E começou a remoer Madame de Staël: A consciência é uma pequena lanterna que a solidão acende à noite... E mais ainda Érico Veríssimo: A gente foge da solidão quando temos medo dos próprios pensamentos... Estava verdadeiramente só, o mundo girava na sua cabeça, afora outros acontecimentos que teimava não relembrar e quase nem conseguia mais dormir: sonhava uma cobra mordendo um dos seus seios. E só revigorava repetindo Louisa Lawson: Não há poder no mundo como o de uma mulher... Solitária de ferro e de décadas, o mando madeira de lei, só se rendia ao medo de envelhecer e à dúvida claustrofóbica guardou os versos do pai e as memórias do suposto marido tido por falecido nas ideias dela. Assim se reinventava na solidão.


 

Aura de Fuentes... - Imagem: Aura, arte da designer e ilustradora chilena Alejandra Acosta. – O surpreendente nasce do quase impossível. E lá estava eu envolvido ao que parece em uma trama de Carlos Fuentes recorrentemente: Há coisas que sentimos na pele, outras que vemos com os olhos, outras que apenas pulsam no coração... Atendi ao chamado e, por incrível que pareça, ouvia dela as recomendações: era para reunir e organizar os sonetos paternos e as memórias maritais. Não fora fácil aquele encontro e se deu não sei como: a dificuldade de acesso pela escuridão, a voz guiando os degraus das escadarias, o trato quase imprevisível, o mistério do que poderia acontecer. A minha aceitação só ocorreu na hora em que Aura apareceu para me encaminhar aos aposentos laborais. Deveras, ela era um anjo, só podia ser. Não acreditava nisso, mas eu adivinhava. O encanto, a chave, os olhos verdes, a papelada do baú e as horas das refeições. E ao meu ouvido o escritor: Devemos imaginar o passado para que o futuro, quando vier, também seja lembrado, evitando assim a morte dos eternamente esquecidos... E não podia imaginar nada porque ela era mesmo um anjo, e tive a certidão quando caiu sobre o meu telhado, nua do céu. Tive de removê-la até o meu quarto, arrastá-la pela escadaria, deitá-la sobre a minha cama. O difícil era ter que cuidar dela, nunca fizera aquilo: as feridas nos cotovelos e joelhos, a roncha inchada na face esquerda. Aquela nudez angelical, ela espalmada era um encanto pros meus olhos ateus, os seios para o carinho da minha mão atrevida, as coxas para que eu deslizasse minha concupiscência. E na minha cabeça, o autor soava: Ninguém tem nada a perder... A beleza só pertence a quem a compreende, não a quem a possui... Retomava os meus afazeres e vez em quando dava pela presença de um coelho de uma brancura brilhante pelos recantos da casa. Saía a procurá-lo e desaparecia em direção ao quarto onde ela estava acomodada. Quase o peguei, escapou-me não sei como. Vasculhava a casa e, de repente, dei com os olhos de Aura completamente restabelecida. Vi-lhe as asas armadas ao voo, mas não, ela reacomodou-se e me disse da vida e da morte, e o que estava acontecendo. Fui por ela levado, adormeci sobre seu corpo e sonhei as tantas noites que nela estive outras vezes e as duas faces de uma mesma mulher a mim se revelaram: ora a jovem sedutora, ora a anciã solitária. Ambas viajantes sob a pele de um coelho mágico. Como podia ou foi me acontecer, eu não sei nem será preciso. Até mais ver.

 

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