quarta-feira, novembro 14, 2018

YOURCENAR, HAN-NA CHANG, AMADEO DE SOUZA CARDOSO, CAOS 2018 & JOÃODITO


O ESPELHO DE JOÃODITO - Arte do pintor português Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918). - Por muito tempo o espelho ficou virado pra parede. As mortes da casa haviam se ocupado disso. Dessa vez, pela primeira vez em anos, Joãodito o colocou no lugar devido e fitou-se, limpando a superfície, contemplando a moldura. Há quanto tempo não vira seu semblante, quase nem se reconhecia ali. Viu-se ali refletido e entressorriu. Fitou-se por um logo tempo até percerber que sua feição começara a mudar. Como pode? Assustou-se, distanciando-se. Que coisa! Arrepiou-se dos pés à cabeça, não era ele ali refletido, as feições mudavam de instante a instante. Não conseguia acreditar no que via. Apanhou de uma toalha e o cobriu. E passou a noite sem conseguir conciliar o sono, olhos no teto, luz acesa. Criou coragem, tocou o interruptor e desligou a lâmpada do quarto, podia ser que na escuridão adormecesse. Pelo contrário, ouvia ruídos nunca percebidos, pisadas, chiados, movimentações sutis dentro e fora do ambiente. Cadê coragem de se levantar para uma apurada investigação a respeito. Ficara deitado, atento a tudo. Assim, o dia amanheceu finalmente, tudo às claras, saiu para conferir dentro de casa, tudo no devido lugar, o espelho coberto pela toalha. Aliviado com o que constatara e pelo resto do dia ocupou-se com os seus afazeres, embora aquelas imagens não lhe saíssem da mente. Comprou, vendeu, passou troco, negou, assentiu, coisas do cotidiano. A cada sim e não, uma pancada forte no coração. Deu conta das escolhas inconscientes cometidas a todo instante. Tomou água, ia para o escritório e não foi, resolveu voltar e sair dobrando a direita e ao se dar conta, retornou, devia ter virado à esquerda. Não, melhor meditar enquanto não fazia nada que tivesse que optar, apenas sentar e pensar. O dia entrou pela tarde e só pensava chegar em casa e encarar tudo de novo. Ao anoitecer, retornou para o lar e foi diretamente ao espelho. Hesitou. Hoje não. E foi deitar-se, sem pregar os olhos. Três dias seguidos e se arrependia, preferia tentar dormir, tantas noites em claro não lhe fariam bem. Decidiu-se, enfim, removeu a toalha e ficou fitando sua imagem refletida por longo tempo. Estava disposto a isso, determinado. Não vacilaria dessa vez. Então, depois de um longo tempo, olhar fime, uma luz começou a brilhar no interior e a tomar conta de toda superfície do espelho. Transformou-se lentamente em uma lua, inicialmente diminuta, até tornar-se gigantesca dentro da moldura. Dentro da esfera lunar as coisas se distorciam como um eco interminável. Viu-se duplicado no centro das imagens, a si e o outro sendo ele mesmo, consumidos por chamas dentro de um palácio de cristal que emergia de dentro do satélite. Surgiu um Aleph que girava no meio das transformações e passou a reviver ali toda a sua vida por instantâneas visualizações expressas da infância, a família, os momentos, a escola, as festas, a bicicleta, a adolescência, o namoro, sandices, ignominias, tentações, tudo misturado atemporalmente, coisas vividas e revistas desordenadamente. No meio do caleidoscópio foi aparecendo lá do fundo uma vela com uma aura forte e multicor na chama a se transformar em movimentadas ebulições. De repente, um vulto insinua-se, não sabe ao certo, algo próximo de uma monstruosidade. Afastou-se e conseguiu identificar a Medusa que lhe falou com uma voz rouca tonitruante: Não tema, você já é de pedra, a sua indiferença, a sua insensibilidade, o seu egoísmo, já me apoderei de você, ser petrificado e desprezível, não me escapará. Estou avisando: você não me escapará. E sumiu no negrume feito para reluzir sua própria efigie escurecida. Não, não era ele. Era Narciso e pode ver quantas vezes se fizera de si em nome da vaidade, do orgulho, da soberba. O que fiz da minha vida? Negou-se a si e a tudo. Como poderia? Não havia como se salvar e chorou a sua sorte, perdido no tempo e no espaço. Sentia-se pronto, não mais vivo, apenas presente e humano, era tudo ilusão, a vida pelos poros. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] O cônego explicava que o homem, ao infligir aos perversos o suplício das chamas, que dura apenas um momento, não faz senão conformar-se à lei de Deus, que os condena ao mesmo castigo, só que para sempre [...] Quando afinal Joana falou, o que lhe saiu dos lábios foi uma torrente de torpezas e obscenidades que sabiam ao mesmo tempo a esgoto e a Bíblia. O Rei (de Münster – Cidade de Deus) não fora jamais para a velha hussita senão um indigente a quem se concedia comer na cozinha e que ousou dormir com a mulher do patrão [...] Tais males, no entanto, nada mais eram do que a antecipação de uma calamidade infinitamente mais terrível. Vinda do Oriente, a peste entrara na Alemanha pela Boêmia. Viajava sem pressa, ao som dos sinos, como uma imperatriz. Debruçada sobre o copo do beberrão, soprando a vela do sábio recolhido entre seus livros, ajudando o sacerdote na missa, escondida como uma pulga sob a blusa da prostituta, a peste trazia à vida de todos um fator de insolente igualdade, um acre e perigoso fermento de aventura [...] Sua mulher era igualmente culpada, mas, como se considerasse indecente que uma criatura do belo sexo ficasse dependurada em pleno céu com as saias drapejando sobre a cabeça dos transeuntes, decidiu-se pelo antigo costume de enterrá-la viva. Essa brutal estupidez horrorizou Zênon, que, aliás, disfarçou a repulsa por detrás de uma impassível máscara facial, pois tinha por regra jamais deixar transparecer seus sentimentos relativamente a tudo o que se referisse às disputas entre o Missal e a Bíblia [...] A rigor, quase a contragosto, esse peregrino ao fim de um percurso de mais de meio século obrigava-se pela primeira vez n a vida a recompor em pensamentos os caminhos palmilhados [...] empenhando-se em fazer a escolha entre o pouco que parecia advir de si e o que pertencia ao acervo comum da sua condição humana [...].
Trechos extraídos de A obra em negro (Nova Fronteira, 1981), da escritora francesa Marguerite Yourcenar (1903-1987). Veja mais aqui e aqui.

A ARTEDE AMADEO DE SOUZA CARDOSO
A arte do pintor portugues Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918).

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Hoje curta na Rádio Tataritaritatá a música da cellista e maestrina sul-coreana Han-Na Chang: Cello Concert Haydn, Cello Concert Dvorak, Symphonie nº 5 Tchaikovsky & Adagio and allegro Robert Schumann & muito mais nos mais de 2 milhões & 800 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui, aqui e aqui.


PATRICIA CHURCHLAND, VÉRONIQUE OVALDÉ, WIDAD BENMOUSSA & PERIFERIAS INDÍGENAS DE GIVA SILVA

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