VIÚVA NEGRA - Imagem do artista francês Louis Treserras. - Narcisaura era bela e triste, pelos cantos, nem
falar falava. Belíssima como a paisagem da tarde de verão em que o Coronel
Barradão botou os olhos nela e logo se interessou: Quem é aquela putinha linda?
Logo soube, capatazes pra isso. Foi ter com o pai dela: Ô Narcisildo, vou pegar
tua filha pra casar! Pode levar, Coroné. E pegou-la, pôs nos braços e saiu
ladeira abaixo, casa grande adentro: Cambada! Chegou a rainha da casa! As
serviçais todas apareceram às carreiras: Quero banho, limpeza e formosura do
melhor de tudo pressa aqui e agora! A rainha do meu império! Levaram-na aos
gritinhos, risadagens e cochichos. Ele, então, apoderou-se de um copo e ficou
bebericando da aguardente forte como o seu bafo, cuspindo no chão, enquanto pensava
em casar, coisa que nunca quisera na vida, jamais, como podia acontecer justo
agora, estava amarrado de paixão e aguardava o banho de loja. Imaginava uma
grande festa, não, melhor não, uma cerimônia só para íntimos, com padre e juiz,
não, isso não, nunca! Uma, duas, três doses, meiota, litro esvaziado, outro às
doses, lá pras tantas ela aparece encantadora. Ele arregala os olhos espatando
com tanta boniteza: Ô mulé bunita da gota! Então, abre a cortina e um lindo
altar com um trono no cume aparece, ele toma-lhe uma das mãos e sobe degrau a
degrau até sentá-la no trono: Daí você, minha rainha, só sai pras três refeições
e pra cama comigo, nada mais; esse o seu trono de deusa. Ele desce, retoma o
copo e fica admirando a lindeza. Toma todas as providências para que ela assuma
o seu poder: fazenda, negócios, tudo dela. Nessa hora entra um jagunço: Que é
cabra? O caboeta cochicha em seu ouvido: Mande ele vir aqui, agora! E volta pro
seu entretenimento de não piscar o olho de tão arrebatado por tamanha beleza. E
jurava amor e tudo dele pra ela, tudo. Alguns instantes depois, um sujeito espadaúdo,
musculoso, rústico, deferente, entra e a ele se dirige: Sim, senhor, Coronel!
Ela viu aquele moço corpulento, não conseguiu evitar-lhe o olhar. Eu soube
dumas ações de vossência, é verdade? Sim, senhor. É isso mesmo que me contaram?
Sim, senhor, sou seu escravo, estou às suas ordens. Está despedido! Não quero
aqui ninguém mais macho que eu, caia fora e já. Sim, senhor. Ao sair, ela
acompanha seus passos sem conseguir deixar de vê-lo, o porte atlético, a
macheza, a robustez. Agora, minha deusa, desça e vamos já pro serviço no meu
quarto. Ela desceu, ele a levou gentilmente nos braços e quando cerrou as
portas, só se ouvia os gemidos e os gritos dela aos caprichos dele. Três dias ali
enfurnados, ele nas intimidades dela. Logo ela se viu na monotonia de viver
pendurada no trono dias, tardes e noites. Aos cochichos com as mucamas, soube a
real razão da demissão daquele rapaz: pegava cobra de mão, matava bicho de murro,
cabra mais macho do mundo, era Hércules o nome dele. E ela suspirava. Cadê ele?
Ninguém sabia mais seu paradeiro. Já sei o que fazer. Dez dias se passaram e
apartir daí o Coronel Barradão começou a definhar, raquítico, tísico, secou,
bateu as botas, enterrado no oitão da fazenda, no jazigo da famíla. Tudo era
dela, a viuva. Cadê Hércules? Ninguém sabia. Uns dez meses depois, cansada da
procura, encontrou um bonitão de voz maviosa e cheio dos galanteios: o
Ronitércio que chegava com uma mão na frente e outra atrás, lábia de derrubar o
céu e o inferno, virilidade para dar e vender na maior safadeza. Ela agarrou-se
nele de perder as saias, as anáguas, as calcinhas e quase a própria vida: o
amor acontecia pela primeira vez na vida pra ela. Nem dois anos se passaram, a
infidelidade dele de passar o rodo em quantas cruzassem seu caminho, chegou aos
seus ouvidos. Como? Ah, é. Jurou vingança e dez dias depois ele começou a
encruar, esmoreceu, até se esgotar de ficar só os ossos. Outro pro mausoléu da
fazenda. Ela não derramou uma mínima lágrima, fechada, silenciosa, tristonha:
Homem nunca mais! Isso, um ano e meio depois, aparecer o ricaço Ivonetildo com
um baú repleto de posses: escrituras, dólares, ações do mercado, ouro e
petróleo, tudo pra ela, ele e suas posses aos seus pés. E ela: Beije meus pés. E
ele lá, por horas, ajoelhado aos ósculos e mimos. Lamba o solado dos meus pés! Não
só lambidas, carinho extremo nos membros inferiores dela. Não passe do
calcanhar, seu merda! Dias e mais dias e ele ali se arrastando aos seus
caprichos. Vá embora, chato! Ele não ia, chorava, esperneava para ficar ao lado
dela, queria era casar. Ela então passou a fazer exigências, tudo ele trazia e
dava, de papel passado e tudo. Já tomei tudo, mas por via das dúvidas, vou
casar com ele. E casou sob a condição dele nunca tocá-la sem autorização, só os
pés, as pernas ou onde só quando ela mandasse. Ele aceitou, jurou pro padre e
pro juiz. E se passaram alguns meses, quando quase um ano, o homem começou a
murchar de sobrar só a caveira. Enviuvava pela terceira vez, poderosa e
abastada. Nem havia passado o luto, ela viu alguém que já conhecera passando na
rodagem em frente da fazenda. Quem é aquele que vai ali? É Hércules. Vá lá e mande
ele vir aqui, é uma ordem! Ele veio, ela quase desmaia diante daquele que
mexera com seu íntimo desde o primeiro dia. O que está você fazendo da vida,
homem? No momento estou desempregado, senhora. Está empregado, você vai tomar
conta de toda fazenda. Sim, senhora. E só se ouvia o dia pela noite: Hércules!
Hércules! Ele pra lá e pra cá, dentro do quarto, virando a noite, mandando e
desfazendo as coisas, saciando a patroa em tudo, aos beijos e solavancos pela
sala, na escada, nos batentes, na cozinha, no passeio do jardim, até o dia que
ela abriu a cortina e ofereceu o trono da casa a ele. Hércules olhou pra ela e
disse: Já tenho tudo aqui, minha senhora. Eu quero você lá! Não nasci para ser
rei, nasci para ser escravo e cumpro a minha missão. Eu ordeno! E ela
agarrou-se nele sedenta para ser possuída por ele subindo os degraus até o
trono. Assim foi o resto da noite até o dia amanhecer. Ao despertar, procurou
por ele e só restava o lugar mais limpo. Hércules! Hércules! Nem sinal dele. Cadê
Hércules? Ao dar por si, todas as faces da casa respondiam cabisbaixas que ele
havia ido embora. Ela chorou por meses. Ele nada dissera, mas a população já dizia
que ela havia matado os outros três maridos com um chá de sapo, por isso, ele
foi embora desconfiado, para não morrer. Agora todos a condenavam, ninguém
sequer sabia do que ela havia passado na infância e na adolescência, ninguém sequer
desconfiava, somente ela, sozinha, tristonha. © Luiz Alberto Machado.
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DITOS & DESDITOS:
Anoiteceu e faz frio, quarenta e quatro anos e cinco meses, como passa
rápido “Meu Deus”, eu sinto o frio circular que sai do assoalho e se infiltra
no tapete, meu tapete é Persa, aliás, todos meus tapetes são Persas. Mas eu não
sei o que esses bastardos fazem que não impedem que o frio se instale. Onde
agora, onde? Eu poderia pedir que acendessem a lareira, mais eu mandei o
copeiro ir embora, o copeiro, a arrumadeira, a cozinheira; todos rua, um a um,
uma corja que ri de mim pelas costas. Mas onde agora, onde? A lenha, em
algum lugar da casa, mais acender a lareira, não é tão fácil como parece no
cinema, o xinês ficava horas e horas assoprando e mexendo até acender e eu mal
tenho forças para acender meu cigarro. Onde agora, onde? Eu desliguei o
telefone da parede, peguei a garrafa de whisky, estou sentada aqui a não sei
quanto tempo, bebendo, mais bebendo devagar, por que hoje, hoje eu
não quero ficar bêbada, hoje não. Engraçado sabe, eu to sentada aqui a não sei
quanto tempo, foi escurecendo e eu não acendi as luzes da casa e agora que está
escuro eu vejo, vejo essa sala exorbitando de riqueza, uma riqueza inútil,
fútil, coisas que eu comprei nas minhas viagens pelo mundo a fora e eu nem
lembrava mais que tinha. Mas onde agora, onde? Eu tenho um
velho que me dá dinheiro, um jovem que me dá gozo e um sábio que me dá
aulas de doutrinas filosóficas, uma filosofia tão platônica que na segunda aula
ele se deito comigo, mais você acha que eu me importo com que ele ou qualquer
pessoa pensa de mim? Claro que não, mais eu já me importei. E por causa da
opinião alheia, é que hoje, ah hoje eu tenho um casaco de Vizon,
um gato Siamês, eu tenho um sapato com fivela de diamante, eu tenho um
piano com calda, uma chácara com piscina, um diamante que é quase do tamanho do
ovo de uma pomba e um aquário com floresta de coral no fundo. Mas eu trocaria
tudo, tudo, anéis e dedos, mais uma vez, só mais uma vez, ouvir o som do
saxofone e saber que ele está bem em algum lugar, nem pediria para vê-lo, não
eu não pediria tanto. Mas onde agora, onde? A primeira vez que nós nos amamos
foi numa praia e era uma noite muito quente, então nós entramos na água do mar
nús e a água parecia a água de uma banheira, uma água morna e ele ficou
assustado quando eu disse que nunca tinha sido batizada, então com as
mãos em concha, ele pegou a água depositou na minha cabeça e disse: Eu te
batizo Luiziana, em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, Amém! Eu pensei
que ele tava brincando, mais ele nunca falou tão sério em toda sua vida.
Luiziana, Luiziana, nunca mais ninguém me chamou assim. Onde agora, onde? Nessa
noite na praia eu disse a ele: Se você me ama, me ama mesmo, suba naquela duna,
nú como está e toque seu saxofone o mais alto que você puder até a polícia
chegar! Eu corri, vesti minha roupa, por que ele tocava tão alto que eu sabia
que a polícia não ia demorar. Ah, ele tinha o cabelo todo bagunçado, a camiseta
despencada, o sapato um lixo, mais o sorriso, ah, o sorriso era tão branco, tão
lindo, que quando ele sorria eu parava de sorrir só para ficar olhando o
sorriso dele. Ele me levou pra morar com ele, era um apartamento no 10º
andar, era um apartamento pequeno, pobre, feio, sujo, mas nós nos amamos tanto
e fomos tão imensamente felizes naquele 10º andar. Em uma noite, uma
noite ele me levou para jantar e afinal eu disse á ele: Se você me ama, me
ama mesmo, dei me cá seu saxofone e suba naquela mesa, grite o mais alto que
você puder cornudos, todos cornudos! Ele me entregou o saxofone, enquanto eu
saia envergonhada eu escutei ele gritando: cornudos, todos cornudos! Me
alcançou na rua e me implorou: Luiziana não me negue, não me negue. Era um amor
grande demais, entende? Eu não sabia o que fazer com um amor tão grande assim,
na hora a gente nunca sabe. Por acaso alguém dá valor na respiração? Haha, da
né, quando ela se esculhamba toda, ai todo mundo da valor. “Poxa eu respirava
tão bem.” Mais na hora que ta tudo dando certo, a gente não dá valor, eu não
dei. Comecei a ficar exigente sabe; Se você me ama, me ama mesmo, me dê um par
de brincos! Se você me ama, me ama mesmo me dê um vestido novo! Se você me ama,
me ama mesmo me leve pra jantar em lugares chiques! Se vc me ama, me ama mesmo…,
ele começou a trabalhar tanto que ele saia pra tocar nos bares durante a noite
e só voltava no outro dia, já amanhecendo, cansado ele deitava na cama
enrodilhado tocava o saxofone e ainda me dizia: Luiziana, Luiziana você é minha
música e eu não vivo sem música. E abocanhava o bucal do saxofone como fazia
com meu seio. Eu quis terminar sabe, mais eu não tive coragem, então eu decidi
que eu faria tudo pra que aquele amor apodrecesse de tal forma que um dia
ele fosse embora e nem olhasse para trás de tanto nojo. Então uma noite, uma
noite eu tinha um compromisso, nessa época eu vivia cheia de compromissos,
pintava meus olhos diante do espelho e ele tocava saxofone, eu ia me encontrar
com um banqueiro sabe, ele sabia disso, então eu parei, parei de pintar os
olhos, olhei pra ele e disse: Se você me ama, me ama mesmo, sai daqui agora e
se mate, imediatamente!
Conto Apenas um
saxofone, extraído da obra Antes do
baile verde (Bloch, 1970), da
escritora premiada e membro da Academia Brasileira de Letras do Brasil e de
Lisboa, Lygia Fagundes Telles. Obra
transformada no curta metragem homônimo, dirigido por Heber Trigueiro, em 2008,
e estrelado pela atriz Solange DeBarros. Veja
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A ARTE DE LOUIS TRESERRAS
A arte do artista francês Louis Treserras.
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