Curtindo
o álbum Viagem pelo Brasil (Akron, 2000), da cantora soprano Anna Maria
Kieffer, da instrumentista de viola de arame Gisela Nogueira e do guitarrista
Edelton Gloeden, interpretando música de José Mauricio Nunes Garcia, Francisco
Manuel da Silva, música indígenas e canções populares brasileiras de São Paulo,
Minas Gerais e Bahia. Veja mais aqui.
A SOLIDÃO DE CAMPANELLA – Quem aquele de Stilo
que falou o que disse e até hoje ninguém ouviu, autor da Philosophia
Sensibus Demonstrata para defender as ideias de Telésio, inspirado na República platônica e na Utopia de Morus:
a necessidade da experiência humana como base filosófica – o sesciente sente o
calor por intermédio de si mesmo que foi submetido ao próprio calor. Foi daí um
neoplatônico embasado no materialismo de Demócrito – as qualidades sensíveo comuns
ou primárias, as secundárias ou próprias - e levado pela poesia da magia,
medicina e astrologia. E uma acusação inquisitorial: seus conhecimentos foram
adquiridos de fontes diabólicas. Em liberdade não é aceito na catédra de Pisa. Ao
dirigir-se para Pádua teve seus manuscritos confiscados. E logo depois preso
depois da visita a Galileu implicado em quantos processos, inclusive de sodomia.
Encaminhado para Roma, lá Bruno já estava preso. Aí, na clasura, quantas páginas
escritas. Novamente a liberdade para testemunhas a miséria do seu povo. Suas ideias ganham movimento de conjuração e
o golpe é descoberto, agora o crime incluía sedição. Os detidos um a um
despedaçados à roda, outros dependurados por um pé, tantos esquartejados com a
cabeça exposta em uma jaula e o escarmento do povo. Mas ele foi torturado até fingir loucura e ser
submetido à tortura da vigilia, com as carnes em pedaços e sangrando, mantido
em prisão perpétua. O perdão não viera, mas foi posto em liberdade a dar aulas.
Escreve então a favor de Galileu e contra a inquisição, a defesa da ciência
sobre a religião. Repete Giordano Bruno com a doutrina da dupla verdade, apoia
o heliocentismo, a heterodoxia que beirava à heresia. Aprisionado vem a seleção
de poemas e a metafísica: a estrutura trinitária de poder, saber e
amor. A obra sequestrada e quem o filósofo da de Città
del Sole escrita enquanto aprisionado por longos vinte e sete anos, acusado
por contar com apoio dos turcos na revolta contra o poder filipino. É nessa
obra que apresenta sua teoria do conhecimento, estabelecendo a dúvida universal
como ponto de partida para todo pensar verdadeiro. Foi daí a afirmação do
principio da autoconsciência, como base do conhecimento e da certeza – o conhecer
e o ser. Admitiu, com isso, desvendar a estrutura das coisas e a essência do
Universo, inspecionando os conteúdos da consciência. Os atributos fundamentais
de todo e qualquer ser é a existência, o conhecimento e a vontade – o supremo
bem consiste na autopreservação, as primalidades do ser. Quem o poeta que foi dominicano da Calábriae tornou-se antiaristotélico, que
disse o que dissera, mais célebre do que conhecido e que ruminou nos cárceres
do Santo Ofício romano por heresia e conspiração. Veja mais abaixo.
DITOS & DESDITOS – A alma, o mistério da alma, é esta a minha paixão. A alma
é a interioridade de tudo que é vivo. A patologia e a psicologia clínica nunca
me atraíram. A intenção em meu trabalho não é curar, mas cultivar a alma,
favorecer a individuação. Sei, por experiência, que quando a alma reencontra
sua vida, não há mais lugar para doença.
Pensamento do psicólogo belga Leon
Bonaventure.
ALGUÉM FALOU: O amor deve
combater e vencer todas as formas de divisão, de dispersão, de oposição... Pensamento
do filósofo e poeta italiano Tommaso Campanella (1568-1632). Veja mais
aqui, aqui e aqui.
JORNADA DO ESCRITOR - [...] Percebi que as boas histórias afetavam os órgãos do meu corpo de várias
maneiras, e as realmente boas estimulavam mais de um órgão. Uma história eficaz agarra seu intestino,
aperta sua garganta, faz seu coração disparar e seus pulmões bombearem, traz
lágrimas aos seus olhos ou uma explosão de risadas aos seus lábios. [...] Os jovens, na sua inocência, são muitas vezes sábios e capazes
de ensinar os mais velhos. [...] É uma regra muito forte no drama e na
vida que as pessoas permaneçam fiéis às suas naturezas básicas. Eles mudam, e a sua mudança é essencial
para o drama, mas normalmente mudam apenas um pouco, dando um único passo no
sentido de integrar uma qualidade esquecida ou rejeitada nas suas naturezas. [...] Um mito... é uma metáfora para um mistério além da compreensão
humana. É uma
comparação que nos ajuda a compreender, por analogia, algum aspecto do nosso eu
misterioso. Um mito, nesta forma de pensar, não é uma inverdade, mas uma forma de
alcançar uma verdade profunda. [...] Escrever
costuma ser uma jornada perigosa. A baixa auto-estima ou a confusão sobre os objectivos podem ser as Sombras
que gelam o nosso trabalho, um editor ou o nosso próprio lado crítico podem ser
os Guardiões do Limiar que bloqueiam o nosso caminho. Acidentes, problemas de computador e
dificuldades com tempo e disciplina podem nos atormentar e nos insultar como os
Malandros. Sonhos irrealistas de sucesso ou distrações podem ser os Metamorfos que nos
tentam, confundem e deslumbram. Prazos, decisões editoriais ou a luta para vender nosso trabalho podem ser
os testes e provações dos quais parecemos morrer, mas somos ressuscitados para
escrever novamente [...] Quando você
“escreve” uma palavra corretamente, você está na verdade lançando um feitiço,
carregando esses símbolos abstratos e arbitrários com significado e poder. [...] O encontro com Campbell foi, para mim e para muitas
outras pessoas, uma experiência de mudança de vida. Alguns dias explorando o
labirinto de seu livro O Herói de Mil Faces produziram uma reorganização
eletrizante de minha vida e de meu pensamento. Aqui, totalmente explorado,
estava o padrão que eu vinha sentindo. Campbell havia quebrado o código secreto
da história. Seu trabalho era como um clarão iluminando repentinamente uma
paisagem profundamente sombreada. [...]. Trechos extraídos da obra The Writers Journey: Mythic Structure for Writers (Michael Wiese, 2007), do escritor e roteirista estadunidense
Christopher Vogler.
ELA – [...] Sim, todas as
coisas vivem para sempre, embora às vezes durmam e sejam esquecidas [...] A lua desceu lentamente em beleza; ela partiu para as profundezas do
horizonte, e longas sombras em forma de véu subiram pelo céu através do qual as
estrelas apareceram. Logo, porém, eles também começaram a empalidecer diante de um esplendor no
leste, e o advento do amanhecer se declarou no azul recém-nascido do céu. Mais quieto e ainda mais quieto ficou o
mar, quieto como a névoa suave que pairava em seu peito e encobria sua
inquietação, como em nossa vida tempestuosa as coroas transitórias do sono
fluem sobre uma alma atormentada pela dor, fazendo-a esquecer sua tristeza. . Do leste para o oeste voaram aqueles anjos do Amanhecer, de mar a mar, de
topo de montanha a topo de montanha, espalhando luz pelo peito e pelas asas. Eles saíram da escuridão, perfeitos,
gloriosos; adiante, sobre o mar calmo, sobre a linha costeira baixa, e os pântanos
além, e as montanhas acima deles; sobre aqueles que dormiram em paz e aqueles que acordaram tristes; sobre o mal e o bem; sobre os vivos e os mortos; sobre o vasto mundo e tudo o que respira
ou respira nele. [...] Ah! quão pouco conhecimento um homem adquire
em sua vida. Ele o recolhe como água, mas como água ele escorre entre seus dedos, e
ainda assim, se suas mãos estiverem molhadas como se de orvalho, eis que uma
geração de tolos grita: 'Veja, ele é um homem sábio!' Não é assim? [...] Pensar só pode servir para medir a impotência do pensamento. [...]
Não existe magia, embora exista conhecimento dos caminhos ocultos da
Natureza. [...]
A memória me assombra de era em era, e a paixão me leva
pela mão - o mal eu fiz, e com a tristeza conheci de era em era, e de era em
era farei o mal, e a tristeza conhecerei até minha redenção vem. [...] O homem faz isso e aquilo com base no bem ou no mal de seu
coração; mas ele não
sabe a que fim seu sentido o leva; pois quando ele ataca, ele não sabe onde o golpe cairá, nem pode contar os
fios de ar que tecem a teia das circunstâncias. O bem e o mal, o amor e o ódio, a noite e
o dia, o doce e o amargo, o homem e a mulher, o céu acima e a terra abaixo -
todas essas coisas são necessárias, uma para a outra, e quem sabe o fim de cada
uma? [...] É um fato bem conhecido que
muitas vezes, excluindo o período da infância da discussão, quanto mais velhos
ficamos, mais cínicos e endurecidos nos tornamos; na verdade, muitos de nós só somos salvos
pela morte oportuna da petrificação moral, se não da corrupção moral [...] E agora amemos e recebamos o que nos é dado e sejamos felizes; pois na sepultura não há amor nem calor,
nem toque de lábios. Nada por acaso, ou por acaso, mas lembranças amargas do que poderia ter
sido. [...]. Trechos extraídos da obra She (Oxford University
Press, 2008), do escritor britânico Henry Rider Haggard
(1856-1925).
O MAR - Quando o mar não me aguenta, \ Eu
não ando sobre isso. \ Dê-me algo, mar, para colocar na minha mesa. \ Comemos
um rabo-de-mar pendurado. Com certeza era salgado. Poema do poeta
estoniano Kalju Lepik (1920-1999). Veja mais aqui e aqui.
O BRASIL
– [...] o Brasil só pode ter uma
Universidade que corresponda à sua estrutura económica, sua estrutura
psicológica, temos que ter a paciência de ir avançando com honestidade, como
devemos ter a paciência de ir avançando com o país até atingir um
desenvolvimento que não creio, seja apenas, e que seja sobretudo, um
desenvolvimento de carácter económico, a economia apenas deve aparelhar como
estrutura de base e nada mais; o Brasil não tem que se preocupar com o desenvolvimento
em si mesmo, tem de se preocupar como desenvolvimento na medida em que ele
permite uma livre acção do homem e portanto a missão essencial do Brasil é
pensar qual a missão desse homem no mundo; problema em que não [se] está
pensando praticamente em nenhum país assoberbado por outras espécies de
problemas [...] Cada escola que se
abre é verdadeiramente um benefício para o Brasil; simplesmente esse benefício
se podia tornar maior se houvesse aqui uma Escola Normal de Universidades, se
realmente a Universidade de Brasília pudesse realizar a sua missão de preparar
esse pessoal». Finalmente, se pudesse realizar a outra missão de integração
nacional que estava programada como sendo o fazer frequentar a Universidade de
Brasília alunos que viessem de todos os Estados do Brasil por concursos locais.
[...] é à criança que temos de considerar
o bom selvagem, estragando-a, deformando-a, inutilizando-a o menos que nos seja
possível, defendendo o seu tesouro de sonho, jogo e criação, a sua
espontaneidade e a sua malícia sem maldade, o seu entendimento sem análise e o
seu amar do mundo sem a preocupação das sínteses [...] Porque a educação é tudo, e não poderá ser mais do que o fornecer a
cada um tudo o que solicite para que a sua pessoa se possa desenvolver e
afirmar [...]. Trechos extraídos da obra Textos pedagógicos (Âncora, 2000),
do filósofo, poeta e ensaísta português Agostinho da Silva
(1906-1994). Veja mais aqui.
CRÍTICO GENÉTICO – A obra Gesto inacabado: processo de criação
artística (Fapesp/Annablume, 1998), da linguista e professora Cecília Almeida Salles, trata, na
primeira parte, da estética do movimento criador, abordando sobre comunicação,
recompensa material, encontro de métodos, caminho tensivo, artista e matéria,
forma e conteúdo, fragmento e todo, acabamento e inacabamento e marcas psicológicas;
enquanto na segunda parte trata sobre abordagens para o movimento criador,
abordando sobre ação transformadora, percepção artística, recursos criativos,
movimento tradutório, processo de conhecimento, construção de verdades artísticas,
percurso de experimentação. Na obra,a autora assinala que: O crítico genético narra as histórias das criações. Os vestígios deixados
por artistas oferecem meios para captar fragmentos do funcionamento do
pensamento criativo. Uma sequencia de gestos advindos da mão criadora e
experienciados, de forma concreta, pelo crítico. Gestos se repetem e deixam
aflorar teorias sobre o fazer.
UMA GOTA DE SANGUE, DE
DEMÉTRIO MAGNOLI - [...] De Douglass a Obama, passando por Martin
Luther King, um fio antirracial percorre dois séculos da história dos EUA. Os
três, em circunstâncias distintas, ergueram-se como arautos do princípio da
igualdade e insistiram em interpretar a nação americana por esse prisma.
Contudo, uma poderosa corrente da história americana articulou-se em torno do
mito da raça, isto é, do princípio da diferença, não da igualdade. Douglass
combateu a escravidão e triunfou, mas, antes ainda de morrer, assistiu à edição
das primeiras leis de segregação racial. Luther King insurgiu-se contra as leis
segregacionistas e também triunfou, mas, na hora de seu assassinato, o mito da
raça já ressurgia com todo o vigor sob a forma paradoxal das políticas de
discriminação reversa. Obama separou-se das políticas de preferências raciais e
deu um passo adiante, definindo-se como um mestiço, num país que continuava a
classificar os cidadãos segundo critérios de raça. [...] "Afro-americanos": a expressão, inventada junto com o
multiculturalismo, não é mais que um reflexo pós-moderno da antiga visão da
África como pátria de uma raça. Foi precisamente essa visão, importada do
racismo clássico, que orientou a corrente predominante do movimento negro nos
EUA, antes e depois de Luther King. É ela, igualmente, que sustenta os projetos
de políticas de preferências raciais no Brasil dos nossos dias. A relação entre
a cor da pele e uma origem racial e geográfica está presente, como não poderia
deixar de ser, na própria África. Mia Couto, escritor moçambicano, discute a
contrariedade de jovens de seu país com a atitude identitária do célebre
ex-futebolista Eusébio da Silva Ferreira, nascido em Moçambique e herói da
seleção portuguesa na Copa do Mundo de 1966, que se declara português de
nacionalidade e coração: O caso de Eusébio pode ser revelador de outros fantasmas.
A pergunta é: por que razão os africanos pretos não se podem converter numa
outra 'coisa'? Se existem brancos que são africanos, se existem negros que são
americanos, por que os pretos africanos não poderão ser europeus? O escritor dá
um passo à frente: Existem hoje centenas de milhares de pretos que nasceram na
Europa. Estudaram, cresceram, absorveram valores. Converteram-se em cidadãos
dos países em que nasceram. A grande maioria vai viver para sempre nesses
países. Terão filhos e netos europeus. E não podem cair na armadilha de
reivindicar um gueto, uma espécie de cidadania de segunda classe que toma o
nome de "afroeuropeu". Raça é, precisamente, a reivindicação de um
gueto. O nome desse gueto é ancestralidade. A vida de um indivíduo que define o
seu lugar no mundo em termos raciais está organizada pelos laços, reais ou
fictícios, que o conectam ao passado. Mas a modernidade foi inaugurada por uma
perspectiva oposta, que se coagula nos direitos de cidadania. Os cidadãos são
iguais perante a lei e têm o direito de inventar seu próprio futuro, à revelia
de origens familiares ou relações de sangue. A política das raças é uma negação
da modernidade. Entretanto, a negação multiculturalista da modernidade é um
fenômeno mo- derno. A "ciência das raças" nasceu no final do século
xviii, junto com a Revolução Francesa e a consolidação do conceito de
cidadania, e se desdobrou na forma de depravações extremadas até a Segunda
Guerra Mundial. As políticas de preferências raciais disseminaram-se no
pós-guerra, não muito depois da proclamação solene da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e do repúdio mundial ao racismo nazista. A mensagem do
multiculturalismo é que o princípio da igualdade pode ser uma bela declaração,
mas a realidade verdadeira é formada pelas diferenças essenciais entre as
coletividades humanas. O "racismo científico" plantou as raças no solo
da natureza, definindo-as como famílias humanas separadas pelas suas essências
biológicas. Quando a ciência desmoralizou essa crença anacrônica, o multiculturalismo
replantou as raças no solo da cultura. O argumento dos multiculturalistas,
expresso sob formas diversas mas bastante similares, é que as raças são
entidades sociais e culturais. Com base nisso, a política das raças, que
parecia condenada a desaparecer na hora da aber- tura dos campos de extermínio
nazistas, ressurgiu triunfante nos mais diferentes pontos do planeta. A
produção de raças não exige distinções de cor da pele. Basta - como sa- bem os
nigerianos, os quenianos e os ruandeses - a elaboração de uma narrativa
histórica organizada a partir de cânones étnicos e, crucialmente, a inscrição
dos grupos raciais nas tábuas da lei. A distribuição de privilégios segundo
critérios de etnia ou raça grava nas consciências o senso de pertinência
racial. A raça é uma profecia autorrealizável. As raças se apresentam,
invariavelmente, como entidades muito antigas, com raízes fincadas na primavera
dos tempos. De fato, elas são construções identitárias modernas ou, no mínimo,
reelaborações recentes de identidades difusas de um passado mais profundo -
como sabem os indianos, os malasianos e os bolivianos. A raça é fruto do poder
de Estado que rejeita o princípio da igualdade entre os cidadãos. As políticas
americanas de ação afirmativa baseadas na raça serviram de modelo para a África
do Sul e o Brasil. Na África do Sul, o princípio da diferença racial, fixado nas
leis e nas consciências desde a colonização até o regime do apartheid, forneceu
o quadro lógico para as novas políticas preferenciais do black economic empowerment.
No Brasil, ao contrário, o princípio da igualdade política encontra amparo na
poderosa narrativa identitária da mestiçagem, que borrou as fronteiras de raça.
Mesmo assim, em nome do multiculturalismo, o governo de Fernando Henrique
Cardoso ensaiou dividir os cidadãos em "brancos" e
"negros", e o governo de Luiz Inácio Lula da Silva patrocinou a
introdução das primeiras leis raciais da história brasileira. No último ano do
século xx, os cientistas que sequenciaram o genoma humano declararam a morte da
raça. O mito da raça, entretanto, no lugar de se dissolver como uma crença
anacrônica, algo parecido com a antiga crença em bruxas, persiste ou renasce na
esfera política, desafiando a utopia da igualdade. É como se dissessem a
Douglass que o 4 de Julho jamais poderá ser o seu dia. [...] O deputado federal Chico Alencar, uma
liderança do psol, partido situado à esquerda do PT, relatou um projeto de lei
de autoria da senadora Roseana Sarney, herdeira do clã do ex-presidente José
Sarney. Na sua forma original, o projeto determinava a fixação de três datas
comemorativas para os "segmentos étnicos nacionais": o Dia do Índio,
19 de abril, em homenagem aos "povos autóctones"; o Dia do
Descobrimento, 22 de abril, dedicado à chegada do "branco europeu"; o
Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, consagrado a "celebrar o
negro". O substitutivo proposto pelo relator em 2007 não alterava a
natureza do projeto, mas conferia-lhe tonalidades "combativas",
renomeando o 19 de abril como Dia de Luta dos Povos Indígenas e transformando o
20 de novembro em feriado nacional.8 Há uma lógica férrea no pensamento racial,
que funciona como alicerce subterrâneo do projeto de lei da improvável dupla
Sarney-Alencar. Essa lógica pode ser expressa assim: uma raça só ganha
existência no interior do grande painel das raças - isto é, o "negro"
precisa do "branco" para ser negro, e vice-versa. A "consciência
negra", quando incrustada na letra da lei, conduz em algum momento à
manufatura legal de uma "consciência branca". De fato, para todos os
efeitos, a novidade do projeto das datas étnicas encontra-se na produção de um
"Dia do Branco" como complemento racialista indispensável do
"Dia do Negro". As nações, como explicaram os historiadores Terence
Ranger e Eric Hobsbawm, são fábricas de "invenção das tradições". A
narrativa do "encontro das três raças", construída ao longo de cem
anos, entre a independência e o início do século xx, configura um mito imaturo,
inacabado, aberto à interpretação do futuro. Inicialmente, ele foi preenchido
pela proposição da harmonia. Depois, a crítica histórica evidenciou a dor e a
opressão como elementos nucleares do sistema escravista, bem como o lento
genocídio fragmentário que dizimou os povos indígenas. Mas nada disso abalou os
alicerces de um mito fundamentalmente antirracial que, desde a metáfora da
confluência dos rios, propiciou à nação uma utopia positiva. Visto
superficialmente, o projeto de lei inscreve-se na linha de continuidade do mito
original. Mas, na verdade, o seu significado é o oposto disso: a instituição de
três datas étnicas associadas a grupos raciais representa uma negação da
mistura de águas anunciada por Martius. Os rios celebrados pelo projeto de lei
são cursos d'água paralelos, que drenam terras contíguas, mas nunca se
encontram. Não há nada de fortuito na proposição emanada dos esforços
combinados dos dois parlamentares situados em lugares aparentemente tão
distantes no espectro político. Ela reflete a reação ideológica contra a
narrativa da mestiçagem e, no fim das contas, coagula a imagem de um país
reinventado como espaço geopolítico onde coexistem nações distintas, separadas
pelo sangue. No Brasil, as pesquisas sobre atitudes diante do racismo oferecem
resultados curiosos e, ao mesmo tempo, esclarecedores. Diversas enquetes
revelam que uma vasta maioria dos brasileiros admite a existência de
discriminação racial no país, especialmente em episódios de operações policiais
nas periferias e favelas. Entretanto, ao mesmo tempo, maiorias muito
expressivas declaram não nutrir preconceito racial. O antropólogo Peter Fry
menciona uma pesquisa respeitada na qual 87% dos entrevistados que se
declaravam "brancos" e 91% dos que se designavam "pardos"
afirmavam não ter preconceito nenhum contra "negros". Na mesma
pesquisa, 87% dos que se definiam como "pretos" negavam nutrir
preconceito contra "brancos". Mais interessante ainda: 64% dos
"pretos" e 84% dos "pardos" declararam nunca ter sido alvos
de preconceito racial. O paradoxo aparente expresso nas pesquisas não encontra
explicação na moldura lógica do racialismo, que só pode negar a sinceridade das
respostas incongruentes com a sua teoria social. Mas, fora do quadro do
racialismo e admitindo-se a validade das respostas, as pesquisas indicam que a
discriminação racial no Brasil é percebida como um fenômeno bastante
minoritário, ainda que algumas de suas manifestações sejam intensas. O exemplo
notório de uma dessas manifestações é a seleção, por agentes policiais, de
jovens de pele mais escura como suspeitos prévios de atos ilícitos. Um
informante branco ofereceu aos sociólogos Florestan Fernandes e Roger Bastide
um diagnóstico já célebre: "Nós, brasileiros, temos preconceito contra ter
preconceito." A afirmação, interpretada pelos racialistas, seria um indício
dos males ocasionados pelo "mito" - no sentido vulgar, de mentira ou
ocultação - da "democracia racial". A tarefa consistiria em riscar
não o preconceito racial, mas o "preconceito contra ter preconceito",
de modo a permitir a emersão de um confronto de interesses raciais. Mas, efetivamente,
a afirmação indica que o "mito" - no sentido antropológico de utopia
coletiva - da "democracia racial" conduz a atitudes antirracistas,
crismando o preconceito como algo intolerável. É uma plataforma inigualável, se
a meta for a edificação de uma democracia cega para a cor da pele dos cidadãos.
Os brasilianistas do pós-guerra, embalados pela visão da declaração
antirracista da Unesco de 1950, descreveram o Brasil como um país que, apesar
de suas gritantes desigualdades, escolhera um rumo diferente daquele dos eua e
não erguera muralhas identitárias entre grupos raciais. O historiador britânico
Timothy Garton Ash não é um brasilianista, mas visitou o Brasil no auge do
entusiasmo governamental pelas políticas multiculturalistas e deixou o seguinte
testemunho: Estou consciente [...] de
que corro o risco de parecer um forasteiro rico e branco [...] que se aventura nas favelas durante uns dias
e exclama: "Que bonitos são todos!". Eu mesmo poderia escrever a
sátira correspondente. Mas não tenho alternativa senão dizê-lo: o que vislumbrei
no Brasil, inclusive em meio à pobreza e à violência da Cidade de Deus, é a
beleza da mestiçagem. Aprendi a exaltá-la seguindo o exemplo dos próprios
brasileiros. E essa mistura é precisamente o que contribuiu para que estejam
entre os seres humanos mais belos do pla- neta. O que aqui se anuncia - mas,
insisto: se, e apenas se, o Brasil for capaz de corrigir seus espantosos
desequilíbrios sociais e econômicos e um legado de discriminação - é a
possibilidade de um mundo em que a cor da pele não seja mais que um atributo
físico, sem mais, como a cor dos olhos ou a forma do nariz, e que se possa
admirá-lo, mencioná-lo ou fazer piada sobre ele. Um mundo em que a única raça
importante seja a raça humana. A polêmica sobre as políticas de raça remete a
uma questão de fundo sobre o projeto nacional brasileiro. No fim das contas, os
arautos do multiculturalismo estão dizendo que o Brasil fracassou
historicamente como nação e deve começar de novo, reinventando-se desde o
início, pelo cancelamento do mito de origem da confluência dos rios. Eles estão
dizendo que a mestiçagem é uma mentira abominável - e que o Brasil foi erguido
sobre essa mentira. Inversamente, os críticos das políticas raciais pensam que
há algo de muito positivo, para toda a humanidade, no projeto nacional do
Brasil. Os brasileiros não aprenderam a separar as pessoas segundo o cânone do
mito da raça. Nós imaginamos que as águas podem - e devem! - se misturar. Que a
única raça importante é a raça humana. UMA GOTA DE SANGUE – O livro Uma gota de sangue: história do pensamento
racial, do sociólogo Demétrio Magnoli trata desde a condição do ex-escravo
Frederik Douglass se tornar um dos mais importantes abolicionistas dos EUA, sob
a influencia de Lysander Spooner, como da classificação, ordenamento, hierarquia,
taxonomia da espécie humana, o surgimento do racismo científico, a teoria da
recapitulação de Haeckel, a divisão por raças de Alexis Tocqueville, o conceito
de desigualdade essencial entre os homens, o principio iluminista da igualdade,
do fardo do homem branco de Rudyard Kipling, da ontogênese recapitulando a
filogênese, a teoria das raças inferiores de Eward Dinker Cope de que negros,
muleres europeias meridionais e pobres são incapazes, os caracteres adquiridos
pelos uso e desuso de Herbert Spencer, , Darwin e Lamarck, o positivismod e
Lewis H. Morgan, a teoria da evolução culytural, a teoria do uomo delinquente
de Cesare Lombroso e a antropologia criminal, o atavismo criminal, Proudhon e o
censo de Charles Hirschman, o nacional e o estrangeiro, o mito do sangue e a
religião de sangue, ariosofia, os protocolos dos sábios de Sião, a eugenia de
Galton, as ideias de Hitler de que os judeus parasiam as nações, a lei para
prevenção da descendência hereditária, a eutanásia, o movimento de higiene racial
alemão, a teoria da regeneração de Morel, a teoria da linguagem religiosa, a
teoria da degeneração e da higienel racial, o principio de diferenciação e o
principio da igualdade de oportunidade, a miscigenação, o novo colosso de Emma
Lazarus, a regra da gota de sangue única, Gobineau e o racismo cientifico do
séc. XIX, a trajetória do racismo, do multiculturalismo e das campanhas
antiracistas, até o advento das quotas por meio do fardo do homem branco: uma
história de sangue, a ciência das raças, uma missão na África, classificando os
nativos, a nação como linhagem, Hitler e a crise da raça, Leis de Nuremberg, a
raça rejeitada, a revolta de Soweto, o triunfo do multiculturalismo, One drop
rule? Loving dat, preto no branco, índio morto e índio posto, back to Áfica, o
império contra o tráfico, o sonho pan-africano, os três filhos de Gihanga, o
oriente e a restauração das castas, os filhos do solo, a fábrica de ideologias,
a abolição da abolição, doenças de negros, a cor da pobreza, os rios que se
encontram, entre outros assuntos que envolvem toda a trajetória do preconceito,
da discriminação e do racismo. Veja mais aqui.