A PAIXÃO DO
ARTESÃO – Imagem: Art by Nick Alm - Zé Pigmalião não tinha pai nem mãe. Sozinho no mundo,
parente nenhum. Filiação ignorada, dizia a todos que brotou da Terra assim do
nada, criado entre as flores dos jardins. Passava as quatro festas do ano
olhando pras estrelas, cuidando dos pomares e desejando as mulheres graciosas que
zanzavam impunes pelas calçadas e ruas. Aguçava o dente com seus olhos
apertados de paixão pra elas, nada podia fazer, era só desdém. Quando via uma:
é ela! E não sabia nem quem era a perseguir o movimento de cada passo, para se
certificar: perfeita, seios, cintura, boca, olhos, semblante, tudo. É essa que
eu quero. Imaginava a nudez e se espantava. Não dava, findava às arrancadas, em
disparada: Pega o tarado! Quarentão, donzelo, artesão e jardineiro, quase passado
no tempo. Nenhuma mulher o quis a vida toda, nem falar namoro o cara sabia, todas
as investidas foram malogradas. Não adiantava ajeitar o boné, o surrado macacão,
amolegando a peia pra cima ou pra baixo, de alpercatas ou galocha, com outras
tantas manias de olho clínico, um termômetro embaixo do sovaco para conferir o
tanto de febril que vivia, afora de fazer gargarejos de hora em hora pro bafo
não espantar formosa que lhe aparecesse. Não fazia cara feia, nem botava gosto
ruim, fazia-se simpático celibatário de morrer na punheta com a primeira que
passasse. Onde chegasse: Pronto, apareceu o tabacudo. Aí, um dia, deu de cara
com uma grande pedra de gesso abandonada num canto qualquer. Teve uma ideia e
trabalhou nela noitedia. Ao final, a imagem de uma santa – que era só santa
porque nome não tinha, feita por artes dele mesmo, toda nua em tamanho natural.
Caprichou em cada detalhe: olhos fechados, bela, lábios salientes entreabertos,
seios fartos, ventre profundo com orifícios apropriados e confortáveis, ancas
bem delineadas, coxas e pernas torneadas e abertas, perfeita, só faltava falar.
Admirava de passar horas de queixo caído. Deu, então, de cerzir suas vestes,
todos os paramentos: o capuz, o limpel pro pescoço, todo hábito do coro. Pronto,
diante dela se ajoelhava e se punha a rezar o dia todo, deitando-a de noite, com
todo jeito na cama e com ela sonhar tudo o que queria. Queria casar com ela,
mas quem aprovaria. Um escândalo: Como é que pode? Só intrigas e falações. Matutou
por dias e findou presenteando ao pároco e lá, aos pés dela, rezava todo santo
dia e o dia todo. Por sua assiduidade ali, passou a ser coroinha. Feliz seria
para sempre não fosse a sua agonia: expulso por libidinagem com a santa - era ela
quem desafogava as horas de aperto e precisão dele. Um vitupério, o fim da
picada. Mudando de cão para gato, podia ter sido mil e duzentas, como mil cento
e noventa e nove que não contei quantas vezes ele chegava perto de um: Você viu
ela? Sai pra lá quejudo. Ninguém queria mais conversa com ele: Isso é um
amaldiçoado! Eis que o clone PB-010 – aquele que só dava dor de cabeça ao Padre
Bidião e agora apelidado de Estrupício, entra em cena. Qual o seu problema? Ele
nem soube contar direito e sofreu extorsão de todo jeito. Ardiloso, aprontou
pra cima dele, apresentando uma certa dama por nome de Dulcinéa Galatéa del
Toboso. Pronto, Quixote, se aprume aí. Hem? Ele olhou, conferiu por baixo da
saia, embaixo da blusa, de todo lado, dava pro gasto, uma meretriz aprumada,
ajeitada pelo clone malfeitor. Mas não é a minha santa! Faz de conta, bestão. É
pegar ou largar! Pois bem, botou dentro de casa e não sabia o que fazer, nem ela
facilitava, só aboletada no divã, pedindo as coisas e exigindo mais. Até que
era bonita pra ele, mas do jeito que ela ficava não dava pra bater sequer uma
bronha. Assim não dava e devolveu-la ao chantagista. Trancou-se no quarto e
passou dias meditando. Semanas depois estourou no noticiário: roubaram a santa
sem nome da igreja. E ele: E foi? Que coisa! © Luiz Alberto Machado.
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DITOS & DESDITOS:
[...] À minha frente,
Zilda, com um vestido que procura dissimular o volume do ventre, pousou as mãos
no regaço e olha a paisagem. “Nunca cheguei a imaginá-la com um vestido desse –
dizia-lhe há pouco. Só pensava em você trepando em árvores, jogando bola,
atirando de baladeira e coisas assim. Talvez foi por isso que tive ciúme,
quando soube que ia casar-se”. [...] Não
é isso – expliquei. É que possuímos tantas lembranças comuns! Além do mais, o
fato de me haver separado de você e, durante tantos anos, não ter notícias
suas, conservou-a imutável. Era como nos contos: um Reino Encantado. A notícia
rompeu o encanto, foi isto. Você não era mais aquela menina de quem eu me
lembrava. [...] Por um inexplicável
pudor, abstive-me de revelar que, até então, contara com a possibilidade de
reencontrá-la solteira, ideia essa mesclada com uma infinidade de anseios. (E
que, deste modo, o sentido que ela atribuíra à palavra ciúme, não era de todo
modo inexato). Mas não contive o desejo de confessar que durante certo período
da infância, meu primeiro pensamento era dedicado a ela e que as noites, eu só
as suportava por ter certeza de que o dia seguinte nos reuniria outra vez.
[...] Sua voz cantante, um pouco áspera e
mesmo assim agradável, tornou-se pausada; o riso é menos vibrante; e os olhos,
embora conservando o brilho antigo, já não possuem a mesma vida: de alegres que
eram, têm agora um quê de melancólica serenidade. [...] Frágil e alto muro dividia nossos quintais.
Mas não era tão alto nem frágil que que nos impedisse de escalá-lo e aí ficarmos
empoleirados: eu sonhando, contando histórias, declamando versos, inventando
projetos; ela escutando, tornando meus planos mais ousados, minhas histórias
mais excitantes, erguendo-se, sentando-se, levantando-se outra vez e seguindo
ao longo do muro, com uma segurança que ainda hoje me espanta. [...] Uma barreira pedregosa ergue-se aos lados do
trem. Arestas lívidas se sucedem. Súbito, o panorama se abre. Descortinamos uma
pastagem ampla, que se estende até o cume de um monte, ultrapassa-o. [...] Somos, não resta dúvida, temperamentos
díspares. Está visto que essas evocações não têm igual valor para nós. Ela tem
uma visão imparcial do que lhe sucede na vida. Sua memória, demasiado fiel, não
transmuda nem escolhe. E se esqueceu alguma coisa, não é por nenhum motivo.
Esqueceu-a, apenas. [...]. O tesouro
que eu supunha comum, é unicamente meu – verifico. Apesar de havermos vivido
durante muito tempo as mesmas aventuras, cada um recolheu o que elas continham
de si próprio. Evocá-las, jamais repetirá o milagre de fazer com que sejam um
elo entre nós – se é que mesmo naquele tempo estivemos unidos algum dia.
[...] Olho para fora. A linha férrea
margina agora a estrada de rodagem. A máquina desprende vapor, ruidosamente,
atirando para trás uma poalha líquida, iluminada pelo sol. Através da
iridescente neblina, num cabriolé de rodas vermelhas, segue uma jovem de azul.
O cavalinho baio tem uma papoula na testa. A moça sorrindo, leva uma rosa na
mão e acena para o trem com a sua flor. Respondo ao seu adeus.
Trechos extraídos do conto Reencontro (Melhores contos de Osman Lins - Global, 2003), do
escritor e dramaturgo Osman Lins (1924-1978). Veja mais aqui.
A ARTE
DE NICK ALM
A arte de Nick Alm
AGENDA:
Com os olhos de
náufrago ou onde fica o próximo ponto – exposição de Alice Vinagre &
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&
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Cardoso, Bruna Beber, Rocco Forgion, Marcus Viana & Ibirajuba aqui.
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