CARTA PARA CAROLINE - Carrie, guardiã do meu idílio, feroz
protetora, a mulher é um brinquedo perigoso. Escrevo esta carta porque guardo em
mim a vida de Bombaim com seus odores picantes, seus múltiplos ruídos, suas
excessivas cores, seus contrastes apaixonantes no topo do termômetro: a vida em
brasa pelas imundícies, superstições e a estupidez religiosa. Comecei como um
rapaz comum, alma florescente. Já míope, salvava-me o bigode precoce de
poeta-menino, escrevia uma ou outra ninharia, parvoíces da adolescência, só rabiscos,
garatujas, garranchos que eram as miniaturas do universo e os pormenores de
tudo que circundava a minha vida. Não sou nem nunca fui poeta porque sou livre.
Aprendi no jornal, vendi a alma à arte negra e à universidade do mundo com
truques taquigráficos. Para minha atitude corcunda não houve uma próxima vez,
nem uma segunda chance, a rudeza, o tempo não era mais jardim da infância, eu
apenas amante de livros. Por aí viajei muito, me soerguendo aos catabis do
fracasso, quantos insultos cuspidos à face. Para quem não era à prova de fogo, derramei
um copo de uísque nas páginas do Ladies’
Home Journal. Nunca recuei e desde o homem que seria rei, eu era Joseph e
não quis mais sê-lo. Tornei-me companheiro, mesmo não sendo tratável com a fé
de Nietzsche. Guardo em mim o nosso bangalô espaçoso com as achas de pinheiro
de Vermont que dava pro polegar do gigante apontado pro céu, a nossa Naulahka diante do Monte Monadnock, tudo era você a mulher que me
abrigava no meu abençoado rincão e em todo momento. Enquanto eu brincava com
cenas curtas no meu teatrinho e me divertindo com a criação de tudo, me protegia
na câmara do dragão, perdemos Josie para a febre tifóide e Jack para a guerra.
Disso nunca me recuperei. Enfim, guardei para mim mesmo as mais profundas
tristezas e fiz meu apelo àqueles que se jactam das conquistas e opressão,
vindicação ao bruto que se vangloria como uma besta loura. Ando a pé, muito. Meus
olhos são incursões pela mata e tudo ao redor, já sem os capitães corajosos e
os livros da selva, nem intrusos indesejáveis pelo coquetel de gírias e
sublimidade. Tudo uma cortina de fumaça que se desfaz aos
mortos com seus olhos escancarados. Meu coração velho desolado, tal qual
daqueles que perderam seus filhos pras guerras, sente apenas balas e granadas do
fratricídio pela fé, ódio pela esperança antiga e morta, nenhuma valia de nada:
as palavras sábias não dão conta do que oprime lá no íntimo. Eu sabia as duas
maiores de todas as coisas, o amor e a guerra. Nunca quis lutar porque já afloram
tumultos e gritos horríveis todos os dias. Todos partiram, só ficou o antigo
sacrifício. Que eu jamais esqueça, oh não, o pior é lembrar. A lei é uma
palavra enferma, não sobrou nada, apenas ruínas, mentiras e desavenças. Sou meu
testamento nas mãos limpas e vazias, um gesto inútil na insondável solidão de
um humilde e contrito coração, uma única vida para dar. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS: [...] Num
dia, todas as coisas estão cansadas e até os cheiros que sobem no ar pesado
parecem velhos e usados. Não dá para explicar, mas a gente sente que é assim.
Então vem o dia seguinte, em que nada mudou para a visão, mas todos os cheiros
são novos e deliciosos; e os bigodes do Povo da Selva estremecem até a ponta, e
os pelos de inverno caem dos seus corpos como tranças emaranhadas. Às vezes,
cai um pouquinho de chuva e todas as árvores, arbustos, bambus, musgos e
plantas de folhas suculentas acordam e crescem tão depressa que é quase
possível ouvi-las fazendo isso; e, sob esse ruído, há, dia e noite, um zumbido grave.
Esse é o som da
primavera — uma retumbância vibrante que não vem nem das abelhas, nem da água
que cai, nem do vento nas copas das árvores; é o ronronar de um mundo cálido e
feliz. [...]. Trecho de A corrida de
primavera, extraído da obra
Os livros da selva: Mowgli & outras
histórias (Companhia das Letras, 2015), do escritor britânico Rudyard
Kipling (1865-1936), que durante a infância foi submetido, junto com sur
irmã Alice, aos maus tratos de um parente, para em seguida ser internado numa
escola afetuosa. Os poemas, ensaios
e contos que escreveu durante os “sete anos difíceis” passados na Índia, fizeram
com que o autor imediatamente ganhasse uma boa reputação e, a partir de sua
chegada a Londres em 1889, se tornasse uma celebridade literária no mundo todo.
Em 1892, ele casou-se com a estadunidense Caroline Balestier (1862-1939),
em Vermont por quatro felizes anos, durante os
quais nasceram suas filhas Josephine e Elsie, e escreveu os dois Livros da Selva (1894 e 1895). Numa viagem a Nova York em 1899, sua
filha Josephine, então com seis anos, morreu de pneumonia, doença da qual
Kipling mal escapou com vida. Seus livros continuaram a vender e a ser lidos em
todo o mundo, e ele recebeu doutorados honoríficos de diversas universidades e
o prêmio Nobel em 1907. Durante a Primeira Guerra Mundial, perdeu o filho na
Batalha de Loos, em 1915, tornando-se um homem mais reservado. Caroline era a guardiã de seu legado
literário, era considerada oportunista pelos pais de Kipling e detestada por
seus colegas de arte e literatos, no entanto, sua perspicácia nos negócios e
sua atitude ferozmente protetora em relação ao marido, permitiram que ele se
concentrasse em seus escritos sem distrações, e o prolífico autor produziu a
maior parte de seus livros. obras-primas durante o casamento de 44 anos. Apesar
de seu próprio sofrimento intenso, ela também o sustentou em crises familiares,
incluindo a morte de dois de seus filhos: Josie, 6 anos, de febre tifóide em
1899, e Jack, 18 anos, em combate durante a Primeira Guerra Mundial. Veja mais
aqui e aqui.
DESTAQUE: SERÁ QUE AMÉLIA AINDA É “AQUILO”? - Amélia faz parte da memória social
brasileira como exemplo maior de submissão da mulher. Tudo por conta do samba
homônimo “Ai, que saudade da Amélia” lançado no carnaval de 1941 descrevendo-a
como a mulher de verdade. A letra atingiu em cheio o imaginário coletivo a tal
ponto que virou verbete no Aurélio como: “/mulher que aceita toda sorte de
privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem/”. Apesar dessa
pecha, virou sucesso estrondoso por várias décadas. As ouvintes mulheres
custaram a se contrapor ao conteúdo misógino da mensagem onde a personagem em
questão chega a ser vítima de uma anorexia impositiva: “às vezes passava fome
ao meu lado / e achava bonito não ter o que comer”. Pasmem, mas seus maiores
predicados resumiam-se a nada querer, nem tampouco "tinha a menor
vaidade". Assim mesmo, era uníssona entre homens e mulheres a opinião
sobre a Amélia: “Aquilo sim é que era mulher”. Mas ela não era a única. Havia a
Emília, também campeã nas paradas de sucesso surgida no mesmo ano e com o mesmo
feitio de sujeição total e absoluta ao parceiro de cama e mesa. Só que
acompanhava entre outras característica um adicional utilitário: “quero uma
mulher / que saiba lavar e cozinhar [...] além de outra vantagem – a função de
despertador: “que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar” [...]. Sem falar na seguinte prerrogativa: nas
tarefas domésticas era imbatível: “ninguém sabe igual a ela / preparar o meu
café / não desfazendo das outras / Emília é mulher” [...]. Na trilha dessas mulheres seguiram outras e
outras até chegar ao século 21. Resta, portanto, saber quantas mulheres por ai
continuam a levar hoje em dia uma vida de Amélia? Artigo extraído do blog A musa sem máscara: a imagem da mulher na música
popular brasileira, da escritora, pesquisadora, produtora cultural,
consultora e palestrante Maria Áurea Santa Cruz, que assim se apresenta:
Eu não sei poetar / Mas sei dizer o que
sinto / E, de forma maiúscula e minúscula / Traduzo em palavras o meu modo
de pensar. Veja mais aqui & aqui.
A MÚSICA
DE OLGA SCHEPS
O ponto alto da minha vida profissional é sempre o
próximo concerto, a preparação e a alegria da música. Eu acho que não é
possível fazer essa profissão sem alegria.
OLGA SCHEPS - A arte da pianista russo-alemã Olga Scheps com extraordinários
poderes de expressão, encantando o público em toda a Europa há vários anos e produziu
cinco CDs nos últimos seis anos - quatro discos solo de recital e uma gravação
luminosa e tocante dos dois concertos de Chopin. Veja mais aqui.
A ARTE DE AYDEMIR SAIDOV
AYDEMIR SAIDOV - A arte do premiado pintor
russo Aydemir Saidov que expõe em museus
na Rússia e também em coleções particulares na Grã-Bretanha, EUA, Alemanha,
China e vários outros países. Veja mais aqui.
A ARTE PERNAMBUCANA
Documentário Nordeste do médico, professor catedrático, pensador, ativista
político e embaixador do Brasil na ONU, Josué de Castro (1908-1973) aqui e mais aqui.
Em busca de Thargélia: poesia escrita por mulheres em
Pernambuco no segundo Oitocentismo - 1870-1920(Fundarpe, 1996), organizado por Luzilá Gonçalves Ferreira
aqui.
Memória e ficcionalidade em Deus no pasto de Hermilo Borba
Filho (UFPE, 2009), apresentada por Virginia Gisele Carvalho aqui.
&