MEMÓRIA DO
BISACO - Imagem: arte da artista conceitual
austríaca Elke Krystufek - Um dia
escrevi um poema na carne sangue alto exaltado e meus ossos doídos sequer
pacificaram minhas trevas no peso da sorte. Nenhum lugar para que possa me
encontrar nos versos conjugados e aleatórios pulsantes, a perder-me a mim mesmo
por cartas que nem escrevi na profusão de touceiras descobertas do vazio em que
fui gerado no meio do sonho, escapando das formas penduradas no invisível e eu
sequer dava conta dos maus bocados batendo na porta. Quase exaurido pelo
desespero antecipado e tão desprevenido do mar porque todo rio desce comigo a
escorregar pela escadaria nas margens sumidas e às minhas próprias custas desentendido,
a poesia arremessada como se fora pedra catada no fundo do quintal. Pouco
importa se são duas horas da tarde ou se a comemoração foi cancelada e o
milagre inexistisse para quem parte ou quem chegou. Agora é tarde e não
bastassem tantos disfarces da dor e maldissesse de nada se Inez é morta. Há
mais de meio século de dentro pra fora e de fora pra dentro, quase tudo mudou.
Coisas que sumiram como por encanto na noite de muitos olhos acesos, só eu que
persigo as mesmas coisas, sem que me advirta do tempo perdido e suplico às
estrelas o dia radiante e a palavra me socorre para que eu não padeça
inconcluso. Faz tempo que estou aqui, desde menino inventando de tudo alegria de
ontem pra hoje na foto guardada, quase nem lembro nada, as histórias de
trancoso, o que deu na esquina, revoltas na rodagem e carestia na feira, como
se a memória poeira virasse e o esquecimento a lei coatora. Os retratos caíram
da parede e já não ouço direito com tanto barulho nas ruas, se festa ou
funeral, os pecados do corpo pelos beirais da morte, quem se apieda de tantos
tormentos, como se minha mudez fosse profana demais. Pudesse fazia coisas e
outras para que tudo fosse passado a limpo com prova dos nove fora e nada dar água
abaixo, ou gorando e prescrito, ilícito revogado como desvalido de agora
desdontem, desdantes; Poraqui tudo é muito triste e parece que anda para trás
com todas as raivas antigas que não dizem respeito de mim mas de todos que sou
arrebatado aos sapatos e sandálias velhas jogadas ao lixo da guerra diária, sem
repouso nem intervalo. Como tudo é tolice neste país alquebrado, anômalo,
desajeitado pelos transtornos políticos e patológicas roubalheiras de cara
lisa, coisa mais sem graça. Quisera não saber nada, não tomar ciência de nada,
doi demais o sofrimento alheio, do sangreiro de muitos que nem sabem que são
meus, da injustiça para tantos que sofrem manobras nos recantos distantes e a
mim só me resta convocar do amor no coração incansável pelos mistérios da vida.
© Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e
imediatamente mandou chamar o diretor-geral da Secretaria. Este, como se movido
fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de
Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão. — Estou furioso! —
exclamou o conselheiro; — por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua
Majestade o Imperador — Por minha causa? — perguntou o diretor—geral, abrindo
muito os olhos e batendo nos peitos. — 0 senhor mandou-me na pasta um decreto
de nomeação sem o nome do funcionário nomeado! — Que me está dizendo,
Excelentíssimo?… E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os
superiores, quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou
rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na
cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida: — É
verdade! Passou-me! Não sei como isto foi… — É imperdoável esta falta de
cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser
submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe,
está doente o seu oficial-de-gabinete! E, dando um murro sobre a mesa, o
ministro prosseguiu: — Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial:
ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de Sua
Majestade, que dei a minha demissão!… — 0h!… — Sua Majestade não o aceitou… —
Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem. — Não a aceitou porque me considera
muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal
copiado. — Peço mil perdões a Vossa Excelência — protestou o diretor-geral,
terrivelmente impressionado pela palavra demissão. — 0 acúmulo de serviço fez
com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de
agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta
natureza. O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo: — Bom!
Mande reformar essa porcaria! 0 diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e
chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3a seção, que o encontrou
fulo de cólera. — Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante
do Sr. Ministro! — Por minha causa? — 0 senhor mandou-me na pasta um decreto
sem o nome do funcionário nomeado! E atirou-lhe o papel, que caiu no chão. O
chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro,
balbuciou: — Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor… são coisas que
acontecem… havia tanto serviço… e todo tão urgente!… — 0 Sr. Ministro ficou, e
com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a
afabilidade, mas notei que estava fora de si! — Não era caso para tanto. — Não
era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender
o chefe de seção que me mandou isto na pasta! — Eu… Vossa Senhoria… — Não o
suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o
regulamento. — Eu… Vossa Senhoria. — Não me responda! Não faça a menor
observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria! O chefe da 3ª seção
retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o
decreto: — Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha
diante do sr. diretor-geral! — Por minha causa? — 0 senhor é um empregado
inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do
funcionário nomeado! E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense. — Eu
devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo,
na forma do regulamento! 0 que eu teria ouvido, se o sr. diretor-geral me não
tratasse com tanto respeito e consideração! — 0 expediente foi tanto, que não
tive tempo de reler o que escrevi… — Ainda o confessa! — Fiei-me em que o sr.
chefe passasse os olhos… — Cale-se!… Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me
quais sejam as minhas atribuições?!… — Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe
esta falta… — Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!… O
amanuense obedeceu. Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um contínuo.
— Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção! — Por minha
causa? — Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a
trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a
limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado! — Foi porque… —
Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me
considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se! — Mas… —
Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me
de você!… O contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que
cochilava num corredor da Secretaria. — Estou furioso! Por sua causa passei
pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas! — Por minha causa? — Sim.
Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por
que te demoraste tanto? — Porque… — Cala a boca! Isto aqui é andar muito
direitinho, entendes? — Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro
estás no olho da rua. Serventes não faltam!… O preto não redargüiu. O pobre
diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão
do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas,
entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão. O mísero
animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e
voltou a lamber-lhe humildemente os pés. O cão pagou pelo servente, pelo
contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo
ministro!…
Conto De
cima para baixo (Cultrix, 1969), do dramaturgo, escritor e jornalista Artur Azevedo (1855-1908). Veja mais
aqui e aqui.
A ARTE
DE ELKE KRYSTUFEK
A arte da artista conceitual austríaca Elke Krystufek
AGENDA:
&
O chão na alma, Amos Oz, Antonio
Cândido, Josely Vianna Baptista, Mario Cesarin & Camila Morit, Barra de
Guabiraba, A mulher abolicionista & Luzilá Gonçalves Ferreira, Pobreza & Saúde de Paulo Buss, George Harrison, Eliete Negreiros, Heitor Pereira & Livia Nery aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje curta na Rádio
Tataritaritatá a
música do guitarrista Heitor
Pereira:
Live Montreaux, Dueling Guitars August Rush & com Simple Red It’s only love
& Live Manchester University & muito mais nos mais de 2
milhões & 900
mil acessos ao
blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja aqui e aqui.