
DITOS & DESDITOS:
[...] Tubiacanga
era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em
cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco
anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram
usadas... porque o Rio as usava. O único crime notado em seu pobre cadastro
fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o
assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em
nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a
mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a
batizara. Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a
verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava
de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família
inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos de todas
as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego",
do seu cemitério, do seu campo-santo. Em começo, o coveiro julgou que fossem
cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos.
Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos
saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O
coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado
e a notícia espalhou-se pela cidade. A indignação na cidade tomou todas as
feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente
será a última a morrer nas consciências. [...] E a vila
vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam
paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam
nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos
sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança... O saque, porém,
continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre
conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus
maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um,
depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia
o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados
para destino misterioso. Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos
juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos. Nada
houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta,
quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto
esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar
dous dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no animo deles, não
se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram
estendidos como mortos. A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de
manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dous malfeitores, foi diante
da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o
Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia
e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para
fazer ouro e o companheiro que fugira era o farmacêutico. Houve espanto e houve
esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico,
respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a cousa não fosse
verdade! Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se
pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles! [...] Às
necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer
e felicitá-los; e aqueles dous ou três milhares de pessoas, homens, crianças,
mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do
farmacêutico. A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e
conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo
um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma
pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça,
prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já
sabê-lo," gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita,
indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho longo que só poderia ser
entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar,
mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado. Docilmente, com
aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa,
tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de
ossos de defunto que pudesse. O sucesso chegou à casa do engenheiro residente
da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor
concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era
alquimia, cousa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto,
fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era
"besteira". Cora aproveitou o caso para rir-se petropolimente da
crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emilia, tinha fé que a cousa
era possível. À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a
janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas
nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a
encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi
também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho,
saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os
criados—toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao
satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais
pobre lá estavam. [...] evolvia a sânie das sepulturas, arrancava as
carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço
até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas
rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em
lama fedorenta... A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos
e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros,
cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as
famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram.
Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança
de onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela
era tão gorda..." De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles
que recebera em trinta anos de existencia. Uma única pessoa lá não estivera,
não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro. Entrando numa
venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati
e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer
mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito—ambos, ele e o rio,
indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e
o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.
Trechos do conto A nova
Califórnia, extraído da obra Clara
dos Anjos (Mérito, 1948), do escritor Lima Barreto (1881-1922).
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