TRÍPTICO DQC: Apesar de tudo: viver! - Ao som do álbum Fala de Bicho, Fala de Gente (2014),
da cantora, compositora e pesquisadora Marlui Miranda, do livro homônimo da pesquisadora e
professora Cristina Martins Fargetti,
sobre as cantigas de ninar do povo juruna (Sesc, 2018). – Ganhei o
mundo e era como se fosse On the road de Kerouak: Gosto de muitas
coisas ao mesmo tempo e me confundo inteiro e fico todo enrolado correndo de
uma estrela cadente para outra até desistir. Era muito jovem e me salvava
com o sonho dos antigos eremitas e a cabeça de visionários. Na vera, me
perdi: se vivia só, o pior era a desolação de não ter quem nem pra onde ir. Só ouvia
o eco das vozes do sociólogo estadunidense Robert Neelly Bellah (1927-2013):
De certa forma, sair de casa envolve uma espécie de
segundo nascimento, no qual damos à luz a nós mesmos. Por mais doloroso que
seja o processo de saída de casa, para os pais e para os filhos, o que é
realmente assustador para ambos seria a perspectiva de o filho nunca mais sair
de casa. Embora existam razões
práticas e por vezes morais para a decomposição da família, não coincide nem
com o que a maioria das pessoas na sociedade afirma desejar nem, especialmente
no caso das crianças, com o seu melhor interesse. Fui assim mesmo, Andejo da noite e do dia: se pensasse duas
vezes, não saía do lugar – era só ir e voltar: arrependimentos e culpas. Perdi meus
elos, raízes esgarçadas. Mais tinha de ir, feito Caio Fernando Abreu: Confesso!
Às vezes tenho vontade de sair por aí destruindo corações, pisando em
sentimentos alheios ou sei lá, alguma coisa que me faça realmente merecer esse
meu sofrimento no amor. Era quase isso mesmo, precisava fazer alguma coisa,
valendo-me de Wole Soyinka: Um tigre não sai por aí proclamando sua
tigritude. Ele apenas ataca! Eu apenas queria viver e não sabia, vivia. Até
me descobrir: não era o mundo nem os outros, era eu mesmo. A coragem da
liberdade, o aprendizado da vida. É isso. Ainda deu tempo de saber A terra que sou & recitar os versos
da Viva Vida Verde. Apesar de tudo,
convinha lembrar: o direito de viver e deixar viver.
DOIS: Ponto de mutação - Imagem: Viagem indiana psicodélica por meio de ecos infinitos de
pensamentos, da banda tcheca MindWalk e ao som da trilha sonora do compositor
estadunidense Philip Glass para
o filme homônimo dirigido por Bernt Amadeus Capra sobre a obra de Fritjov Capra. - À janela e o que vejo: Que mundo é este? Não há resposta, apenas
sei que As pedras falam e estou calado.
Foi o que ela me disse ao aparecer como se fosse a cientista Sonia Hoffman na
pele de Liv Ullmann: os seus ideais traídos, a lucidez e frustração, os problemas
com a filha. Não estava dividindo espaço com um político que se descobriu
mentira nem com um dramaturgo em fuga, não, não estava: apenas eu e ela atravessando
o pântano do tempo. Depois de uma longa caminhada em que discutíamos a
diferença entre mudança e transformação, deparamo-nos com um castelo medieval no
Litoral da França. O passado estava ali, enclausurado. E nós com todos os temas
difusos que nos atormentam mundo afora: a vida, o amor e a guerra, a política,
o planeta, a morte e as tecnologias. Encaramos nossos desencontros: o do
secular mecanicismo dos fragmentos especializados, ao invés de considerar as
interrelações sistêmicas: Preferimos
falar sobre ‘hiperatividade’ ou a ‘incapacidade de aprendizagem’ de nossos
filhos, em lugar de examinarmos a inadequação de nossas escolas; preferimos dizer
que sofremos de ‘hipertensão’ a mudar nosso modo supercompetitivo dos negócios;
aceitamos as taxas sempre crescentes de câncer em vez de investigarmos como a
indústria química envenena nossos alimentos para aumentar seus lucros. A
natureza é o corpo inorgânico do homem – isto é, a natureza, na medida em que
ela própria não é o corpo humano. Estávamos diante dos efeitos mais desagregadores:
Hoje, porém, a desintegração do
patriarcado tornou-se evidente. O movimento feminista é uma das mais fortes
correntes culturais do nosso tempo, e terá um profundo efeito sobre a nossa
futura evolução... O universo começa
a se parecer mais com um grande pensamento do que com uma máquina. Transigimos,
destoamos, uma dolorosa constatação: A
evolução da consciência deu-nos não só a pirâmide de Quéops, os concertos de
Brandemburgo e a teoria da relatividade, mas também a queima de bruxas, o
Holocausto e a bomba de Hiroxima. Fitamo-nos indecisos: a dúvida nos
vivificou. Cada qual sua impressão, pensamentos em voz alta: o que somos e o
que estamos fazendo aqui, é desanimador. O que nos espera, sabe-se lá quão
doloroso.
TRÊS: A musa no Grand Guignol – Imagem: Musa impassível, do escultor Victor Brecheret (1894-1955), ao
som de Love’s Greeting
Op.12, do compositor britânico Edward Elgar (1857-1934). – De volta, não
era ela: era a ausência dela na travessia, o olhar de Paula Maxa a me
alertar: Olhos bem abertos! Olhos bem abertos! Você não percebe quanto horror está
contido nessas três palavras! Não estava ali, bem sabia: estava em mim nos versos
da poeta Francisca Júlia
(1871-1920): Ouço e vejo o teu nome em
tudo: ou nos ressolhos do vento, ou no fulgor das estrelas, radiante... Tu és sempre o mistério, a luz que tenho
diante do olhar, quando te imploro a piedade, de geolhos. Atravessei sozinho
a encruzilhada, contando os passos e ouvindo-a profundamente como se fosse a filósofa
grega Theano de Crotona (séc. VI
aC): Os números são
a demonstração da realidade e individualidade... E ela segredasse sussurrante
na mesma leva aos meus ouvidos: A mulher que vai para a
cama com um homem deve tirar o pudor com a anágua e vesti-la novamente. Ri. Era o
que me restava porque ela não estava ali para me recitar um verso apenas da Perenidade da poeta Fernanda Seno:.. seremos outra forma de presença porque o amor
subsiste eternamente. Não sei
onde estou e se voo, não sei. Até mais ver.
ADÃO PINHEIRO
A arte do gravador, entalhador, pintor, cenógrafo,
artista gráfico, desenhista e professor Adão Odacir Pinheiro, que é pesquisador do artesanato popular do
Nordeste e da Cultura Africana. Veja mais aqui e aqui.