segunda-feira, agosto 05, 2024

NADIA KISUKIDI, ANNA STAROBINETS, CAROLYNE ACEN & OSMAN LINS

 

Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Elevation, Op76 nº.2 (Pastel Records, 2024), The Fauns, Op.60 (Pastel Records, 2024), Cécile Chaminade Performs Original Piano (Torill Music, 2019), Masters Of The Roll (James Stewart Music. 2019) e The Hall Collection, Vol. 1 - 1901-1927 (Pierian Recording Society, 2012), da pianista e compositora francesa Cécile Chaminade (1857-1944). Veja mais aqui.

 

CANÇÕES DO VENTO... – A primeira canção ao amanhecer: da janela a cidade e a brisa de Zéfiro pelas encruzilhadas transhumanas, corredores e túneis sombrios. Meus versos são escavações no asfalto aguando plantas, passos, direções invisíveis: opção de existir além dos limites, como um ressurreto indígena desgarrado de povoado extinto, escapando do apagamento e de todas as atrozes invisibilidades. Doravante uma ponte móvel, para lá e cá remexendo quase sem querer, como se eu fosse uma flecha viva dançante usurpando fronteiras. Iansã ensinou o toque da mão e a pedra, o corpo pensante, outridade sim, empatia sim, resistir sim e mais: todoutras, cada qual suas descobertas. Não sou nem nunca fui Medusa, quanta pedra e pó. Alijado experimentei pelos olhos mortos dos que estão sentados ou deitados nas bolhoutras e suas vindicações falazes, os meus versos ecosóficos diante das dicotomias existenciais. Sou-me sucessivos amanheceres. Vou-me pela segunda canção ao meio dia e com Rayka nas rajadas de Bóreas. Escrever pra quê? Transbordo, não mais cabendo em mim. Voo além, outroutra. E uma orquídea desabrocha no peito: é a arte rio que passa e o tempo do longe, o lugar às margens do agora bem-vindo, salvando-me de uma rede de alçapões com os dilemas da morte, da autorrealização e do isolamento. Pude errar muito e voltar, ser-me impreciso e aos malogros, reconhecendo-me vivências, oceânicas experiências interdimensionais, curando feridas, sarando talhos abertos. Quem não erra? Isso pode e deve ser afinal o acerto. A dor ensinava e aprendia, deixava deixar: devires, aporias diatônicas e cromáticas, artisticulturais. Tudo é possível! Sou o meu próprio prazer no cotidiano: um bicho feio pro riso das crianças. E a terceira canção entre alvoradas e ocasos não impediu o que previa: adivinhava a dor do deserto. As ideias são ratoeiras armadas e o corpo pagava o preço. O amor sempre foi e será paradoxo, quereres equidistantes. Quase sussurro só, um cochicho talvez, apenas. Fiz tudo que podia e me libertei com a descoberta da arte escondida: a vida plena e quantos sou, já gritei muito e fiquei rouco; hoje apenas digo e isso me basta: sorrir & dançar. A luta continua... Até mais ver.

 

Enid Blyton: Se você não pode cuidar de algo que está sob seus cuidados, você não tem o direito de ficar com ele... Veja mais aqui.

Charlotte Mary Yonge: As regras gerais são perigosas de serem aplicadas em casos particulares... Veja mais aqui.

Diane di Prima: Acho que o poeta é a última pessoa que ainda fala a verdade quando ninguém mais se atreve a fazê-lo. Penso que o poeta é a primeira pessoa a começar a moldar e a visualizar as novas formas e a nova consciência quando ninguém mais começou a senti-las; acho que essas são duas das funções humanas mais essenciais... Veja mais aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

A SITUAÇÃO DE UM ESCRAVO - O ar a bordo era fétido e pútrido. Acorrentados pelos tornozelos em caixões, o mal arrastou a mim e a outros com cicatrizes nos lábios para bordo. Humilhadas sob o sol, fomos despidas, examinadas da cabeça aos pés e colocadas em alojamentos para sermos estupradas. Meus sentidos ficaram entorpecidos pelo abuso, crises de fome com náuseas, prisão de ventre e dores de cabeça me deixaram doente. As alucinações vindas da distância desamparada causaram arrepios na minha espinha enquanto sussurros embaladores de algemas me atormentavam. A âncora foi colocada, velas enormes fizeram o navio voar em meio a nuvens escuras ameaçadoras. O trovão retumbou como um monstro faminto. A brisa fria varreu o navio enquanto fiquei entorpecido de dor por meses. Couro pesado desceu sobre minha carne encolhida e meus membros algemados. Sofri a angústia de ontem enquanto o zelo sagrado em meu peito brilhava precedendo minhas angústias. Um palco elevado de madeira me recebeu em terra. Nus, expostos ao raio penetrante do sol, os lances eram computados cuidadosamente. As negociações foram feitas, eu agora pertencia à “massa”. Trabalhando no calor das plantações em condições adversas, minhas costas doíam e os ferimentos causados ​​pelas chicotadas do feitor doíam meus dedos sangravam por ter colhido algodão. Mentalmente subjugado, escondi-me atrás do bálsamo calmante da religião. Minha mente não era mais minha, esse corpo pertencia à “massa”. Eu constantemente empinava na noite sagrada, lamentando um futuro sem esperança para meu filho – cantarolando uma canção lânguida na esperança de que meus ancestrais pudessem ouvir minha situação. Levantei a cabeça para o céu e imaginei a carícia da liberdade sob uma constelação.

SAPIOSSEXUAL - Sinto-me sexualmente atraída pela inteligência. Conversas íntimas brotando de uma mente eloquente, despindo minha consciência e fazendo amor com meus pensamentos. Dando-me orgasmos estimulantes cerebrais a partir do intercâmbio ao vivo de discussões alucinantes, transmissões diretas estimulando meus sentidos de locutor em um jogo de palavras sensual onde nossos pensamentos lutam com nossos sentimentos em uma linguagem intelectual. Sinto atração sexual por um homem inteligente. Constantemente perdidos em um jogo de acasalamento mental enquanto nossos pensamentos convergem para uma fusão cósmica. Mentes se estendendo como estrelas binárias em uma galáxia. Nadando em um oceano de filosofia e psicologia, um mar de ideias brilhantes, e valsando em uma floresta de oportunidades em um ninho de amor analítico que transborda teorias e fatos sangrentos. No alto de um amor que me arrebata com cada palavra enquanto sou dominado por um extenso vocabulário. Dar gases que contraem nossos ouvidos e fazem nossas mentes se prenderem ao sexo da alma. Interesse despertado, cuidadosamente sintonizado com uma mulher peculiar como eu. Seduzindo meus nervos com conversas explosivas. Levando-me em uma jornada fascinante e pensativa para expor as maravilhas da mente. Através de desvios de lógica, verdade e sensualidade entrelaçadas em conhecimento feliz. Redirecionando o jogo sexual superficial e falso que os homens jogavam comigo. Sinto-me sexualmente atraído pela inteligência. De dois amantes sapiossexuais embriagados de paixão, construindo energia criativa e liberando vibrações intelectuais, culminando com a estimulação mental. Acariciando minha carne com poesia cognitiva a partir de emoções existentes enquanto o levanto em um profundo recital de poesia falada sobre o mundo. Educando-o, dando-lhe algo para meditar. Intrigando-me com sua bela mente, provocando meus pensamentos, despertando neurônios enquanto as sinapses de nossos cérebros executam danças complexas. As batidas tornam-se uma cadência ressonante. Fusão de instrumentos musicais enquanto nossos pensamentos giram e criam um ritmo harmonioso em uma dança mental orgástica profunda em um mundo que vive a pior revolução sexual. Um mundo onde a beleza física é superestimada e a inteligência subestimada. Mentes escravizadas, presas à paixão fugaz e à fachada física como a erva mágica. Ignorância que confunde a mente. Um mundo onde as mulheres inteligentes são intimidadoras e rotuladas de “Senhorita Sabe Tudo ou Cabeçuda”. Um mundo onde os homens inteligentes são intimidadores e rotulados de “Sr. Saiba tudo ou tenha orgulho”. Em um mundo onde mora uma mulher Sapiossexual como eu.

Poemas da artista e poeta ugandesa Carolyne M. Acen – Afroetry.

 

VOCÊ TEM QUE OLHAR - [...] Você não pode recuperar o que perdeu. Aqueles que perderam a aparência humana não podem voltar a ser pessoas. Mas o sistema pode ser corrigido e essa é a minha esperança. É por isso que indico os nomes reais de pessoas e instituições. É por isso que escrevo a verdade. [...] Não há razão para você sentir dor. Não há nenhuma razão para sentir dor [...] Mas se este livro ajudar alguém com a sua dor, significará que não foi escrito em vão. E que, pelo menos, o que nos aconteceu teve algum significado. [...]. Trechos extraídos da obra Tienes que mirar ( Batiscafo, 2022), da escritora, jornalista e roteirista russa Anna Starobinets.

 

O UNIVERSAL NA SELVA - [...] As cenas são múltiplas, disparatadas. E, em cada uma delas, o termo “universal” é brandido como um estandarte. É preciso combater o de perigo do deslocamento, as ameaças presumidas da separação. [...] Devolver a cada um o que é de cada um. Não se corta em pedaços a essência imaterial da humanidade. Fazê-lo é impedir-se de produzir enunciados de verdades partilhadas. Pior ainda, é renunciar ao discurso de uma emancipação comum. Alimentar pulsões tribais contra a paciente elevação do trabalho e da cultura. [...] É sabido: a nossa é uma época da recuperação e da distorção. As palavras, mastigadas e remastigadas na boca, acabam por significar aquilo contra o que, justamente, elas haviam sido forjadas. [...] O museu universal é acolhimento: ele defende uma hospitalidade viva. Limitá-la se constituiria em uma violência. Esse museu abre suas portas a todos os humanos, a todos os objetos, de onde quer que venham. Mais ainda, ele relembra o próprio de todo devir humano: a passagem, a travessia. Ser do mundo é, primeiramente e de maneira essencial, circular, estar em movimento, jamais ser determinado e entravado pelas fronteiras da pátria, do Estado-nação, que produzem exclusão. [...] Ali onde a colonização significava a monopolização do mundo por alguns, o imperativo da descolonização exige que se devolva o mundo ao mundo, que se dê a cada parte do mundo a possibilidade de acolher o mundo, de fazer mundo. “Assimilar, não ser assimilados”, como corolário do ato de restituir. [...] Nesse sentido, atrás da questão do universal se abriga sempre aquela da identidade, isso é, a da identificação do sujeito que fala, que toma a iniciativa de começar um relato e de configurar um mundo. As reflexões sobre o universalismo esbarram em uma dificuldade constitutiva e insuperável: o universal é sempre limitado pela situação daquele que o enuncia. [...]. Trechos do estudo O universal na selva (Concinnitas, maio de 2020), da filósofa e escritora francesa Nadia Yala Kisukidi, que é professora da Universidade de Paris 8 e autora da obra Bergson ou l’humanité créatrice (CNRS, 2013).

 

CENTENÁRIO DE OSMAN LINS

Duas vezes foi criado o mundo: quando passou do nada para o existente; e quando, alçado a um passo mais sutil, fez-se palavra. O caos, portanto, não cessou com o aparecimento do universo; mas quando a consciência do homem, nomeando o criado, recriando-o, portanto, separou, ordenou, uniu. A palavra, porém, não é o símbolo ou reflexo do que significa, função servil, e sim o seu espírito, o sopro na argila. Uma coisa não existe realmente enquanto não nomeada: então, investe-se da palavra que a ilumina e, logrando identidade, adquire igualmente estabilidade. Porque nenhum gêmeo é igual a outro; só o nome gêmeo é realmente idêntico ao nome gêmeo. Assim, gêmea inumerável de si mesma, a palavra é o que permanece, é o centro, é a invariante, não se contagiando da flutuação que a circunda e salvando o expresso das transformações que acabariam por negá-lo. Evocadora a ponto de um lugar, um reino, jamais desaparecer de todo, enquanto subsistir o nome que os designou (Byblos, Carthago, Suméria), a palavra, sendo o espírito do que - ainda que só imaginariamente - existe, permanece ainda, por incorruptível, como o esplendor do que foi, podendo, mesmo transmigrada, mesmo esquecida, ser reintegrada em sua original clareza. Distingue, fixa, ordena e recria: ei-la.

Texto do escritor Osman Lins (1924-1978). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 

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PATRICIA CHURCHLAND, VÉRONIQUE OVALDÉ, WIDAD BENMOUSSA & PERIFERIAS INDÍGENAS DE GIVA SILVA

  Imagem: Foto AcervoLAM . Ao som do show Transmutando pássaros (2020), da flautista Tayhná Oliveira .   Lua de Maceió ... - Não era ...