TRÍPTICO DQP – A
vida e o que será morto... - Ao som do álbum Meus caros pianistas - O piano de Claudio Santoro (Biscoito
Fino, 2001), da pianista Gilda Oswaldo
Cruz. - A vida e o trâmite entre a tarde quase noite, a solidão e eu sequer
me dei conta de que estava à procura de algo que não sei. Sei, no de repente, ouvi
Aristófanes: O amor é uma forma de procurar por nós mesmos. E isso para quem
fora antes de tudo a soberba da completude de um rotundo autossuficiente, de quádruplas
pernas, braços e orelhas, dupla faces e genitálias, desassossegado agora por não
saber decifrar o mito da androginia e ter sido dividido ao meio pelos deuses e atormentado
pelo pavor do envenenamento – ora, onde não a peçonha da destrutividade, se me
via atravessado pelos horrores e a inanição, metido nos teoremas de Kurt Gödel: condenado à falta e à busca por reencontrar
o que perdi, se é que não me desconstruí de vez na vida, se não me falta a
capacidade constante de me refazer a cada instante. O que sei de mesmo, só nenhuma
certeza e com tudo por terra. Ainda assim, lá vou eu incompleto e errante, a
testemunhar Alcestis no Banquete de Fedro: morrer por amor para salvar o outro. Na verdade, era como se
autodevorasse na milenar cerimônia totêmica, a perpetuar a eucaristia, o
canibalismo, sim, a angústia do lobo e a perturbação da gula, outros tantos
paradoxos. Coisa estranha isso de se pensar e entender. Ali mesmo presenciei o
espetáculo da Edisca (1997). Eita!
Logo a bailarina Dora Andrade apontou
pro Koi-Guera, o genocídio dos
Jangurussu de Caucaia. Sabia tratar-se do morticínio de todas as nações
indígenas do meu país, ao mesmo tempo em que sentia, noutra instância
desconhecida, a ressurreição dos meus caetés
que vinham soturnos a mim para que entendesse o real abraço e o que a falta dada
pelo outro no equívoco do acolhimento dos dagora. Ali como hoje senti meus pedaços
se esfacelarem, tornando-se objetos estéticos, e minhas entranhas eram só a
decomposição sinistra para satisfazer a quem não sei, mas que eram mesmo ready-mades de Duchamp pulsantes ainda apesar do meu dilaceramento. Eles, os meus,
me viam e me mostrava isso e mais eviscerava ao ser descartado pela indiferença,
e mais desmembrado a me derramar ao abandono do desdém na poeira do
esquecimento. Eles comigo, não estava enfim só. Ao que me restava, logo a grata
surpresa de não me esvair de vez, porque surgiu do nada o escritor José Luiz Passos a me saudar no meio da
tragédia: ... para mim, a principal
diferença é a mediação da distância.... A distância não é apenas um dado
factual da minha situação... é parte de uma temática da minha ficção, que é
sobre espaços ou tempos distantes que não são meus. Assim eu sabia o que
não era eu nem meu, ele também, e sequer sabia lá o que devia dizer, ao que ele
me contou da sua Catende que muitas
vezes fui danado para lá folgar do lazer e ócio, das moças lindas que enamorei
e tive quantas noites de dias ensolarados, e me contou das Ruínas de linhas puras, d’O
sonâmbulo amador e do Nosso grão mais
fino, e mais do Romance com pessoas,
do Marechal de costas, da Antologia fantástica da República Brasileira
e d’A órbita de King Kong, e a
conversa era boa de se perder os ponteiros do relógio e qualquer ponto de
chegada ou saída, até sermos surpreendidos pelo escritor espanhol Andrés Trapiello que nos instou dalgo que sequer imaginávamos: Seria um crime desaparecer porque
ali, todos os domingos, acontece algo muito importante: a ressurreição de uma
parte da cidade representada nos seus vestígios, que são ressuscitados através de um rito
secular: a barganha, que se aperfeiçoou ao longo do séculos... O que para
mim era o meu lugar e a vizinhança da Mata Sul pernambucana, para ele era a
Madrid dele, cada qual a sua cidade e afetos. E eu ali jamais poderia sacar se
a humanidade havia perdido a capacidade de amar, enquanto eu insistia ainda em
não morrer entre o lixo e o letal, portas arrombadas e sucatas aos monturos. Eles
se foram e fiquei só.
Em outras palavras... - Imagem:
a arte da artista e escritora francesa Valentine Hugo (1887–1968). – Da minha
parte sabia que aquilo tudo era só por um momento, tudo passaria, todos
passarão, restaria sozinho e com os pensamentos vagando caleidoscópicas
lembranças. Desacompanhado é o meu exercício diário, mesmo que muita gente
transite ou mesmo orbite minha loucura, há de escapar inevitavelmente. De resto,
não mais Lolita, agora outra como se
fosse a Mademoiselle da Fala, memória (Alfaguara, 2014), de Nabokov:
Ela gastara toda a sua vida em se sentir
desgraçada; essa desgraça era seu elemento natural; suas flutuações,
profundidades cambiantes, só isso dava a ela impressão de movimento e vida. O
que me incomoda é que a uma sensação de desgraça, e mais nada, seja
insuficiente para tornar uma alma imortal. Minha enorme e amorosa Mademoiselle
está muito bem na terra, mas é impossível na eternidade... E me
confidenciou enquanto conferia com o olhar toda a situação ao redor: Inicialmente, eu não tinha consciência de
que o tempo, tão ilimitado à primeira vista, era uma prisão. Ao examinar minha
infância (que é a coisa mais próxima do prazer de examinar a própria
eternidade) vi o despertar da consciência como uma série de flashes espaçados,
com intervalos entre eles diminuindo aos poucos até se formarem claros blocos
de percepção, fornecendo à memoria um apoio escorregadio... Ora, tudo que
me dissera parecia mais ler em minha mente, inteiramente confuso com os últimos
acontecimentos, seguir adiante, vez que era tudo isso que me ocorria ali e em
todo momento. Ah, não, apenas a memória, assim seguia.
Viver e a solidão, solitude... - Imagem: a arte da artista
argentina Liliana Maresca (1951- 1994) – Um outro enredo a cada instante
e as narrativas emergem, era eu agora solitário escriba Theodore no torpor das
minhas emotivas cartas pessoais. Sempre gostei de escrever meus garranchos e
eis-me agora enredado na trama de Her
(2014) do Spike Jonze, curtindo as
perdas e danos de quem estava de caras com o término de um devastador
relacionamento amoroso. Ali eu me valia de uma desconhecida, que me encantou
com as suas feições da atriz estadunidense Amy
Adams: O amor é uma forma de
insanidade socialmente aceitável. A vida é curta, e todos merecemos um pouco de
felicidade. Longe de discordar eu assentia sabendo da cilada de Samantha que
se passava pela Scarlett Johansson e
sorria satírica e efusivamente com o futuro do pretérito de Fabos fanáticos do mico Coisonário, dando baixa com o extermínio
dos meus vivos e mortos, e eu a me perguntar aflito quanto valia a vida na
festa da escola de tiro, a pontaria de uma arma inexorável pelas queimadas
pantaneiras, amazônicas, sertanejas e litorâneas, balas que cruzavam e eu doía a
me desvencilhar disso tudo, quase sem escapatória e o terror era mais que real.
Ela então me acolheu dentro de si, e guardou meu desamparo na sua amável deificação.
Mais que grato, para ela cantei o Amor: maior a dívida do seu penhor
porque o amor é mútua condecoração. E nela adormeci o prazer da vida. Até mais
ver.
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