segunda-feira, setembro 01, 2025

ANNE CARSON, MEL ROBBINS, COLLEEN HOUCK & LEITURA NA ESCOLA

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do álbum Territórios (Rocinante, 2024), da premiada violonista Gabriele Leite, que possui mestrado em Performance Musical da Manhattan School of Music, em Nova York (EUA), com bolsa integral da Sociedade Cultura Artística. É doutoranda em Performance Musical pela Stony Brook University, instituição de Nova York (EUA). Ela é considerada um dos maiores prodígios contemporâneos no instrumento pela crítica especializada, figurando na lista Under 30 da revista Forbes, como destaque na música brasileira em 2020.

 

Dermeval: É melhor deixar pra amanhã, ou pra lá de vez... - Desde menino se remexia todo – quando não se contorcia, se balançava no gingado: brincava carnavalizante, aos giros ritmados foliava, pulava doidejantemente. Adolesceu meneando-se e, logo cedo, arrumou seus muafos e ganhou o mundo como um novilho de ponta limpa. Via de tudo e passou só pro que gostava: bailava ao seu modo, com declamações de versos e hestórias. Haja causo no sapateado do trupé. E era andejo mesmo. E tanto que logo ajeitou-se com Macrina, no meio duma noite deserta. Fugiram saltitantes pro Mar Negro e se arrearam ascetas. Ela então o conduziu ao culto de Terpsícore, a musa da dança, envolvendo-o com sua lira na ambrosia da alcova, festejados pelas sereias do rio Aqueloo. Ao despertar a solidão era seu domicílio, por dias e noites. Foi socorrido pela amabilidade de Paula, a outra irmã dela, que o levou à Baía de Bengala e lá recebeu de Shiva Nataraja o cajado de Okó e se amaram na dança cósmica. E rodaram entre sonhos e madrugadas, até a surpresa dum amanhecer ao lado de Olympia de Manet, a terceira irmã, que o levou à deusa Hathor no Templo de Dendera, com seu disco solar e chifres bovinos roçando a caixa dos peitos. E viu-se enrolado nos seus 7 Hatores, tomado pelo Olho das 4 Faces. A bem-amada celebrou como uma vaca e deu-se à cópula feito a Leoa Sacmis, no Conto de Fadas da Noite de Hoffman. Ali tornou-se o Homem de Areia e ela não mais: Cadê-la, hem? A surpresa foi renovada com Marietta, a Maria Baderna, como se fosse a deusa Laka, pronta para a dança de Hula. De mãos dadas foram conferir os vestígios da coreografia na gruta de Tuc d'Audoubert. De lá seguiram pelas rochas do Les Trois-Frères, aos movimentos dançantes pelas margens do Arièges. Com ela o devaneio duradouro de ser dançarino de nascença nas reencarnações de Parvati e, com ela, a xamã no ritual Kagura. E a fantasia o fez Don Lockwood como um cavaleiro domado pela paixão da Kathy Selden, na cena do bolo! Pra ela ele já era Gene Kelly, e aos píncaros da gloria o fez Fred Astaire. Era o ápice! Daí foram juntos pro Prelúdio do Fauno de Debussy no poema de Mallarmé e viram primeiro a arte de Nijinski, seguido da coreografia de Nureyev pro mesmo tema, afora o bônus das tantas piruetas do Quixote de Baryshnikov. Ali olhou pra ela e sorriu: Dá pra mim não, o que vão dizer lá em casa, ora! Tirante o balé, com ela dançou de tudo. E começou pelos lundus, só na umbigada de roda: Uê, uê... uê, uá... Uê, uê... uê, uá... A lua vai saí e eu vô girá. Vou caçá meu tatu, meu tamanduá... Depois se perfilaram enfileirados na da peiga, na do Peixe a pira-purasseia; na do Tipiti e na do pau-da-fita: Dança, dança, dançador \ dança com muito valor \ dancemos todos juntos \ cada qual com seu amor... Assim se embalaram na do Lelelé (aquela mesma do péla-porco, do Lelé), na do Tambor-de-Mina (e de-Crioula), na do Espontão, na do Chapéu e na de São Gonçalo: Chega, chega, companheira \ que já estamos empareada \ pedindo licença pro santo \ para a primeira jornada... Quem não canta nem dança \ o que veio buscar? \ só veio comer arroz \ e beber o aluá... E se encararam na do Divino, tudo pelas ruas, lama e sarjetas, aos gritos pela abolição, grevistas e a febre amarela no coro dos baderneiros de todas as plateias: Mané gostoso, perna de pau, salta da cama e cai no girau... Daí em diante ele perderam-se e ele tomou nas cuias dos quiabos: macambúzio solitário ao lado de uma trapezista ao desafio: Vai ou não? Fez sapateado até na corda bamba, equilibrista só no golpe de vista. E ficou na pestana da barata, catando os trapos. Peito apertado, aguçou sua espiritualidade: Deus dançava na sua paz interior e sorria. Valia-se de Nietzsche. Aprendia sozinho a mexer os pés como Hermes no mito de Odissi. E celebrou a imagem de Peratus (o Eratus) e tornou-se o andarilho de Copenhague - como se fora Kierkegaard, a decorar o Diário de um Sedutor. Recitava poemas de Byron ao se recolher no Walden de Thoreau. E lá todas as Cartas do Eremita em Paris, de Calvino. E se viu entre os Andarilhos de Coetzee, e se reencontrou com Leloup e os padres do deserto, no Monte Athos. Aprendia de si com Isócratis e Diógenes que era gago. Fez-se entusiasta de Cícero – aquele mesmo, Marco Túlio Cícero, de saber de cor as suas cartas descobertas por Petrarca. Proferia em seus monólogos públicos trechos do Alcorão, do Mahabarata, do Rigveda, dos Upanishads, das Mil e Uma Noites, do Decamerão de Boccaccio, do Satyricon de Petrônio, muitos sonetos de Shakespeare e os tantos de Manuel Bandeira. Foi num solilóquio crepuscular, quando menos esperava, passou-lhe às vistas uma beldade que ensaiava trôpega a Dança dos 7 véus, da ópera Salomé do Strauss. Eita! Enrabichou-se todo dela quase escapulir; nada, ela ia passando de nem vê-lo, indiferente, aí providente deu-lhe uma mucica dela chega arrear-se toda se encostando no passo da Jardineira - a que era a mesma de Cupido ou Arco de Flora -, e ela faceira: Eu sou uma jardineira \ que ando com meu regador \entre perpétuas e boninas \ rosa é a rainha das flores... Era Esmeraldina e com ela foi ao clímax: a dança dos tangarás. Dali foram parar no Santuário de Ise orando pela Paz Mundial e seguiram pela estrada da peregrinação do Furuichi, só para amanhecerem na folia da deusa Ame no Uzume atraindo Amaterasu. De lá foram para Madurai e, no Templo Meenakshi Amman, viram-se envolvidos pelos 4 braços da deusa Parvati, revelando-lhe a reencarnação da deusa Sati no Himalaia. Seguiram pelo rio Ganges porque ela agora era a sua divina Shákti. E remexeram juntos Odissi nos templos de Odisha e ambos os corpos contavam hestórias sobre as águas do Maniari, no Chhattisgarh. Aos versos se casaram e ela, a sua bela quetzalizti dos olhos de maracujá, tornou-se o orvalho de maio na preciosa ourivesaria barroca do Tesouro de Munique. Ela amarrou seu símbolo no braço esquerdo dele e pôs em sua língua a sua pedra úmida, aquosa e lunar - regenerava a vida dele com sua alma verde translúcida. Ela lavou-o com sua chuva e a luz percorreu todo o sangue dele pelo Oeste do mundo. Ela plena e primaveril deu-lhe as virtudes afrodisíacas de Rabelais e a pedra do Hermes na Tábua de Apolônio. O seu orvalho mercurial traspassou as densas trevas para presenteá-lo com o segredo da criação e de todas as coisas. Com seu talismã poderoso o protegeu das criaturas infernais, afastando víboras e najas e o feitiço das paixões prisioneiras. Deu-lhe enfim a sua divina homeopatia, o Graal e a imagem presente do Criador. E com ela avexou-se, arrumou sua loca - uma mei’água pra guardá-la e cuidar dos filhos. Tornou-se carteiro, pés prum lado, passadas proutro, caminhante das boas e más notícias. Era o que queria. De noite, no lar, emocionava-se com a Ardiente Paciencia de Skarmeta. E com a sua dama a rodopiar no salão: Maxixe é dança levada, toda cheia de caídos, em que a mulata é danada e o homem é todo mexido! Depois um tango, Por uma cabeza, de Gardel. Os filhos dormiam e mandavam ver com salsas, frevos, boleros, forrós, sambas de gafieira, bachata, foxtrote, quickstep, zouk, lambada, mambo, Chá chá chá, merengue e o escambau. Até inventaram algumas novas e próprias: a vida era deles. De dia, as correspondências eram entregues em troca de poemas, expondo a sua imensa coleção de terno e gravata: era vê-lo aos sapateados pelo meio fio das calçadas esperando a chuva chegar para dar seu espetáculo no acerto da bengala – Diziam: Aquilo é a arma do Mandrake, meu! Hehehehe. De noite, aos braços da amada, o embalo do amor. A quem perguntasse, respondia com um gole de café forte e amargo: Sou apenas um preto-velho, chamo-me Dermeval, o senhor indígena das ervas, um dançarino poeta. E todo casamento não podia faltar nem ele nem a Wedding March in C major de Mendelssohn; não havia baile de debutante sem ele e as Valsas de Strauss; não havia evento no coreto do centro da cidade sem seus elóquios ao som do maestro Zé da Justa & Orquestra 15 de novembro; muito menos festa no Club Litterário sem seu sarau e seus louvores poéticos. Preferia dançar e trabalhar a ter de encarar a miséria, a repressão e o irrespirável ambiente ao seu redor: a fuligem da usina explodia pulmões. Mantinha-se com seu atencioso senso paternal, apegado à família. Orgulhava-se de nunca ter tido de voltar atrás com nada, sempre ocupadíssimo, independente, equilibrado, perspicaz, controlador ao seu modo, espiritualizado – a dança levou-lhe a venerável maçon, imponente, reservadíssimo. Era um cavaleiro andante que viajava a pé, sempre no passo do jocotó e recitando umas quadrinhas. Como se dizia comumente por aqui: Era um digno homem de gravata lavada! Era o poeta no país das mil danças e sorria: Tudo o mais, ficará pra depois. Encontrei-o quase centenário – dizem que ele já passou e muito disso uns 2 séculos atrás. A mesma bengala lustrada, o mesmo riso terno, a mesma pose de fidalguia calma bem trajada e a sabedoria vivíssima na maior lucidez. Como vai, Dermeval? Esperando a morte, meu filho. Que é isso, homem? Melhor deixar pra morrer amanhã, né? Nada: a gente tem muito pra fazer, meu velho e bom amigo. Então, vamos e deixa o resto pra lá. E lá ia de vê-lo às costas de menino treloso, o peso da vida de todo planeta. Até mais ver.

 

Marilena Chaui: Desejo é relação entre seres humanos carentes. Por isso amamos até à loucura e odiamos até a morte: nosso ser está em jogo em cada e em todos os afetos. Desejo é paixão, diziam os clássicos... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Jennifer Egan: Vivemos em um momento e uma cultura em que a leitura está realmente em perigo. Não há como escrever bem, se você não está lendo bem... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Han Kang: O amplo espectro da humanidade, que vai do sublime ao brutal, tem sido para mim como uma difícil tarefa de casa desde a minha infância... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

I - Sentir qualquer coisa te perturba. \ Ser visto sentindo qualquer coisa te desnuda. \ Sob o domínio disso, prazer ou dor não importam. \ Você pensa o que eles farão, que novo poder eles adquirirão se me virem nua assim. \ Se eles virem você sentindo. \ Você não tem ideia do que. \ Não se trata deles. Ser visto é a penalidade.

II - Como seria viver em uma biblioteca de livros derretidos. \ Com frases escorrendo pelo chão e toda a pontuação arrumada no fundo como um resíduo. \ Seria confuso. \ Imperdoável. \ Uma grande aventura.

Poemas da premiada escritora canadense Anne Carson, autora das obras Red Doc (2013), Autobiography of Red (1998), Plainwater: Essays and Poetry (1995), Glass, Irony and God (1995) e Eros the Bittersweet (1986). Veja mais aqui & aqui.

 

O ÂMBAR DA LATERNA - […] É sempre preciso mais energia para unir e construir do que para destruir [...] Não é com aqueles que parecem diferentes de você que você deve ter cuidado. São aqueles que parecem humanos [...]. Trechos extraídos da obra The Lantern´s Amber (Random House, 2019), da escritora estadunidense Colleen Houck, autora de obras como Tiger's Curse (2011) e Tiger's Quest (2011).

 

DEIXE PRA LÁ - [...] Meu ponto é simples: os adultos terão opiniões negativas sobre você e tudo o que você faz. Deixe-os julgar. Deixe-os reagir. Deixe-os duvidar de você. Deixe-os questionar as decisões que você está tomando. Deixe-os estar errados sobre você. Deixe-os revirar os olhos quando você começar a postar vídeos online ou quiser reescrever o manuscrito pela 12ª vez. Em vez de perder tempo se preocupando com eles, comece a viver sua vida de uma maneira que te orgulhe de si mesmo. Deixe-me fazer o que eu quero fazer com a minha única e preciosa vida. [...] Se seus amigos não estão te convidando para um brunch neste fim de semana, deixe-os. Se a pessoa por quem você realmente se sente atraído não está interessada em um compromisso, deixe-os. Se seus filhos não querem se levantar e ir àquele evento com você esta semana, deixe-os. Tanto tempo e energia são desperdiçados forçando outras pessoas a corresponderem às nossas expectativas. E a verdade é que, se outra pessoa — uma pessoa com quem você está saindo, um parceiro de negócios, um membro da família — não estiver aparecendo como você precisa, não tente forçá-la a mudar. Deixe-a ser ela mesma, porque ela está revelando quem ela é para você. Apenas deixe-a e então você pode escolher o que fazer em seguida. [...] Concentrar-se no que você não pode controlar causa estresse. Concentrar-se no que você pode controlar torna você poderoso. [...]. Trechos extraídos da obra The Let Them Theory (Hay House LLC, 2024), da advogada, autora e apresentadora estadunidense Mel Robbins (Melanie Lee Robbins, nascida Schneeberger), atuando abordagem inovadora sobre mudança de comportamento, ela se tornou uma das palestrantes mais populares do mundo, treinando cerca de 60 milhões de pessoas todos os meses, tornando-se uma das principais vozes da atualidade no campo do desenvolvimento pessoal. Ela é autora de obras como The 5 Second Rule: Transform Your Life, Work, and Confidence with Everyday Courage (2017) e Stop Saying You're Fine: Discover a More Powerful You (2011).

 

CLUBE DE LEITURA DA ESCOLA DERMEVAL MIRANDA

Os estudantes da escola municipal em tempo integral, Dermeval Alves de Miranda, reúnem-se em um Clubinho de Leitura, com o objetivo de difundir o hábito da leitura, o compartilhamento de conhecimentos e o protagonismo estudantil, na cidade dos Palmares, em Pernambuco. Veja detalhes clicando aqui, aqui, aqui & aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.

 


segunda-feira, agosto 25, 2025

VERA IACONELLI, RITA DOVE, CAMILLA LÄCKBERG & DEMOROU MUITO

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Tempo Mínimo (2019), Hoje (2021), Andar com Gil (2023) e Delia Fischer Beyond Bossa (2024), da pianista, cantora, compositora e arranjadora Delia Fischer. Veja mais aqui & aqui.

 

Escotoma onírico (ou o testamento que entrou pra história)... - Quem da praça da matriz, virado pra banda da metade meridional da cidade, bandeando-se pro leste, vai pro arruado da usina e passa por ali. Isso mesmo. Lá adiante mais umas léguas é o cemitério, mas basta dobrar à destra pela esquina, 3 prédios depois, ou quase, lá está sem identificação alguma. E nem precisa, não tem errada: pros lados de cá até que é bem grandinho, ocupando um terreno largo e comprido, alvenaria tomada por um imenso salão com cadeiras e mesas, muitas prateleiras pelas paredes desbotadas quase sem reboco, todas preenchidas com garrafas numeradas e ao redor dum balcão enorme envidraçado, com a oferta de produtos e divisando o ambiente um tanto anacrônico, mas é ali mesmo. Logo verá um freguês se adiantado a soar seu sincero pedido e é lá que ele mesmo está, aquela figura de gente austera, perfunctório, aboletada na porta e nem um pouco extravagante: o dono da Carne-de-Sol de ZéMago. O próprio, sujeito franzino, cabeleira rala grisalha deixando à mostra a quase calvície, os olhos desconfiados, o bigode raspado embaixo da venta, sobressaindo-lhe apenas por sobre o beiço superior, a voz de soprano com sua modesta indumentária impecável, apesar de solteirão convicto – é que tirou sentido das coisas de amor depois de já madurão e foi o que-não-sei, coisa de coração enjaulado, olhos findantes e ela a dita era o caos e nunca mais. Até debaixo d’água sofreu a dor de amor e se refez nas espumas de espremido caracol: Em casa de amorante, solidão é o fim do mundo. Triste de quem foi e de lá voltou. Era ele praquela, nunca mais. No fundo do imóvel via-se duas portas pros sanitários e uma outra, mais estreita, com um cartaz garatujado: PRIVADO – Proibida a entrada de enxeridos. É lá, cochichavam, a cozinha da bruxa de fala fina. Logo na entrada parecia o cicerone aboletado no caixa-recepção, no qual pediam, pagavam e já pegavam, ao seu comando, a comida no prato, seguindo para se aboletar em qualquer mesa. Outra advertência: não fale fiado. Isso evita pandemônio de vitupério. Todo dia, às 11 em ponto, o povo chegava de faro atiçado pelos sabores acesos, tudo figurinha carimbada de décadas e até séculos – como Zalfredim encostado num canto a berrar: Tomara que dê uma cheia pra levar os cornos daqui! A esponsal dele, Bastiana, da janela vizinha alertava: Cala boca, véio fresco, tu num sabe nem nadar! Gargalham fregueses assíduos, fidelizados pelo paladar e ronco da barriga. Eram pseudoutos e desinformados, poetastros e linguarudos, probos e lesados, fiéis e descrentes, mutreteiros e detratores, polêmicos fuxiqueiros pervertidos; agiotas, barnabés e puteiros, manipuladores e bem-mandados, cornos e aduladores - uma mundiça inconformada de chatos devoradores, gente insossa e mal-nutrida, arre égua! Todos apreciadores da graça rústica do local. Do tipo Zé Borreia que morreu um dia desse e todos lamentavam: Ah, quem mandou ele peidar na venta dum demônio, bem empregado: findou com estridente enfiado no boga! Entalado? Iapois. E a próxima vítima? Ninguém escapa, meu. Os folgados pediam: Frango assado, Zé! Vá pedir à quenga da sua mãe! E uma cerveja gelada: Vá pedir ao corno do seu pai! Bora, bora! Quero meu pedido! Vá pro fim da fila pra deixar de ser entrão! Outros gaiatos pediam conhaque, rum, vermute, gin, cerveja ou até cachaça! Quando não fígado, peixes, crustáceos. Vão tudo se lascar! Modéstia à parte: aqui só tem o que é bom! Ah, vá sentar légua no cangote, seu fi-duma-égua! Magote de sonsos das matas finadas, mesmo assim, té hoje mando de cana mesmo sem ter quem moa. E tombávamos todos, gente de peripécia própria ou de diversificadas personas, diante do dicomer sustante, gostinho daquela comida caseira, todos servidos em pratos feitos de cascos de cágados, tartarugas e tatus; em cumbucas de barro, de pedra sabão ou louça cerâmica, coités, vasilhas, panelas, potes, tigelas, terrinas, cuias, o que tivesse à mão. Os talheres tudo de pau: garfos, facas, colheres. E todos matavam a sua fome às dentadas, engolidas, abocanhadas, cada garfada, colherada, facada; todo mundo já sabia, nem precisava de cardápio, expediente bem definido, a partir das 11 saía o rango: a afamada carne-de-sol é servida acompanhada de feijão-de-corda, com arroz, vinagrete e uma lapada de cortesia da abrideira Teibei – a segunda, por conta do freguês, acende o candeeiro; a terceira, paga por antecipação, pega o jipe de sair riscando tudo até desenvultar! Basta, então, a primeira golada e a ineivada entra rasgando tudo, do de cujus estalar os dedos, alvoroçado, sentir a fisgada no osso do mucumbu, do retrato da identidade se arrepiar todo. Aí o cabra entra em combustão, baixa o santo e incorpora logo uma entidade sã fazendo vulto capaz de adivinhar o futuro e o prêmio bolada da loteira. U-hu! Me dá uma meiota dessa disgrama, vai! Nem um quartinho sequer, tá doido! Há a opção para quem corajoso queira se deliciar com a incendiária Queima Toba – uma pimenta malagueta preparada para aparentá-la àquela ardida X, mais esquentada que a Carolina Reaper, como se fosse o cruzamento das fuderosas Habanero e a Naga Bhut Jolokia. Ou melar tudo com manteiga de garrafa, outra especialidade da casa. O almoço é servido até às 15, quando todos os presentes, tendo ou não concluído o repasto, é enxotado. Porta arreada só reaberta às 17, pros achegados da sopa Esquenta Peito, também acompanhada duma modesta talagada grátis da Teibei. Dizem que o sucesso da sopa é por conta daquele misterioso Osso de Hermilo. Sabiam? E ele bota nomes de tacacá, tacapitu e buré. Tudo encerrado sumariamente às 19, arriando as portas quando a noite vai subindo pro descanso diário. A partir da meia noite começa o serão, para o qual acorrem atraídos paisanos, dados por notívagos ou desencaminhados. É a hora do milagroso Mingau de Cachorro. Ô Zé me dá logo a gosma do guenzo que eu quero dar um plantão numa frochosa de Cantochão! Quem bêbado fica sóbrio; quem doente, curado; quem mortificado, salva-se uma alma! Glória, Deus! E para quem boiou ou caiou a noite toda, doses cavalares da Teibei para levantar a crista e ferver o juízo. Uma recomendação do proprietário: Beba com moderação, senão você sai do riscado todo triscado! Da sexta pro sábado o turno encomprida e vira noite adentro por causa da feira: Ô povo morto de fome! Só arriando as portas lá por volta das 13 e só reabrindo meia noite com o Festival Corujão-pra-que-te-quero. Esse é o estopô calango! É quando emenda ao domingo de porta-arreada às 5, só a portinhola do pega-bêbo aberta. É a hora do rega-bofe domingueiro, das garrafadas e doutras gororobas encomendadas durante a semana e só entregáveis aos domingos. As garrafadas Frevo Arrepia – a que levanta defunto de 7º dia, são muito procuradas e são preparadas pros fraquejados famélicos que encomendaram durante a semana e entregues inadiavelmente na hora aprazada: Esse xarope tônico é para tomar em jejum, tiro e queda! Ô bicha boa! No cardápio dominical pros perdidos e desencontrados, ele serve para pagar, pegar e levar: sopa da cabeça de peixe (camurins, acaris, jundiás, pirambebas, piabas, traíras, tudo do seu criatório no quintal de casa – ninguém nunca viu, quem vê morre!), pituzada, buchada de bode, a farofa - farinha assada na carapaça de tartaruga; afora cuscuz, salada de legumes e verduras, cobertura de queijo de coalho banhado por manteiga de garrafa; sem contar com cuscuz, canjica, xerém, munguzá, angu; ensopado de jerimum no queijo coalho, inhame, macaxeira, batata doce; tudo colorido com saladas de pimentão gigante, sementes e casca de romã ralada, castanha de caju, caroço de abacate, amendoim, casca e coroa de abacaxi, coco ralado, cebola, alho, tomate, limão, gengibre, outras ervas silvestres para dar mais gosto, como alecrim pimenta, aroeira, macela, cumaru e quebra-pedra; mais coentro, cebolinha, tudo ralado em pós, afora a coleção de pimenteira da sua flora diversa, mais as fruteiras de encher os olhos: maracujá, cereja, jaboticaba, tamarindo, cupuaçu, jaca, pitanga, acerola, graviola, caju, umbu, mangaba, jambo, siriguela, cajá, murici, cajarana, araticum; também licores de jenipapo, berinjela, caldo de cana, bolo de rolo, passa de caju, cocada, tapioca, arroz doce, munguzá, arrumadinho, escondidinho de charque, caldinho de peixe, peixadas, coalhadas, tudo com seus temperos poderosos nas receitas de sua própria experiência gastronômica. No balcão dos pega-bêbos só a teibei e pra tira-gostos na hora são tripa de porco ou salame, ou mesmo frutas que estão por ali perdidas para adoçar o paladar do recalcitrante. Às 18 fecha tudo e só segunda reabre, que ninguém é de ferro. É quando largam, às escondidas, a cozinheira e os auxiliares – lavadoras das louças, faxineira, copeira, os sobrinhos e afilhados: acima dos 10 anos ficam muito sabidos! Roubam que só a peste! O anfitrião ali ouve tudo e de tudo sabe, mas diz que não. Besta, nada. Ao ser perguntado: Não sei nada nem tenho tempo pra fuxico: futrica é na outra esquina. Foi o que respondeu certa vez pro delegado, que, já acometido pelas dores de um fecaloma desgraçado, emputeceu-se e destampou a bronca, de quase prendê-lo incomunicável. Ôpa! Deixa disso. Caso esclarecido. Morreu de quê mesmo? Ao delongar o tempo que nunca parou e choveu de doer horas inteiras terrafora, sem remorso, o frio novo madrugava, já manhã clara, ele lá no seu tanto vivido soçobrou. Às antes matas levitavam no solúvel do seu íntimo e calaram nele ao pé da cruz. Entregou-se sabe-se lá seus motivos e queixas, como um grito lavado pela lama empoçada no barro batido da rodagem pantanosa do choro. Foi-se triturado pela moagem barulhando esmagadora na moenda e o caldo do bagaço escorreu na veia estourada, o sangue e o piripaque no peito sem estrondo, de beirar o ostracismo com a alma nas trevas. Caiu do trono com uma ideia esquisita, doida, obstruindo embaixo, veia cardíaca lá do fundo onde guardava o resto da lembrança daquela de nunca mais e quixoteou súbita glória, era tarde, a incompletude do rastro na palma da mão, não havia mais aonde ia dar. Bateu biela, genuflexo: esvaziou-se no mata-borrão, olhos rasos d’água, caligrafia borrada, sem quê reinventar-se, desconchavado incólume e agora, não temia mais seus abismos, seus desertos segredos. Absorto, suspenso pela procissão de quelônios fantasmas, ai-de-quem, à tona incôngruo, seu tumulto foi maior. Foi-se com seus ais, quando lembrou de Deus e imergiu em zilhões de coisas ao mesmo tempo, difuso, despersonalizado, uno, foi-se. Era o tranquilo morrer-se enfim. Foi-se esquecendo pra renascer no epitáfio da lápide: Aqui jaz aquele que brindou a vida e tudo o que amealhou saiu gastando a peidar, arrotar, cagar e mijar; o amigo que lembrou dos vivos safados e dos que se foram... Eu também voo. Sepultado foi com um testamento emaranhado num nó cego da peste de bem dado que, até hoje, os parentes todos tentam desengachá-lo. Até mais ver.

 

Annie Ernaux: Procurei o amor da minha mãe em todos os cantos do mundo... A dor não pode ser mantida intacta, ela precisa ser “processada”, convertida em humor... Ela me ensina que o mundo foi feito para ser aproveitado e aproveitado, e que não há absolutamente nenhuma razão para se conter... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Coco Chanel: Não gaste tempo batendo em uma parede, na esperança de transformá-la em uma porta... O ato mais corajoso é ainda pensar por si mesmo... Como tudo está em nossas cabeças, é melhor não perdê-las... Veja mais aqui & aqui.

Dorothy Parker: Se você quer saber o que Deus pensa sobre o dinheiro, basta olhar para as pessoas que ele deu... A cura para o tédio é a curiosidade. Não há cura para a curiosidade... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

APOLOGIA ACONCHEGANTE

Imagem: Acervo ArtLAM.

Eu poderia escolher qualquer coisa e pensar em você \ — Esta luminária, a chuva parada pelo vento, o azul brilhante \ Minha caneta exala, secando fosca, sobre a página. \ Eu poderia escolher qualquer herói, qualquer causa ou época \ E, tão certo quanto atirar flechas no coração, \ Montado em uma égua malhada, pernas tão afastadas \ Quanto ficar em estribos de prata permitir \ — Lá estará você, com a testa franzida \ E a cota de malha brilhando, para me libertar: \ Um olho sorrindo, o outro firme no inimigo. \ Esta era pós-pós-moderna é só negócios: \ CDs e faxes, um evento do tipo "faça agora e não corra riscos". \ Hoje, um furacão está se aproximando da costa, \ Estranhamente masculino: o Grande Floyd Mau, que traz uma horda \ De devaneios: reminiscências constrangedoras \ De paixões adolescentes por garotos inúteis \ Cujo único talento era beijá-la até deixá-la sem sentido. \ Todos tinham nomes de maricas — Marcel, Percy, Dewey; \ Eram finos como alcaçuz e tão mastigáveis, \ Doces com um centro escuro e oco. \ Floyd Xingando sem parar. \ Você está enclausurado no seu Aerie, eu estou empoleirado no meu \ (Mesas gêmeas, computadores, pisos de madeira): \ Estamos contentes, mas ficamos aquém do Divino. \ Ainda assim, é constrangedor, essa felicidade \ — Quem se satisfaz simplesmente com o que é bom para nós, \ Quando o comum já foi notícia? \ E, no entanto, porque nada mais serve \ Para me livrar da melancolia (chame de tristeza), \ Preencho este tempo roubado com você.

Poema da premiada poeta e ensaista estadunidense Rita Dove (Rita Frances Dove), autora da obra On the Bus With Rosa Parks (1999).

 

GAIOLA DOURADA - […] Parece haver algum tipo de tristeza em você. Acho isso atraente. Desconfio de pessoas que andam por aí achando que a vida é só risadas o tempo todo. Pessoas que estão sempre felizes me entediam. Não deveríamos estar felizes o tempo todo, senão o mundo pararia. [...] O maior problema das pessoas, percebi, é que elas projetam sua própria tristeza nos outros. Tente compartilhá-la. Elas imaginam que, por compartilharmos o mesmo DNA, automaticamente nos sentiremos tristes com as mesmas situações. A tristeza não fica mais fácil de lidar simplesmente porque você a compartilha. Pelo contrário, ela se torna mais pesada. [...] A libertação de se encontrar no fundo do poço. Sem risco de cair ainda mais na merda. [...]. Trechos extraídos da obra Golden Cage ( Vintage Crime/Black Lizard, 2021), da escritora sueca Camilla Läckberg, que na sua obra The Cuckoo (Hemlock Press,2024), ela expressou que: […] Literatura é vida e morte. Pessoas vêm e vão. Nós vivemos. Nós morremos. Mas a literatura que criamos continua viva. [...]. Já no seu livro El espejismo - Planeta Internacional nº 3 (2024), ela registra que: […] Conceda-me serenidade para aceitar o que não posso mudar, coragem para mudar o que posso e sabedoria para saber a diferença. [...]. Também é autora de obras como: Women without mercy (2018), Buried Angels (2014), The Angel Maker's Wife (2011), The Ice Princess (2011), The Preacher (2011), Las hijas del frío (2011), The Hidden Child (2007), entre outros, sendo atrabuida a ela a frase: Se você não se permitir amar, correria o risco de perder tudo... Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

ANÁLISE - [...] Muitos são os caminhos que nos levam a procurar a ajuda de um psicanalista, e todos passam por um certo caldo de cultura que entende que a psicanálise seria uma resposta para o sofrimento. Calhou de eu sentir uma tristeza enorme aos dezessete anos, e de conhecer uma psicóloga que conhecia uma psicanalista. Daí para cair de costas num divã foram dois palitos. Já o percurso que me levou a precisar de ajuda é bem mais custoso de descrever. Resisto o quanto posso. Essa história tem infinitas versões possíveis, e qualquer coisa que eu disser a partir daqui será mais uma delas, ou seja, construções e improvisos sobre um vazio original. Nasci a quinta filha em uma prole de seis — ou deveria dizer oito, uma vez que meu pai teve dois filhos fora do casamento, cuja existência só descobri na adolescência? [...] Freud diz que o trauma é precedido pela calmaria para a qual sonhamos voltar, na expectativa impossível de recolocar a pasta de dentes no tubo espremido. Buscamos refúgio nas cenas que antecedem o acontecimento trágico, recriando um momento idílico antes do mal súbito. É como se, no meio de uma guerra, sonhássemos com o tempo anterior ao fatídico bombardeio no qual perdemos um ente querido, sob a condição de esquecermos convenientemente que já estávamos em guerra. Mas há outras formas de lidar com a intensidade traumática. Uma paciente pode contar uma cena de abuso da qual só se lembra das cores do lustre que tinha ao alcance dos olhos. É como se, para suportar o insuportável, só lhe restasse reduzir-se a um olho que vê um lustre, deixando o corpo ausente de si enquanto o algoz desfruta dele. Os relatos de tortura dizem muito dos subterfúgios que usamos para preservar a alma frente ao horror. [...]. Trechos extraídos de Análise (Zahar, 2025), da psicanalista e psicóloga Vera Iaconelli, atuando como membro do Instituto Sedes Sapientiae e da Escola do Fórum do Campo Lacaniano, autora dos livros Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Zagodoni, 2020) e Criar filhos no século XXI (Contextoi, 2020).

 

DEMOROU MUITO, DE ADMMAURO GOMMES

Imagem: Acervo ArtLAM.

[...] Ninguém me avisou que eu teria \ que passar por lugares tão estreitos \ e íngremes e escorregadios \ e enfrentar perigos inúteis. \ Tudo era para ter o aroma da felicidade \ e beijos e flores e cores e afagos \ mas nada de fantasmas medievais \ nem internéticas assombrações. \ Era para ser o filme do ano \ a conquista sempre e inevitável \ e o renascer da esplendorosa manhã \ onde os campeões dão a volta olímpica \ com a taça na mão. [...].

Trecho do poema Demorou muito, do poeta, professor e revisor Admmauro Gommes, poema este que recebeu modestas considerações minhas e uma resenha crítica do poeta Vital Corrêa de Araújo. Veja o texto completo aqui & mais aqui & aqui.

 

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domingo, agosto 17, 2025

ASTRID ROEMER, AMANDA MONTELL, CRISTINA RIVERA GARZA, CUMADI FULOZINHA & ARTE DA ESCOLA


 Imagem: Acervo ArtLAM.

[...] a questão-chave investigada nesta pesquisa diz respeito a desconstruções estéticas vocais - com foco na movimentação da Vanguarda Paulista - e como isso pode estar associado ao feminino. [...] buscou contribuir para uma extensa gama de pesquisas que relacionam música a questões de gênero, além de apontar a coexistência colaborativa entre diversos métodos para a análise de canção das mídias. [...].

Trechos extraídos da dissertação de mestrado sob a temática Se a obra é a soma das penas: um estudo feminista sobre as cantoras da Vanguarda Paulista (USP, 2018) e ao som do álbum Mulher Bomba (2022), da compositora, pianista, cantora, professora, preparadora vocal e ativista Luísa Toller (Luisa Nemésio Toller), em parceria com a escritora, atriz e slammer Luiza Romão.

 

Heptamerão: até que a morte os separe... - No primeiro dia era janeiro nos olhos estivais de Suzanilza, a sonhar Egipcíaca de Bandeira, como se fosse a rainha de maio da Vita de Sofrônio. Entretida com o que se tornara seu Heptameron de Navarre, mais se embalava com as leituras dos versos adorados da Soror Juana Inés, alentando-se com outras de tantas preces, quando empinava os seios para madurar nas estrelas, no afã de que de lá refletissem aos olhos do bem-amado longínquo, sabia ela não tardaria a chegar. Era o chamado do amor numa espera de séculos e por todas as suas tardes e noites suspirantes. No segundo dia do seu devaneio profundo, o espetáculo do crepúsculo outonal: lá estava ele vencendo as distâncias mais remotas para ancorar seu Pavão Mysterioso na varanda do quarto dela. Iluminada pela recepção, mais se fez bonita lua decotada, pronta pro seu senhor desejado. Ele abraçou-a com suas mãos de Proteu, dela se deixar à mercê de suas investidas por entre saia, a desabotoar seu corpo virginal castiço, com ginga pro rastapé, bate-coxa, um galope à beira-mar. Ele descobria o labirinto da intimidade dela e a cada instante reiniciava e, por azo, fruía do seu inebriante perfume arrebentando o tempo, agitando por dentro para que ela se fizesse dilúvio com seus belos adornos ao seu dispor. E mais se gabava porque o vento trazia a tormenta e tanto lhe foi dado atiçando a lareira dela, para que ela crescesse vultosa e não mais donzela, ocupando-a a instigá-la, de perder as vestes todas e ser só dele, a se queimar com o seu fogo ardente. Ela astuciosa serviu-lhe fagueira, a boca entreaberta e suas águas escorriam. Um talho recíproco em seus polegares selou definitivamente o pacto de sangue. A alvura dela imaculada o fazia claudicar extasiado diante do enlace dos nubentes. E naqueles lábios escarlates ele se lambuzou com o gosto do batom, saboreava nela tantos quantos deliciosos bem-casados. Dali talvez dias mais, ela noivava esponsal de Getulídio, um aplicado bancário de somas e contas, agora dono de seu coração e um calendário repleto de brindes e libações. No terceiro dia de quantos meses a lua de mel se prolongou com a ascensão primaveral no ramalhete diário de bem-aventurados e os dois se engalfinhavam pelos lençóis do tempo e até as horas cúmplices se estiravam pelos colchões de nuvens migratórias, impressionando-o com o Olho de Hórus no trancelim dela. Logo os filhos vieram. O primeiro a nascer foi Ínvio, um primogênito na empáfia de todas as satisfações. Um ano depois, a filha, Maria Lua, coroando o casal. E viviam para si de quase olvidar o crescimento do filho a olhos vistos, enquanto a filha engatinhava sonhos que serviam de folguedos para sua felicidade imorredoura. Definia-se a descendência, de quase não conseguirem segurar o trupé do coração. E um sobressalto repentino, a família e, o que era cor-de-rosa, agora singrava as obrigações e cuidados imprevisíveis com o espelho quase se espatifando inadvertido, trincando o vidro dos festejos. No quarto dia a invernada súbita e a dança dos erros com a morrinha, o grande não, os desacertos, quantos percalços fizeram a barra mais pesada pra eles, a poeira do deserto, puxa vida! Amargurados, sequer notaram os filhos crescidos e tomando o rumo das suas ventas. Um dia ao despertar com a braguilha pelo avesso: um brinco na orelha do filho. Como é? O alarme soava: o rapaz descobriu-se outra que não a sua, era agora Tyrésias. Com o escândalo Maria Lua minguou fazendo coro, não mais aquela porque outro era o seu teimar, João Sol – Maria Joãozinho para íntimas de sua sororidade solidária, luz própria, próprio mando e firmeza de fé. Clamores exacerbados: O que foi que eu fiz, meu Deus? Era o caos nos olhos descabelados em todas as direções: uma heresia nos seus bíblicos poréns, como se não poupasse sua condenação - Maldita androginia! O ridículo, a posteridade, a reputação, tudo revirado aos relâmpagos e trovões. Uma sentença secreta mostrando os dentes na aflição paterna. No quinto dia ensolarado, o verão era enorme como um dia de fome, lágrima alguma evaporava, não havia perdão e era o que mais punia. A notícia da tentativa de suicídio do filho liquidava de vez as forças maternas restantes e não havia como ela resistir. Na sua agonia estertorava com a ameaça de que a filha fugira de casa na madrugada. O pai se vingou: ia enxotá-los de qualquer jeito. Suzanilza estava cônscia que ia morrer, esgotada pelas demandas: era quase uma Fênix deplorada e que se fez cinzas para jamais ressuscitar - uma estrela perdida nas constelações infindas. Quando ele a viu quase uma estátua de pedra, sabia que seria nunca mais: a viuvez, os cravos de cemitérios, os choramingos, nada havia como abrandar a sua dor. O riso preso pela alegria que se fora com o teto que desabou apagando a memória, lugares e palavras. Entre as mãos escondia a face, a morte adiantava a sua parte e não moveu um dedo sequer: ela viva jamais o deixaria morrer. Agora, não mais. Era o sexto dia pluvioso, a desmemória e não podia ignorar o álbum de fotografias. Foi-se a esperança e o que ficou para trás. Naquele momento todos as memórias se esvaíram na escuridão. Tentou reabilitar-se no penúltimo degrau da escada para destruir o sinaxário, como se caçasse quem roubou o segredo de Deus e raptou para si a palavra perdida. Ali sentia e era incapaz de entender seu próprio sentimento. Muitas noites naquela longa travessia soturna com a herança apenas de cada vez contar a sua história e a sensação reiterada de nunca mais. Enfim, no sétimo era dia branco e não sabia. Passou a vida a limpo, lamentou tantas vezes terem se estranhado por coisa de pouca monta, as cenas de ciúmes, ausências punitivas, o descanso, o silêncio valetudinário, esgotava-se. E uma luz nas suas trevas: Quem é ela? Vinha calma, cândida, vestida com seu manto branco reluzente, cocar de penas brancas e, ao peito, a insígnia com um punhal branco afiado e lâmina para baixo. Quem é ela? Vinha carregando o seu bastão celeste feito de pau-brasil banhado pelos raios de Tupã, à cintura o cordão de Iara e o sorriso confortador: Sou Catxuréu: O fim será sempre o início de um novo começo... Não ouvia, nem falava. Sabia apenas que ela viera da primeira morte do mundo para levá-lo pela ponte dos que se perderam, livrando-o de Luison – o deus da morte ruim. E o acompanhou até a sua última gota de vida, era 1º de abril. Até mais ver.

 

Nazik Al-Malaika: A noite pergunta quem eu sou. Eu sou sua intimidade insone, profunda e escura. Eu sou sua voz rebelde... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Annie Proulx: Somos todos estranhos por dentro. Aprendemos a disfarçar nossas diferenças à medida que crescemos... Veja mais aqui, aqui & aqui.

Martha Medeiros: Viver tem que ser perturbador, é preciso que nossos anjos e demônios sejam despertados, e com eles sua raiva, seu orgulho, seu asco, sua adoração ou seu desprezo... O que não faz você mover um músculo, o que não faz você estremecer, suar, desatinar, não merece fazer parte da sua biografia... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

ESCOTOMAS - Espumante: \ Esta área cega do campo visual \ é uma série de \ flashes de luz em movimento. \ O fato de saber \ coisas \ só porque \ o fato de imaginá-los \ a mente vê \ o que quer ver \ claramente. \ A cama. \ A cicatriz.

REENCARNAR - O luto é uma questão de excesso de ordem. \ Luto é a mesma coisa que tristeza? \ Certamente ela já teria se perguntado isso antes. \ Não sei o que ele poderia ter perguntado a si mesmo. \ Se em vez de irem a uma festa \ tivessem ficado sozinhos em casa, sem dúvida teriam chorado. \ Sem dúvida: essa frase me assusta. \ É possível que o homem e a mulher tenham ficado em silêncio em cômodos diferentes da mesma casa. \ Casas grandes acomodam a solidão de seus habitantes. \ Uma frase completa é como uma sala onde uma mulher ou um homem chora sem perceber. \ O céu nunca esteve tão azul. \ A tristeza é frequentemente expressada através do choro. \ Também é comum que a tristeza seja inexprimível. \ Tristeza é a mesma coisa que pesar?

Poemas da premiada escritora, tradutora e crítica mexicana Cristina Rivera Garza, autora de Autobiografía del algodón (2020), El invencible verano de Liliana (2021) e a sua coletânea completa de poesias, Me llamo cuerpo que no está (2023).

 

BRANCO QUEBRADO - […] E o vento alísio da tarde trouxe o ar do mar. "Como está a cozinha?", ela disse: "Vai demorar um pouco para tudo ficar bem macio." Um aceno da avó e ela correu para a cozinha para colocar tudo em fogo baixo e finalmente começar a lavar roupa. A avó entrou na cozinha, como se fosse direto para o banheiro. Parou quando ouviu a máquina de lavar funcionando e olhou para ela com curiosidade. [...] Ela continuou convencida de que havia nascido na família errada, no país errado, na época errada. E, no entanto, eles conseguiam ficar lado a lado e recuperar o fôlego na foz do Rio Suriname. [...]. Trechos da obra Gebroken wit (Prometheus, 2019), da escritora e professora surinamesa-holandesa Astrid Roemer (Astrid Heligonda Roemer), no qual conta sobre três gerações de surinameses, a avó Bee, sua filha Louise e seus cinco netos, tentando encontrar seu caminho no mundo, no Suriname e na Holanda, enquanto segredos obscuros de família estão em jogo. Em uma entrevista concedida (Center For The Art Of Translation, 2023), ela expressa que: [...] é um romance que te toca profundamente. É um livro físico. Comer e preparar refeições, beber, pensar e se envolver com a sexualidade são atividades físicas. Esse é o paradigma desses romances, que formarão uma trilogia. [...] Fundamentalmente, eu nunca tinha ido embora. Por volta da virada do século, depois da minha trilogia de 1.000 páginas, Impossible Motherland, a então respeitada revista feminista Opzij chegou a me nomear uma das três mulheres mais importantes dos últimos anos. Eu queria dar ao meu trabalho a chance de se conectar com a sociedade holandesa e alcançar uma geração mais jovem. E enquanto minha carreira estava voando alto em público, eu estava lutando com constantes arrombamentos em meu endereço residencial e com telefonemas ameaçadores de estranhos. Eu havia me libertado de certos laços íntimos. Eu estava pronta para escrever romances como Off-White e Dealer's Daughter, junto com novos poemas que expressariam minha visão de mundo cosmológica. Eu sentia um desejo intenso por um habitat de língua inglesa. Eu me estabeleci na Escócia e em Skye, de onde alguns dos meus ancestrais haviam partido para o Suriname. Eu era tão feliz lá, só eu e minha gata Steffi. Agora estou redescobrindo o lado estadunidense dos meus primeiros anos em antigas canções de amor. [...]. É também autora de On a Woman's Madness (1982).

 

A LINGUAGEM DO FANATISMO - [...] as palavras são o meio pelo qual os sistemas de crenças são fabricados, nutridos e reforçados; seu fanatismo fundamentalmente não poderia existir sem elas. [...] a linguagem não funciona para manipular as pessoas a acreditarem em coisas que não querem acreditar; em vez disso, ela lhes dá a liberdade de acreditar em ideias às quais já estão abertas. A linguagem — tanto literal quanto figurada, bem-intencionada e mal-intencionada, politicamente correta e politicamente incorreta — remodela a realidade de uma pessoa somente se ela estiver em um lugar ideológico onde essa remodelação seja bem-vinda. [...]. Trechos extraídos da obra Cultish: The Language of Fanaticism (Harper, 2021), da escritora e linguista estadunidense Amanda Montell, que noutro livro Wordslut: A Feminist Guide to Taking Back the English Language (Harper, 2019), ela expressou que: […] Um dos conselhos menos úteis da nossa cultura é que as mulheres precisam mudar a maneira como falam para soar menos "como mulheres" (ou que pessoas queer precisam soar mais heterossexuais, ou que pessoas de cor precisam soar mais brancas). A maneira como qualquer uma dessas pessoas fala não é inerentemente mais ou menos digna de respeito. Só soa assim porque reflete uma suposição subjacente sobre quem detém mais poder em nossa cultura. [...] Uma das formas mais sorrateiras pelas quais esses preconceitos se manifestam é que, na nossa linguagem, na nossa cultura, a masculinidade é vista como o padrão. [...] Se você quer insultar uma mulher, chame-a de prostituta. Se você quer insultar um homem, chame-o de mulher. [...] Também vivemos numa época em que vemos veículos de comunicação respeitados e figuras públicas circulando críticas à voz feminina – como a de que elas falam com muita fricção vocal, usam palavras como "literalmente" e "literalmente" em excesso e pedem desculpas em excesso. Eles rotulam julgamentos como esses como conselhos pseudofeministas, visando ajudar as mulheres a falar com "mais autoridade" para que possam ser "levadas mais a sério". O que eles parecem não perceber é que, na verdade, estão mantendo as mulheres em um estado constante de autoquestionamento – mantendo-as quietas – sem nenhuma razão objetivamente lógica, a não ser o fato de que elas não soam como homens brancos de meia-idade. [...].

 

MINHA CUMADI FULOZINHA, DE GIVA SILVA

Somos filhos da Mãe da Mata e tivemos com ela, cada qual, as suas experiências. Justamente por isso mesmo: desde a mais tenra idade a Cumadi Fulozinha faz parte das nossas vidas. E há quem, como eu e o autor desta obra, tenha vivenciado muito e tanto, a ponto de, em si, manter sagrada as marcas ancestrais vivas em sua espiritualidade. Afinal, confesso: até hoje ela vive comigo. Além do mais, outras coisas contadas e cantadas: somos causas e consequências de histórias - todas emergentes a cada dia, a cada ano vivido, em cada momento do presente que passou agorinha mesmo. Eita! Foi. Inventamos estórias por vivermos dos porquês, fatos, fantasias, devires. Vivemos do que vem de dentro: o que é e será sempre. Enfim, somos todos hestórias (LAM).

Texto escrito por mim para a publicação do livro Cumadi Fulozinha (2025), do educador, comunicador e militante indígena Giva Silva (Givanildo M. da Silva), que é o idealizador e coordenador da Tv Imbaú. O livro que se encontra em pré-venda é memorialístico e onírico, mergulhando nas lembranças de um menino guiado pelo avô num universo de descobertas infinitas. No centro dessa jornada, como objeto de fascínio e curiosidade, está uma das figuras mais enigmáticas e fundamentais da cultura indígena e popular do Nordeste: a protetora das matas, Cumadi Fulozinha. Com uma narrativa que oscila entre o real e o imaginário, o texto evoca não apenas as memórias afetivas da infância, mas também a força mítica dessa entidade guardiã, cuja presença transcende as histórias sobre ela para se tornar um símbolo de resistência e mistério. O avô, como narrador e guia, conduz o menino (e o leitor) por um mundo, no qual os limites entre a realidade e o sonho se dissolvem, revelando a profunda conexão entre a cultura ancestral e a formação de um imaginário pessoal. Assim, a obra comemora a tradição oral, o afeto familiar e o poder das histórias que moldam quem somos—ou quem desejamos ser. Veja mais aqui, aqui & aqui.

&

ARTE NA ESCOLA

Arte dos alunos da Escola Municipal Ivonete Ferreira Lins & do Ginásio Municipal Fernando Augusto Pinto Ribeiro, de Palmares – PE. Confira aqui e aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Acontecerá entre os dias 18 e 22 de agosto, na Biblioteca Pública Municipal Fenelon Barreto, em Palmares, a 18ª Semana do Patrimônio Cultural de Pernambuco, com a temática Palmares de todos os saberes: cultura popular na voz do povo. Dentro da programação, no dia 19 de agosto, nos turnos da tarde e noite, realizarei a palestra Cordel, contos & causos de Palmares: Narrativas da Mata Sul pernambucana.

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.


 

ANNE CARSON, MEL ROBBINS, COLLEEN HOUCK & LEITURA NA ESCOLA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som do álbum Territórios (Rocinante, 2024), da premiada violonista Gabriele Leite , que possui mestrado em...