VALE DO UNA - Imagem da série Extinct,
da artista russa Elena Zolotnitsky.
- Finquei os pés no chão de Palmares – minha terra, meu torrão. Timbunguei no Velho
Una e me danei rumo Oeste não sei para onde, no meio da Mata Meridional. Deixei
calunga e cheleleu, fiz pernoite em Xexéu depois voltei atrás, estava todo
errado, desencontrado como sempre, se não sabia lá pra onde ia, seguia pra
Belém de Maria e lá me livrei das rezadeiras findando por Batateiras do outro
lado do mundo. Fui feito carrapeta, rodando todo arraial pra chegar em Maraial
e ir direto pro Sul esquisito pelas mãos de São Benedito até ficar aflito,
pronde mesmo que eu queria ir, hem? Não sei, seguia. Ah, me livrei do revestrés
nas esquinas de Caetés, tinha cotoco pirrototinho enfiado no terreiro de
Canhotinho, eu mais que perdidinho num medonho panapaná que esvoaçava em
Quipapá, levado pelo vento que suspira nas terras de Cupira. Foi então que fiz
então canção pra ela na boca da noitinha de Panelas, descansar a carcaça e as
mazelas pra de manhã chupar muita manga e mangaba na Barra de Guabiraba e, depois
de acertos e erros, dei de cara com Bezerros e fui me arranchar. Onde mesmo é
que estou, não sei mesmo. Por não ser nada taful, olhei pro céu azul, oxe, isso
aqui é Caruaru, danou-se tudo: o mundo de cabeça pra baixo! Ou tudo endoidou
comigo. Andejo que só fulano, descobri o que é ter tutano encarando a vida em
São Caetano, onde dei voltas sem fim. Já que nada mais me vinha na poeira, só o
aconchego em Cachoeira era pra me redimir, pra levar o maior catabi de quase
rolar todo em Jucati e ficar sabendo: o fim do mundo não é aqui, depois que é
Jupi, lá do beiço virado, longe que só. Foi então que perdi o verbo e o poema,
estava só em Jurema juntando os trapos defronte, ainda ontem eu vi enfim São
Joaquim do Monte quando arrastava o solado pelo oitão de Calçado e me vi só todo
acabrunhado: é que não era confeito nem jujuba, ali é Ibirajuba, pro outro lado
o chão de Tacaimbó. Mas o melhor mesmo foi que uma forrozeira dançando xote em
Pesqueira me fez seguir apertado até no osso, a me danar por Venturoso e cair
morto porque o pencó estava solto na calçada de Sanharó. Perdi-me de tanto gritarem:
Febrento! Isso aqui é São Bento. Vixe! Tô pior que toupeira! Aí cheguei na
maior carreira na nascente de Capoeiras – eita o Una miudinho, nascendo e
seguindo sua rota pra minha terra. Segui firme o meu caminho pela estrada de
Altinho e amanheci com a estrela matutina nos céus de Agrestina. Dali pela
estrada de Camocim de São Félix eu saí do meu agito ao me deparar com Bonito,
depois desvendei todo segredo, tomei rumo pra Lagedo e fui danado pra Catende
com vontade de chegar. Fiz a volta na carreira pra bater lá em Jaqueira, tirei
a poeira dos sapatos quase perto de Lagoa dos Gatos, rasguei estrada de quase
levar um tombo, logo fui acolhido em Pombos, eita! Me assuntei do azarão, era
então Vitória de Santo Antão e soube: não tem mais lobisomem ou boitatá nos
domínios de Glória do Goitá. Não dei moleza a pacutia, segui pra Chã de Alegria,
voltei tal qual errante por Chã Grande, foi ali que me vi na praça de Amaraji,
oxente, não sabia nem que eu era nos arredores de Primavera, só fiquei de alma
lavada pelas ruas de Escada. Aí sem jumento e sem pedrês no acesso de Cortês, abri
o peito e o coração caminhando por Ribeirão. Lá longe a maior gemedeira, uma
volta que dei em Gameleira, de não sobrar garrucha nem trabuco, era só Joaquim
Nabuco, até um boi fazer careta num cercado de Água Preta. Aí fiquei o tempo
todo de mutuca com a cacunda em Ipojuca, não tinha nada nem vintém, pisando
firme em Sirinhaém, tinha que ficar jeitoso, afinal era Rio Formoso e o que é
que é? Era a praia de Tamandaré, bêbado de volapuque e noigrandes na praia de
São José da Coroa Grande, aprumando no lajeiro pra singrar lá por Barreiros, enfim
errando de tudo antes que a vida puna arriar ao mar na Várzea do Una. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] Tubiacanga
era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em
cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco
anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram
usadas... porque o Rio as usava. O único crime notado em seu pobre cadastro
fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o
assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em
nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a
mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a
batizara. Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a
verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava
de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família
inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos de todas
as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego",
do seu cemitério, do seu campo-santo. Em começo, o coveiro julgou que fossem
cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos.
Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos
saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O
coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado
e a notícia espalhou-se pela cidade. A indignação na cidade tomou todas as
feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente
será a última a morrer nas consciências. [...] E a vila
vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam
paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam
nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos
sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança... O saque, porém,
continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre
conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus
maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um,
depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia
o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados
para destino misterioso. Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos
juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos. Nada
houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta,
quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto
esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar
dous dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no animo deles, não
se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram
estendidos como mortos. A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de
manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dous malfeitores, foi diante
da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o
Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia
e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para
fazer ouro e o companheiro que fugira era o farmacêutico. Houve espanto e houve
esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico,
respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a cousa não fosse
verdade! Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se
pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles! [...] Às
necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer
e felicitá-los; e aqueles dous ou três milhares de pessoas, homens, crianças,
mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do
farmacêutico. A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e
conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo
um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma
pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça,
prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já
sabê-lo," gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita,
indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho longo que só poderia ser
entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar,
mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado. Docilmente, com
aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa,
tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de
ossos de defunto que pudesse. O sucesso chegou à casa do engenheiro residente
da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor
concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era
alquimia, cousa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto,
fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era
"besteira". Cora aproveitou o caso para rir-se petropolimente da
crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emilia, tinha fé que a cousa
era possível. À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a
janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas
nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a
encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi
também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho,
saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os
criados—toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao
satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais
pobre lá estavam. [...] evolvia a sânie das sepulturas, arrancava as
carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço
até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas
rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em
lama fedorenta... A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos
e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros,
cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as
famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram.
Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança
de onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela
era tão gorda..." De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles
que recebera em trinta anos de existencia. Uma única pessoa lá não estivera,
não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro. Entrando numa
venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati
e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer
mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito—ambos, ele e o rio,
indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e
o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.
Trechos do conto A nova
Califórnia, extraído da obra Clara
dos Anjos (Mérito, 1948), do escritor Lima Barreto (1881-1922).
Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.
A ARTE DE ELENA ZOLOTNITSKY
A arte da artista russa Elena Zolotnitsky.
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