A arte
do premiado artista estadunidense Bruce
Nauman. Veja mais abaixo.
OS SIGNOS DA ABETARDA - Não a vi chegar porque eu
lia sentado na guarita aguardando no ponto da condução. Virei-lhe as vistas e
ela piscou o olho direito e me sorriu. Surpreso, logo se mostrou receptiva. Quebrou
o gelo como quem viera do lago Kadyara do Níger emergindo das letras do récit
initiatique peul
(Julliard, 1969), do malinês Amadou
Hampâté Bâ (1901-1991). Logo tomou corpo diante de mim como se
crescesse das páginas do L’homme et i’nvisible (Imago, 1980), do etnólogo e historiador
francês Jean-Henri Servier (1918-2000). Vi-lhe a nítida pata
dupla de pássaro impressa na testa e outras duas no seio esquerdo à mostra pelo
decote. Percebeu minha curiosidade e logo explicou que as adotara depois que
uniu sua alma no casamento para a fecundidade e a alma descesse à matéria naquela
cerimônia. Mais disse ser uma camponesa chamada Beatriz do Morro do Cabril e
que, muito jovem, foi muito disputada entre os jovens. Dedicada ao trabalho levava
seu rebanho influenciada pela avó: entre os sonhos das pastoras e príncipes. De
repente um príncipe conquistador e belo apareceu e o sonho se realizara: foi
levada para o paraíso. Ali viveu por um ano até que o seu marido saiu com um
pedido a sua mãe para ajudá-la a ter seu filho. A mãe chegou ao palácio com a
vida no neto que viria. Assim fez sobre a promessa de manter segredo
irrevelável, coisa que ambas sequer entendia no pacto. E todos os dias a
visitava, até que um dia encontrou o genro numa feira com o neto no colo,
deu-lhe um recado dela. No exato momento em que a transmitira a mensagem, ambos
desaparecem numa fumaça e nunca mais reapareceram. Ao final a genitora
enlouqueceu porque ela também havia desaparecido. Sim? Ao ver-me atento ao seu
relato, acrescentou que agora trabalhava recolhendo as cinzas espalhadas ao
redor do leito de defuntos para que a alma deles fosse liberada para o seu voo.
Para aplacar meu espanto me fez um convite: conhecer qualquer dia as Sete
Pedras de Abetarda que são oito sumidouros da lixiviação na cúpula de Benthe,
Ronnenberg na Baixa Saxônia. Estava
mais curioso que aquiescente. E disse tratar-se de um lugar em que todas a
pedras estão à beira da Nenndorfer Landstrasse, ao lado da entrada da pousada
Zum Sieben Trappen, era ali onde Gograf realizava o tribunal com os membros do
júri, admoestando acusados a serem honestos. A localização do monumento era o
sinal de reparação, evitando brigas familiares após homicídios culposos ou a
morte sem absolvição pela confissão ou sob a ameaça do castigo do inferno sem
os últimos ritos da salvação. Reiterou então que o naquela localidade tanto
poderia ser a cena de um crime como para orações, falsos juramentos, perjúrios,
roubos, cobranças de dívidas, pagamento de salários, aviso aos mentirosos. Coincidentemente
apontou adiante para uma grande ave jamais conhecida, com cristas de plumas
finas – era o macho e não passava de enfeite efêmero simbolizando o mundo
temporal, considerou. Era um majestoso otididae dos
gruiformes, solitário de plumagem variada, gregário omnívoro, com seus elaborados
rituais de acasalamento, tão imponente, daquele que corre e não voa, anda lentamente,
se assustando com facilidade e fugindo em voos curtos. Era um macho estepário com
longos bigodes e, só logo depois percebi que três fêmeas do pescoço fino
acompanhavam-no: Sempre será assim porque nunca se afastará da terra, nem
alçará altos voos. Sim? Ah, como uma criança que não sai do colo da mãe nem
nunca se tornará maior quando adulto. Precisa ver o banho de espuma na
primavera! Como é? Ah, é uma bonita parada nupcial com poses aparatosas nas
planícies da Mongólia ou Sibéria. Mesmo? Estão em perigo de extinção. Como
este pássaro, o mundo se mantinha num só pé, batendo asas e não se podendo
apanhar, talqualmente os homens que brigam entre si,
ferindo-se e se matando uns aos outros em todo momento. Era a primeira
Abetarda, sabia lá o que era. Detalhou ser uma ave fabulosa que desprezava o caçador
de quem escapava sempre e representa a aventura da alma humana. É mesmo? Pacientemente
explicou-me que assim como o ar explica o pássaro, o homem se explicaria pelo invisível
– e se referia ao invisível para representar o numinoso e o sagrado, uma
realidade nada metafísica: a dimensão em que cada um dos homens se movia na
humanidade. Mais enigmática e sensual confidenciou que o ocidente havia se
desviado do caminho na angústia dada pela racionalidade, isolado pelo racismo e
arrodeado de vozes sábias aos farrapos, quando a palavra seria sempre a senha
das iniciações e que, infelizmente, havíamos perdido. O grande medo de uma
aventura estranha, foi o que ela disse enquanto descruzava a perna para
sentenciar gravemente ao meu ouvido: A morte é como o pôr do sol, tão
necessária quanto o nascimento. Aquilo me assustou e ela se recompôs ajeitando
o decote que se pronunciava, mas deixando à mostra um par de coxas provocantes
reveladas sob a minissaia. Percebeu meu embaraço e indicou que a minha condução
havia chegado: Vá, você já perdeu várias paradas, pode ir, a gente se
reencontrará com certeza. Obrigou-me a seguir como se evitasse uma despedida. Subi
os degraus e enquanto remexia as cédulas na carteira para pagar ao cobrador, o
motorista deu partida e meus olhos firmes naquela que lá ficou com a promessa de
que outro haveria de acontecer. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS - O que desejamos
são pressentimentos do potencial de que dispomos, o anúncio daquilo que somos
capazes de realizar. O que queremos e podemos obter, nossa mente projeta para
fora de nós, no futuro. Pensamento do escritor alemão Johann Wolfgang von
Goethe (1749-1832). Veja mais aqui e aqui.
ALGUÉM FALOU: Vida é o que
acontece a você / enquanto você está ocupado fazendo outros planos...
Trecho da música Beautiful Boy
(Double Fantasy – Geffen Records, 1980), do cantor, compositor e músico inglês John Lennon (1940-1980).
VENÚSIA – É uma cidade que está descrita no livro L’lle des femmes (Du monde nouveau, 1922), de Raymond Clauzel e é dominada pela Vênus Genetrix, na qual
os homens são selecionados para a reprodução, treinados desde cedo para várias
atividades e depois são entregues às mulheres como escravos. É um local em que
as jovens mulheres são mantidas virgens para servirem ao exército, mas se
durante o serviço perder a virgindade são queimadas vivas. Lá a líder Julia
Senecion odeia os homens. Ao seu redor as masculinas e as venusianas – estas
são convencidas da superioridade feminina. É difícil falar com elas, podendo-se
usar o latim para se comunicar com elas. Sobre o local conta-se uma lenda de
uma fada do mar que vivia girando dentro de uma caverna porque confiou a sua
roca mágica a outra mulher que ficou rica, mas que perdeu tudo porque revelou o
segredo. Também existe uma narrativa de Glénat de Zanzin, sobre Céleste
Bompard que é uma "Coq en l'air", ou seja, um ás acrobático e que possuía
talento, afora um ego desproporcional levando-o a constantemente ultrapassar os
limites de sua técnica, aproveitando seu sucesso para seduzir o maior número
possível de mulheres. Sua destreza evidentemente lhe rendeu grande sucesso com
o sexo frágil. Alinha as conquistas. Contratado quando eclodiu a Grande Guerra,
ele era responsável por transportar as cartas que os soldados do front
escreviam para suas esposas. Mas durante uma missão, ele foi vítima de fogo
inimigo e seu biplano cai em uma ilha misteriosa. Obrigado a sobreviver neste
lugar visivelmente deserto, ele supera o tédio lendo as cartas que os peludos
mandam para suas esposas. Um dia, enquanto navegava pelo local, ele descobre um
Jardim do Éden inteiramente povoado por mulheres! Verdadeiras amazonas, tão
belas quanto formidáveis, que são rápidas em capturá-lo para substituir seu
atual "reprodutor". Veja mais aqui.
A LOUCA DA CASA - [...] Em seu
precioso ensaio, Nuria Amat propõe aos escritores uma pergunta cruel que
consiste em decidir entre duas mutilações, duas catástrofes: se, por alguma
circunstância que não vem ao caso, você tivesse que escolher entre nunca mais
escrever ou nunca mais ler, o que escolheria? Nestes últimos anos, formulei
esta inquietante questão, na base da brincadeira, a quase todos os autores com
quem me encontrei pelo mundo afora e descobri duas coisas interessantes. A
primeira é que a esmagadora maioria deles, pelo menos noventa por cento e
possivelmente ainda mais, escolhe (escolhemos: eu também) continuar lendo. E a
segunda é que esta brincadeira aparentemente inocente é um bom revelador da
alma humana, porque tenho a sensação de que muitos dos escritores que dizem
preferir a escrita são pessoas que cultivam mais o seu próprio personagem do
que a verdade. [...] Liguei para
Carmen García Mallo, uma das minhas melhores amigas, com o ânimo sombrio e
furibundo: — Hoje eu queria escrever, tinha o dia todo para escrever, e
desperdicei o tempo respondendo e-mails. — Por quê? — Sei lá. Às vezes a gente
evita começar o trabalho. É uma coisa esquisita. — Por preguiça? — Não, não. —
Por quê? — Por medo. Não soube explicar, mas ontem, na desproteção extrema da
noite, na claridade alucinada da noite, enquanto me revirava na cama, entendi
exatamente o que queria dizer. Por medo de tudo o que você deixa sem escrever
uma vez que parte para a ação. Por medo de concretizar a ideia, de
aprisioná-la, deteriorá-la, mutilá-la. Enquanto permanecem no rutilante limbo
do imaginário, enquanto são somente ideias e projetos, seus livros são
absolutamente maravilhosos, os melhores livros que já foram escritos. E só
depois, quando você os vai cravando na realidade palavra por palavra, como
Nabokov cravava suas pobres borboletas na cortiça, é que se transformam em
coisas inevitavelmente mortas, em insetos crucificados, por mais que sejam
recobertos por um triste pó de ouro. [...]. Trechos extraídos da obra La Loca de la
Casa (Punto de Lectura, 2006), da escritora
espanhola Rosa
Montero, autora de obras como Crónica del
desamor (1979), La función Delta
(1981), Te trataré como a una reina (1983), Amado Amo (1988), Temblor (1990),
Bella y Oscura (1993), La hija del caníbal (1997, Premio Primavera de
Novela), El corazón del Tártaro (2001), La loca de la casa (Alfaguara, 2003; Premio Qué Leer
2004 al mejor libro del año, Premio Grinzane Cavour 2005 y Premio Roman Primeur
2006, Francia), Historia del Rey Transparente
(Alfaguara, 2005; Premio Qué Leer 2005 al mejor libro del año, y Premio
Mandarache 2007), Instrucciones para salvar el mundo
(Alfaguara, 2008; Premio de los Lectores del Festival de Literaturas Europeas
de Cognac, Francia, 2011) e Lágrimas en la lluvia
(2011), entre outros.
TRÊS POEMAS - A ESTRELA PRÓXIMA - A poesia é impossível / o amor é mais / que impossível / a vida, a morte loucamente / impossíveis. / Só a estrela, só a / estrela / existe / - só existe o impossível. CÍRCULO - O círculo / é astuto:/ enrola-se / envolve-se / autofagicamente. / Depois / explode / - galáxias! ̶ / abre-se / vivo / pulsa / multiplica-se / divindadecírculo / perplexa / (perversa?) / o unicírculo / devorando / tudo. TEIA - A teia, não / mágica / mas arma, armadilha / a teia, não / morta / mas sensitiva, vivente / a teia, não / arte / mas trabalho, tensa / a teia, não / virgem / mas intensamente / prenhe: / no / centro / a aranha espera. Poemas da escritora Orides Fontela (1940-1998). Veja mais aqui e aqui.
A arte
do premiado artista estadunidense Bruce
Nauman.